Gil conta como compôs “Cálice” após Globo não creditá-lo como parceiro de Chico na live de Bethânia

Atualizado em 14 de fevereiro de 2021 às 19:04
O músico e ex-ministro Gilberto Gil – Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Gilberto Gil foi às redes sociais, neste domingo (14), contar o processo de escrita de “Cálice” após não ser creditado como parceiro de Chico Buarque na live de Maria Bethânia.

Gil é co-autor da música que foi escrita em 1973 e se tornou um dos mais famosos hinos de resistência ao regime militar.

“Era semana santa e marcamos um encontro no apartamento dele [Chico], na Rodrigo de Freitas (lagoa referida por ele na letra). Pensei em levar alguma proposta e, um dia antes me sentei no tatame, onde eu dormia na época, e me pus a esvaziar os pensamentos circulantes para me concentrar”, contou Gil.

Ontem (13), Bethânia fez uma live antiCarnaval e foi direta ao expressar seus desejos para o Brasil: “Eu quero vacina, respeito e verdade”.

Leia abaixo a íntegra do relato de Gil:

“Era semana santa e marcamos um encontro no apartamento dele, na Rodrigo de Freitas (lagoa referida por ele na letra). Pensei em levar alguma proposta e, um dia antes me sentei no tatame, onde eu dormia na época, e me pus a esvaziar os pensamentos circulantes para me concentrar.

Como era sexta-feira da Paixão, a idéia do calvário e do cálice de Cristo me seduziu, e eu compus o refrão incorporando o pedido de Jesus no momento da agonia.

Em seguida escrevi a primeira estrofe, que eu comecei me lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que ele me oferecia sempre que eu ia a sua casa.

“No sábado não foi diferente: ele me trouxe um pouco da bebida, eu lhe mostrei o que tinha feito. Quando, cantando o refrão, cheguei ao ‘cálice’, no ato ele percebeu a ambiguidade que a palavra adquiria, e a associou com ‘cale-se’, introduzindo na canção o sentido da censura.

Depois, como eu tinha trazido só o refrão melodizado, trabalhamos na musicalização da estrofe a partir de idéias que ele apresentou. E combinamos um novo encontro.

“Ele acabou fazendo outras duas estrofes e eu mais uma, quatro no total, todas em oito decassílabos. Dois ou três dias depois nos revimos e definimos a sequência.

Eu achei que devíamos intercalar nossas estrofes, porque elas não apresentavam um encadeamento linear entre si. Ele concordou, e a ordem ficou esta: a primeira, minha, a segunda, dele; a terceira, minha, e a última, dele.

Na terceira, o quarto verso e os dois finais foram influenciados pela idéia do Chico de usar o tema do silêncio. O termo, alías, já aparecia na outra estrofe minha, anterior: ‘silêncio na cidade não se escuta’, quer dizer: no barulho da cidade, não é possível escutar o silêncio.

quer dizer: não adianta querer silêncio porque não há silêncio, ou seja: não há censura, a censura é uma quimera; além do mais, ‘mesmo calada a boca, resta o peito’ e ‘mesmo calado o peito, resta a cuca’: se cortam uma coisa, aparece outra.

“Aí, no dia em que fomos apresentar a música, desligaram o microfone logo depois de termos começado a cantá-la. Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo sido recomendado que não a cantássemos, mas fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la.”