Propina pela Copa de 2026: as revelações do livro embargado pela Globo. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 9 de fevereiro de 2019 às 20:13
Os Marinho no esquema de corrupção que explora uma paixão

O livro sobre a corrupção no mundo do futebol profissional, “Cartão Vermelho — Como os EUA revelaram o maior escândalo mundial do futebol”, de Ken Besinger, cita a Globo diretamente por envolvimento no pagamento de propina.

A Globo comprou os direitos de publicação do livro no Brasil em 2015, quando ele ainda estava sendo escrito, mas até hoje não o tirou da gaveta.

O livro faz sucesso em todo o mundo — em Portugal, está esgotado — e a única explicação para essa atitude da emissora é: quer sonegar do público brasileiro as informações apresentadas no livro.

O DCM adquiriu a versão em inglês e constatou que há uma referência incômoda para a emissora, na verdade a imputação de um crime, o de corrupção.

Na página 291, está escrito:

Depois de uma hora, Burzaco voltou ao tribunal e rapidamente voltou às manchetes internacionais com seu relato de como a Torneos, junto com a gigante de mídia mexicana Televisa e a emissora brasileira Globo, pagou US $ 15 milhões em propinas a um alto funcionário da FIFA em troca dos direitos de transmissão para TV das Copas do Mundo de 2026 e 2030.

Nesse trecho, um dos quatro em que a Globo é citada, Ken Besinger descreve o julgamento dos dirigentes esportivos, como José Maria Marin, acusados de corrupção no futebol.

Alejandro Burzaco era executivo da Torneos y Competencias, uma empresa argentina que se associou a J Hawilla (já falecido), ex-funcionário da Globo e que foi dono de quatro afiliadas da Globo no interior do Estado de São Paulo.

Hawilla ocupa várias páginas do livro, em que é contado como se corrompeu e, depois, como, arrependido, passou a colaborar com as autoridades americanas.

Quando José Hawilla era um jovem e ansioso repórter esportivo, agarrado a um microfone e transmissor volumosos e competindo nos bastidores dos jogos de futebol brasileiros da segunda divisão no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, o negócio do futebol era um assunto simples.

As equipes vendiam ingressos e os proprietários dos estádios alugavam espaço em alguns outdoors para empresas locais, além de cobrar das estações de rádio que usavam uma cabine de imprensa. Não havia o conceito de uma emissora exclusiva e, para competições importantes, meia dúzia ou mais de estações de rádio poderiam competir pelos ouvintes.

Nos anos 70, lembra Ken Besinger, Hawilla era diretor do Departamento de Esportes da Globo, “a emissora mais importante do Brasil”.

Mas, depois de ser demitido por apoiar uma greve de jornalistas esportivos, Hawilla decidiu que queria mais segurança financeira e, em 1980, comprou a Traffic Assessoria e Comunicações, uma pequena empresa de São Paulo que vendia publicidade em pontos de ônibus.

Àquela altura, Hawilla passara mais de vinte anos no futebol e sabia que o esporte, do ponto de vista comercial, era muito mal administrado. O Brasil era a maior força que o esporte já tinha conhecido, vencedor de três Copas do Mundo, e seus torcedores eram monomaníacos, pensando quase sempre só em suas equipes.

Ken Besinger conta que Havilla começou a comprar e vender direitos de transmissão, ao mesmo tempo em que atuou para melhorar a qualidade do que era mostrado na TV, com mais câmeras e sinais de qualidade.

Muitas pessoas, em vez de irem aos estádios, começaram a ver os jogos em casa. À medida que o negócio cresceu, também aumentou o valor da propina.

Eram os clubes e as federações que perdiam.

Ken Besinger e seu livro

“Como em qualquer negócio, os lucros dependiam de pagar o mínimo possível pelos bens que eles compravam e revendiam, e a melhor maneira de garantir que o custo dos direitos sobre o futebol permanecesse abaixo do valor de mercado era impedir a concorrência”, escreveu Besinger.

Nesse ponto, seu relato é feito com base nas declarações de Chuck Blazer, que foi secretário geral da Concacaf, a confederação de futebol das Américas do Norte e Central e Caribe, e depois se tornou delator do caso Fifa.

Blazer contou que as empresas de marketing esportivo sistematicamente subornavam as autoridades do futebol para manter os preços baixos e não vender seus direitos a mais ninguém. Um trecho do livro:

Os subornos vinham cada vez que um contrato era negociado, ou estendido, e ocasionalmente até mesmo antes de uma negociação, apenas para garantir que as coisas corressem conforme o esperado. Às vezes, os funcionários exigiam os pagamentos; outras vezes as empresas de marketing esportivo as ofereciam. De qualquer maneira, o entendimento era o mesmo: nós pagamos a você embaixo da mesa, e em troca você nos dá um contrato exclusivo e em condições amigáveis pelos direitos. Enquanto a imprensa esportiva agonizava sobre cada desenvolvimento político que surgiu da sede da Fifa em Zurique, centenas, se não milhares, de oficiais de futebol de todo o mundo recebiam subornos e propinas para os direitos televisivos e de marketing com pouco ou nenhum escrutínio.

Esse esquema milionário e ilegal permitiu que muitas pessoas enriquecessem, mas o esporte permanecesse pobre, e não houvesse recursos para o desenvolvimento do futebol na base. “Literalmente, faltava bola para crianças”, afirmou

A comparação de dois casos de aquisição de direitos de transmissão explica a discrepância. Para a realização de sua copa regional em 2011, chamada de Copa de Ouro, a Concacaf vendeu os direitos diretamente aos patrocinadores e alcançou a receita de US $ 31 milhões.

Na mesma época, tendo a Traffic de Hawilla como intermediária, a Conmebol, responsável pelo futebol na América do Sul, ficou com US $ 18 milhões pela Copa América, apesar de contar com estrelas do futebol muito mais conhecidas do que na região da Concacaf.

Mas o que saiu dos cofres das emissoras como a Globo foi muito mais, e debitado da conta dos patrocinadores. A diferença ficou nos labirintos de empresas usados para escoar o dinheiro da corrupção.

Na versão da Globo, ela não sabia do esquema de corrupção e repete a ladainha de que, em uma auditoria interna, constatou que não houve pagamento de suborno.

“O Grupo Globo reitera o que disse em nota: afirma veementemente que não pratica nem tolera qualquer pagamento de propina. Em suas amplas investigações internas, desde que o Caso Fifa veio a público há mais de dois anos, apurou que jamais realizou pagamentos que não os previstos nos contratos”, afirma em uma das ocasiões em que foi solicitada a dar explicações.

Ken Besinger não aprofunda a participação da Globo no esquema de corrupção. A citação mais forte aparece apenas no último capítulo.

Seu livro-reportagem tem como base o processo na justiça americana, em que José Maria Marín foi condenado a 4 anos de prisão, teve US $ 3,35 milhões confiscados e pagou multa de US $ 1,2 milhão.

Se Ken Besinger fizesse um livro exclusivo sobre a participação da Globo nos esquemas de corrupção, certamente teria muito mais a contar.

A parceria da Globo com os cartolas corruptos do futebol é de longa data.

Em 1989, quando assumiu a presidência da CBF, Ricardo Teixeira foi entrevistado por Marcelo Resende, numa reportagem do Jornal da Globo, e disse que um de seus objetivos na administração seria “a volta da seriedade e da administração participativa”.

Ou seja, ele se apresentava como o homem que colocaria ordem no lupanário. Palavras vazias.

Doze anos depois, Teixeira era o personagem central de um Globo Repórter, em que aparecia com patrimônio incompatível com a renda e empresas no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas.

Também com a apresentação de Marcelo Resende, a Globo acusava Teixeira de tentar esconder algo com a manutenção de empresas offshore.

Globo e Ricardo Teixeira fizeram as pazes e, depois, foi a vez da Globo aparecer no paraíso fiscal, sem que o presidente da CBF tivesse qualquer envolvimento direto com a denúncia.

A Globo tinha aberto uma empresa de fachada no paraíso fiscal, a Empire, para sonegar impostos do Brasil, para aquisição dos direitos de transmissão da Copa de 2002.

Por esse mesmo contrato, foi citada em uma investigação na Suíça sobre corrupção e lavagem de dinheiro.

Na época, dirigentes da Fifa usavam a intermediária ISL (que mais tarde quebraria) para que emissoras como a Globo depositassem a propina.

Em 2005, dois executivos da emissora foram ouvidos por carta rogatória, através do Supremo Tribunal Federal (STF).

Um deles é Marcelo Campos Pinto, que, oficialmente, se afastou da emissora em 2017, quando foi citado no caso do suborno em parceria com a Torneos e a Televisa.

Ricardo Teixeira, quando presidia a CBF, deixou escapar em uma reportagem para a revista Piauí no ano de 2011 que recebia tratamento dócil do jornalismo da Globo.

A repórter, Daniela Pinheiro, comprovou.

Em maio daquele ano, quatro dias antes da eleição na Fifa, Teixeira foi entrevistado e não ouviu nenhuma pergunta sobre corrupção e suborno, já naquela época assuntos presentes no noticiário.

No livro sobre a investigação realizada pelos Estados Unidos sobre corrupção na Fifa, o autor Ken Besinger publica uma declaração atribuída ao delator Blazer:

O futebol, disse ele, é povoado por dois tipos de pessoas: aqueles que aceitam subornos e aqueles que pagam subornos.

Pelos fartura de evidência, não há dúvida de a Globo está em uma das pontas.

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Perguntas que não querem calar: será que a Globo, ao comprar os direitos de publicação do livro no Brasil, esperava algum tratamento preferencial? Se não, por que não publicaram o livro ainda?

Veja o documentário que eu apresentei, com reportagens realizadas nas Ilhas Virgens Britânicas, o paraíso fiscal que a Globo usou para sonegar impostos do Brasil.