
Na Piauí de dezembro, Fernando de Barros e Silva conta como a Globo enganou os telespectadores com a versão oficial do massacre de 28 de outubro no complexo da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, a operação mais letal da história. Alguns trechos:
Com o número de mortes atualizado, o JN de 29 de outubro dedicou mais de meia hora à chacina. Mas em nenhum momento mencionou a palavra chacina ou alguma de suas variantes – matança, carnificina, execuções sumárias, assassinatos em série. Esses termos ficaram perdidos na mata, longe do jornalismo da Globo. Essa foi uma determinação da direção da emissora. Numa das orientações da chefia de jornalismo que circularam por escrito para a cúpula dos telejornais da Globo e da GloboNews, dizia-se que o termo “chacina não deve ser usado por nós”. O mesmo comunicado orientava a emissora a evitar entrevistas com especialistas ou políticos que falassem em chacina para caracterizar o ocorrido na Penha e no Alemão.
Havia outras recomendações. Os jornalistas não deveriam fazer comentários sobre o sucesso ou o fracasso da operação. As perguntas aos entrevistados deveriam ser sóbrias e sem juízos de valor. Os repórteres deveriam se esforçar para entrevistar as autoridades de segurança do Rio e dar amplo espaço para suas explicações. Os analistas deveriam ter cuidado para não se precipitar em julgamentos. A certa altura, dizia-se também que havia uma polarização, um duelo, entre esquerda e direita em torno deste assunto, e que a Globo não deveria dar munição para nenhum dos lados.
Na prática, este conjunto de diretrizes comprometeu não só o espírito crítico, que é parte do bom jornalismo, mas a própria busca pela verdade, sacrificada no altar do oficialismo, vocalizado por autoridades “neutras” de um governo de extrema direita.
A escalada do JN do dia seguinte ao massacre se desenrolou da seguinte maneira:
Renata Vasconcellos: Rio de Janeiro, 29 de outubro.
William Bonner: No dia seguinte à operação policial contra o Comando Vermelho, dezenas de corpos encontrados na mata são levados para a praça da Penha.
Vasconcellos: E o número oficial de mortos salta para 121.
Bonner: A polícia afirma que atraiu os traficantes para a rota de fuga na mata para proteger inocentes nas ruas da comunidade.
Vasconcellos: E que apreendeu 118 armas.
Bonner: Mas o chefe da facção escapou.
Vasconcellos: O governo estadual divulga imagens de pessoas despindo cadáveres de uniformes de combate.
Bonner: O diretor-geral diz que a Polícia Federal analisou os planos.
Vasconcellos: E avaliou que não poderia participar da operação.
(Aparece neste momento a imagem de Andrei Rodrigues, diretor-geral da PF, em entrevista coletiva, justificando na defensiva a sua posição.)
Bonner: O estado do Rio e o governo federal anunciam um escritório emergencial contra o crime organizado.
Há várias coisas a observar aqui. Bonner começa por anunciar que os corpos foram “encontrados na mata” e “levados para a praça da Penha”. É bem diferente de dizer que a polícia matou dezenas de pessoas em circunstâncias não esclarecidas (e cuja identidade ainda não se conhecia) e abandonou os corpos na mata. E que parentes e moradores resgataram os cadáveres por conta própria, sendo obrigados a executar, sob condições desumanas, uma tarefa que o Estado tem a obrigação legal de fazer. Pela lei, caberia à polícia preservar a área até a chegada da perícia, que também é uma exigência legal, sem a qual se torna impossível saber exatamente como as pessoas morreram e apurar as responsabilidades.
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— g1 (@g1) October 29, 2025
Ao alegar que a polícia “atraiu os traficantes para a rota de fuga na mata para proteger inocentes nas ruas da comunidade”, Bonner endossa a versão oficial. Além do zelo com os moradores da favela, nas palavras de Vasconcellos, a polícia ainda “apreendeu 118 armas” e o governo divulgou “imagens de pessoas despindo cadáveres de uniformes de combate”. É curioso que o número de armas apreendidas, 118, seja quase o mesmo das pessoas mortas pela polícia, 117. Uma coincidência. Todos os elementos que cercam a notícia aterradora das 121 mortes – quatro delas de policiais – contribuem para que o telespectador tenha a sensação de estar diante de uma matança virtuosa, ou, no mínimo, inevitável. No dia 22 de novembro, com a morte de mais um policial que havia sido ferido e estava hospitalizado desde a operação, subiu para 122 o número de vítimas.
Assim que a escalada do JN termina, quem abre o primeiro bloco do noticiário é Renata Vasconcellos. Depois de repetir o número atualizado da tragédia, ela diz que moradores das comunidades da região do Alemão e da Penha “resgataram corpos da mata onde houve o principal confronto”.
Primeiro, na escalada, o JN engole que a polícia “atraiu os traficantes para a rota de fuga na mata para proteger inocentes”. A seguir, diz que os corpos foram resgatados na mata “onde houve o principal confronto”. Juntas, as afirmações sugerem que na mata não havia inocentes e que quem morreu, sem exceção, estava enfrentando a polícia, o que é duplamente implausível. A versão oficial foi comprada sem ressalvas, mas, àquela altura, já havia relatos de corpos mutilados, tiros na nuca, ferimentos feitos a faca e ao menos um homem decapitado. O enredo empacotado pelas autoridades de segurança do Rio estava muito longe de elucidar a verdade da operação. Com boa vontade, era inconsistente; sem eufemismos, fantasioso. Reproduzi-lo sem mais na abertura do telejornal de maior audiência do país foi, mais do que uma opção editorial, uma decisão política.
Essa orientação fica ainda mais clara ao longo do telejornal.
A primeira reportagem daquela noite mostra imagens da Praça São Lucas pela manhã, onde estavam os cadáveres. A repórter Bette Lucchese, veterana na cobertura da criminalidade no Rio, diz: “No asfalto, o retrato de mais um dia que entra para a história da violência no país. Pessoas incrédulas, em choque, diante dos mortos deixados lado a lado no meio da rua.” E completa, enquanto vemos imagens de mulheres chorando, “a todo momento chegam mais carros com mais corpos”.
Uma mulher negra é entrevistada pela repórter. Sem que se saiba quem ela é (ela é só mais uma), a mulher diz: “Muito terror, muito medo. É isso o que nós tem pra falar. Muita mãe chorando e a gente não sabe o que fazer.” (…)
A ausência da polícia na cena do crime foi tratada de forma ligeira, mas a exposição em tom celebrativo dos responsáveis pela ação mereceu amplo destaque no JN daquela noite. Houve uma orientação específica da direção da emissora para que duas longas falas selecionadas dos chefes da Polícia Militar e da Polícia Civil fossem reproduzidas em todos os jornais do grupo. (…)
A edição do Fantástico do dia 2 de novembro coroou o oficialismo adotado pela Globo ao longo da semana. Na véspera, o JN havia divulgado uma pesquisa realizada pela Genial/Quaest apontando que uma larga maioria da população do estado do Rio (64%) havia aprovado a operação policial. Ela havia sido “um sucesso” para 58% dos fluminenses. Pode-se perguntar, diante de 121 cadáveres, qual o sentido (jornalístico e político) de fazer essa pergunta, dessa maneira, reproduzindo a expressão usada pelo governador. Mas ela foi feita.
A adesão popular à violência praticada pelos agentes do Estado não é uma novidade, pelo contrário. Pesquisas feitas na época do massacre do Carandiru também registravam apoio significativo à truculência policial. A novidade, ao que parece, está no uso que se faz das pesquisas. Elas hoje servem não apenas para medir os humores do cidadão, mas para legitimar a barbárie e desresponsabilizar o jornalismo de suas omissões. Na segunda-feira, 3 de novembro, a manchete do jornal O Globo foi: “72% apoiam medida que enquadra facções como terroristas.”