Globo, tratada como ré na ONU, não tem credibilidade para interpretar decisão do comitê de direitos humanos. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 23 de agosto de 2018 às 12:39
Miriam Leitão, Moro e Vladimir Netto: tudo em família

A TV Globo ou qualquer outro veículo do Grupo Globo não têm isenção para interpretar a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU que comunica ao Brasil que Lula deve ter assegurados seus direitos políticos, inclusive o de disputar as eleições de 2018.

Considerar a Globo sem isenção neste tema é um fato, não implicância com o grupo de comunicação. É que, no processo em que a defesa de Lula denuncia o Brasil por perseguição judicial ao ex-presidente, um capítulo inteiro é dedicado ao papel da Globo e sua aliança com setores do Judiciário.

Seria como imaginar Suzana von Ritchthofen discorrer sobre a importância do amor dos filhos aos pais. Suzana pode dizer o que quiser, mas sempre suas palavras serão confrontadas com a condenação por ter tramado e participado da morte dos pais. Nesse tema, não tem credibilidade, assim como a Globo não tem credibilidade para tratar do processo movido por Lula.

Os advogados do ex-presidente entraram com a ação na ONU em julho de 2016, depois que Lula foi alvo da condução coercitiva e teve divulgadas conversas privadas (dele e de familiares) divulgadas em rede nacional pela TV Globo.

A defesa de Lula usou os mecanismos judiciais do Brasil para tentar conter os danos e restabelecer o ambiente de legalidade nas investigações em torno do ex-presidente. Mas foi derrotada em todas as iniciativas.

Um dos fundamentos da reclamação é a falta de imparcialidade do juiz Sergio Moro e a endosso dos tribunais superiores à sua atuação.

Quando entrou com a ação, Lula ainda não tinha sido condenado, mas da vara de Sergio Moro partiam os vazamentos que criavam o ambiente hostil a Lula, como as escutas telefônicas.

Cristiano Zanin Martins e Valeska Martins Teixeira, que são casados e, nos processos de Lula, atuam em conjunto,  contrataram uma empresa para levantar o noticiário da TV.

O Jornal Nacional, da TV Globo, entre o final de dezembro de 2015 e agosto de 2016, veiculou 13 horas de notícias negativas sobre o ex-presidente, apenas 4 horas de noticiário considerado neutro e nem 1 segundo de notícias com viés positivo.

Ainda segundo o levantamento, “a parcialidade do Jornal Nacional em relação a Lula fica evidente pelo fato de que metade de suas reportagens não contemplou o contraditório do ex-presidente, de sua assessoria ou de seus advogados“.

O estudo foi produzido pelo cientista político, sociólogo e mestre em Filosofia João Feres Júnior, vice-diretor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e coordenador do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública.

É um acadêmico respeitado nessa área.

O estudo foi apresentado primeiramente ao advogado Geoffrey Robertson, australiano que mora na Inglaterra e se tornou um dos mais celebrados especialistas em direitos civis e políticos do mundo.

É conselheiro da rainha e já teve como clientes Julian Assange, do wikileaks, o escritor Salman Rushdie e Mike Tyson. A direita da Inglaterra não gosta dele, mas ele também não agrada a todos os esquerdistas.

Um perfil de Geoffrey Robertson, publicado no jornal The Independent, registra que, em seu livro “Crimes contra a Humanidade”, ele defende a “retidão moral de derrubar Saddam Hussein e a ilicitude dos meios utilizados para fazê-lo”, com a implicação de que o erro de George W. Bush foi apenas de usar a justificativa errada para o invasão.

Geoffrey não aceitou de pronto patrocinar a ação em favor de Lula. Fez questão de vir ao Brasil, conversou com várias pessoas e fez aos advogados brasileiros uma solicitação peculiar. Quis conhecer o apartamento de Lula.

Lá, depois de sentar em uma poltrona com uma ponta sem costura, pediu para ir ao banheiro e, na volta, comentou com os advogados. “Aceito a causa, ele não é corrupto”.

“Como assim?”, perguntou Valeska, em inglês. “Não vi torneiras de ouro, nada de luxo, não tem o perfil de corrupto”, respondeu o advogado.

Antes disso, já tinha se impressionado ao assistir, no Supremo Tribunal Federal, no dia 17 de março de 2016, à sessão em que Celso de Mello se manifestou, gratuitamente, sobre parte do conteúdo do vazamento das escutas telefônicas de Lula.

Era a parte em que o ex-presidente, em um diálogo privado, disse que o Supremo estava acovardado (e estava mesmo, já que não conteve o movimento que retirou Dilma do poder sem crime de responsabilidade).

Disse Celso de Mello, na abertura de uma sessão que trataria de outros temas:

“Esse insulto ao Poder Judiciário (…) traduz, no presente contexto da profunda crise moral que envolve os altos escalões da República, reação torpe e indigna, típica de mentes autocráticas e arrogantes que não conseguem esconder, até mesmo em razão do primarismo de seu gesto leviano e irresponsável, o temor pela prevalência do império da lei e o receio pela atuação firme, justa, impessoal e isenta de Juízes livres e independentes”.

Geoffrey Robertson comentou com Valeska que, se o decano da corte constitucional brasileira se comportava daquela forma, pré-julgando Lula com palavras tão duras, o ex-presidente não teria chance de um julgamento justo no Brasil.

Enquanto finalizava a ação, recebeu de Valeska as fotos em que Moro aparece no lançamento de sua biografia, escrita pelo repórter da Globo Vladimir Netto, a que o juiz compareceu e tirou fotos com ele e com a mãe dele, Mariam Leitão, uma das mais contundentes defensoras do impeachment de Dilma Rousseff  e crítica feroz de Lula.

As fotos foram juntadas na ação que deu entrada na ONU. Mais tarde, os advogados anexaram também as fotos de Moro na avant première do filme sobre a Lava Jato, que tem como uma de suas fontes o livro do jornalista da Globo.

Nessas obras, Lula aparece como culpado.

São fatos que reforçam a denúncia da falta de imparcialidade do juiz. Como pode ter isenção e equilíbrio um juiz que ajuda a promover obras e se confraterniza com pessoas que que se destacam no ataque ao ex-presidente?

Visto longe, com o olhar de Geoffrey Robertson, o julgamento de Lula é uma mera formalidade. Ele já estava condenado antes mesmo da denúncia.

Para Robertson e os advogados brasileiros, esta é uma certeza. Mas, para o Comitê de Direitos Humanos da ONU, ainda não. Na decisão liminar concedida em favor de Lula sexta-feira passada, entretanto, os dois membros que a assinam, Sarah Cleveland e Olivier de Frouville, deixam transparecer que já suspeitam de algo estranho ocorrendo no Brasil em relação ao ex-presidente.

Foi certamente por isso que, ao determinar que o Brasil permita a Lula exercer na plenitude seus direitos políticos, escreveram: “até que todos os recursos sobre sua condenação tenham sido completados em procedimentos judiciais imparciais e sua condenação seja definitiva”.

Frise-se a expressão “procedimentos judiciais imparciais”.

A Globo, tratada como ré nesse processo (não é ré porque a ação é contra o Estado brasileiro), vai continuar dizendo que essa manifestação do comitê é um pedido, que não tem efeito vinculante, isto é, o Brasil não precisa atender.

Enquanto isso, a ONU seguirá analisando o cumprimento de acordos ao redor do mundo, celebrados com a sua chancela, e apontará que nação cumpre e que nação não cumpre o que assina.

O Brasil não só aderiu ao Pacto de Direitos Civis e Políticos, ratificado pelo Congresso, como assinou um protocolo adicional, também ratificado pelo Congresso Nacional, em que aceita a jurisdição do comitê, isto é, se obriga a cumprir suas decisões.

Gradativamente, como alertou o ex-chanceler Celso Amorim, o país será tratado como pária internacional, o que acabará, mais adiante, se traduzindo em prejuízo para os negócios.

É um preço alto demais a pagar pelo erro de alguns, aí incluída a Globo, que age em defesa de seus próprios interesses, não os do Brasil.