Globoplay higieniza alcoolismo de Raul Seixas em série biográfica

Atualizado em 20 de agosto de 2025 às 9:12
Ravel Andrade no papel de Raul Seixas

A plataforma Globoplay lançou uma série biográfica romanceada em oito capítulos sobre a trajetória errática de Raul Seixas. O formato escolhido abre uma discussão complexa: por mais extensa e intrincada que tenha sido a vida de Raul, o modelo de “novelão” da Globo é mais fácil e palatável ao grande público.

Nada contra novelas e grande público; ao contrário, esse era justamente o alvo de Raul — falar com o maior número de pessoas possível.

A crítica recai sobre os deslizes históricos e a “liberdade poética” esboçada nos oito capítulos dessa saga rock’n roll tupiniquim, que por vezes beira o anacronismo. A dedicada interpretação de Ravel Andrade como Raul Seixas — em alguns momentos um pouco forçada na pronúncia baiana —, não salva o conjunto.

Ele consegue capturar a essência do artista de forma sensível e instintiva. A direção de arte, fotografia e trilha sonora são bem construídas, evocando com competência o espírito da época retratada e a atmosfera onírica que marcava a obra de Raul. Porém, a abordagem da ditadura militar, período central para sua carreira, é superficial, apagando parte importante do contexto em que Raul se consolidou e criou sua legião de seguidores.

Há simplificações marcantes, como reduzir “Raulzito” a um sonhador obcecado por fama nos primeiros episódios, ignorando seu lado intelectual e de produtor sensível. Nesse pacote, muitas figuras de apoio são retratadas de forma plana, incluindo produtores e bandas.

A caracterização de Paulo Coelho, interpretado por João Pedro Zappa, chega a ser caricata e desconectada da complexidade da parceria, responsável por clássicos como “Maluco Beleza”, “Ouro de Tolo”, “Metamorfose Ambulante” e “Gita”. O elenco de apoio não brilha, com exceção de Amanda Grimaldi como Edith Wisner.

A narrativa não linear pode confundir alguns espectadores e exige paciência. Um exemplo de deslize é a aparição de Rita Lee vestida de noiva no FIC de 1972, quando Raul cantava “Let Me Sing, Let Me Sing”, algo historicamente incorreto. A real é que os Mutantes, com Rita caracterizada de noiva, se apresentaram no MIDEM em 1969.

A vida de Raul Seixas foi curta: morreu em 1989, aos 44 anos, em decorrência de pancreatite aguda causada pelo consumo excessivo de álcool e pelo descuido com sua saúde. O vício é tratado de forma superficial pelos roteiristas, que negligenciaram o impacto devastador do alcoolismo na vida pessoal e profissional do artista.

Ignorar essa dimensão é, no mínimo, uma distorção histórica que compromete a narrativa.

Poucas cenas mostram sua dependência alcoólica, como a do show em Caieiras (SP), em 1982, quando foi acusado de ser impostor de si mesmo devido ao alto grau de embriaguez. Tive a oportunidade, quando era garoto, de ver Raul ao vivo no Colégio Equipe; ele não conseguiu terminar o show devido ao alto grau de embriaguez e à incapacidade motora e cognitiva.

Situações assim eram frequentes desde os anos 70, quando Raul já se assumia publicamente alcoólatra. Também no FICO de 1983, no Ginásio do Ibirapuera, subiu ao palco após doses de uísque Drury’s e mal conseguiu se manter de pé, episódio narrado por Sylvio Passos, amigo do artista.

A série acaba por suavizar Raul Seixas, transformando-o em uma versão mais comportada, menos ácida e provocadora, distante da figura complexa revelada por suas músicas e entrevistas. Essa higienização do alcoolismo e da vida turbulenta de Raul compromete a autenticidade e a profundidade da obra. Raul Seixas foi maior e mais contraditório do que a versão apresentada pela Globoplay.

Roger Worms
Roger W. Lima é músico, escritor e designer (https://www.facebook.com/roger.w.lima?fref=ts)