Governo de Jair Bolsonaro ignora princípios que orientam atuação do Itamaraty há dois séculos

Atualizado em 15 de março de 2019 às 10:44
O presidente Jair Bolsonaro empossa o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, durante cerimônia de nomeação dos ministros de Estado, no Palácio do Planalto. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Publicado originalmente no Brasil de Fato

O presidente de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL) anunciou nesta semana que irá trocar a chefia da embaixada brasileira em Washington, atualmente a cargo de Sergio Amaral, além do comando de outras representações diplomáticas. Segundo o presidente, seria função dos diplomatas reverter sua imagem de “racista, machista e homofóbico”, o que não estariam fazendo a contento. Ao todo, Bolsonaro afirmou que pretende trocar cerca de 15 representações diplomáticas do Brasil pelo mundo.

No começo do mês, o diplomata Paulo Roberto de Almeida, historicamente próximo da linha defendida pelo PSDB para a política internacional, foi demitido após publicar três textos –  de Fernando Henrique Cardoso, de Rubens Ricupero e outro do chanceler Ernesto Araújo – sobre a crise na Venezuela. Almeida conduzia o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais.

As duas iniciativas são vistas como uma tentativa do governo de ter no primeiro escalão do Itamaraty apenas quadros completamente alinhados à visão do governo em relação à política externa. Visão essa que não se limita apenas a modificar posições e cargos no Ministério de Relações Exteriores, mas que influem diretamente na condução da diplomacia brasileira.

Para dois estudiosos do tema ouvidos pelo Brasil de Fato, as opções de Bolsonaro e Araújo, mais que uma profunda reorientação na pasta, significam uma ruptura com princípios históricos da atuação do Itamaraty.

Juliano da Silva Cortinhas, professor de Relações Internacionais da UnB, explica que, apesar de submetido à orientação da Presidência, o Itamaraty construiu, ao longo de dois séculos, linhas para a política externa que se converteram em política de Estado, transcendendo a alternância entre governos.

“O Itamaraty, ao longo dos séculos de existência, conseguiu dar uma continuidade em nossa política externa. Ele é visto, pelos analistas, como o Ministério brasileiro que tem mais coerência [ao longo da História]. O Brasil é um dos poucos países do mundo que pode se orgulhar de ter relações diplomáticas com quase toda a comunidade internacional. De ter uma voz muito respeitada internacionalmente”, afirma.

Alguns desses princípios históricos, que garantiram ao Brasil a imagem de país negociador na diplomacia, são a solução pacífica de controvérsias, o respeito ao Direito Internacional e aos fóruns e organizações transnacionais.

Marcelo Zero, sociólogo especialista em Relações Internacionais, destaca que a postura brasileira de não adesão automática a nenhum outro Estado conferiu ao país um “soft power” na diplomacia (poder “suave”), colocando o Brasil em diversas vezes como elemento de mediação na política internacional.

Ele destaca que todos os governos escolheram prioridades na área – grosso modo, os governos do PSDB privilegiaram as relações com os países desenvolvidos, ao passo que o PT optou por maiores esforços com os parceiros do sul global, como a África e a própria América Latina -, mas nenhum rompeu de forma aberta com a política de Estado de perseguir interesses objetivos do Brasil.

“Claro que todo governo tem sua linha específica para a Política Externa, mas nunca se pode perder os objetivos maiores. É uma política orientada por identidade ideológica. Ele está comprando brigas que não são brigas nossas. Os tucanos, de fato, privilegiaram as relações com os EUA e União Europeia, mas não perderam de vista a América Latina, o Mercosul. Talvez não deram a relevância merecida, mas não abandonaram”, afirma.

O sociólogo afirma que o chanceler brasileiro Ernesto Araújo tem uma “visão peculiar” da política externa, que leva ao abandona da noção de política de Estado para a adoção de uma linha “hiper-ideologizada”.

“[O presidente e o chanceler] se aliaram a uma força política muito específica dos EUA. Não é nem aos interesses do Estado americano. Essa força específica, o trumpismo, tem uma visão bastante ideologizada do mundo. O Brasil se alinhou a isso, ignorando os próprios interesses objetivos do país”, afirma.

O professor da UnB concorda com a avaliação de que a política externa que vem sendo implementada representa uma profunda modificação nos princípios de atuação do Itamaraty.

“Aparentemente, só há dois meses de governo, tudo isso está sendo jogado por terra. O governo Bolsonaro está mudando esse padrão histórico que estabeleceu uma política internacional com base nos valores do Estado e está ideologizando sua política externa. Isso nunca ocorreu da forma como está ocorrendo agora”, defende.

Efeitos

Ambos pesquisadores citaram o anúncio, seguido de recuo, da transferência da embaixada em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém como um dos efeitos negativos da nova política externa, levando à indisposição de países árabes, que têm maior peso em nossas exportações do que Israel, em relação ao Brasil.

Outro fato mencionado foi a elevação de tom com a China, seguindo a retórica de Trump. O primeiro país, que compra muito mais commodities brasileiras que os EUA, acabou fechando uma grande compra de soja justamente dos estadunidenses, que se portaram com maior pragmatismo do que o chanceler brasileiro.

Por último, as declarações sobre o Mercosul também repercutiram mal. O mercado sul-americano absorve a maior parte de nossas exportações de manufaturados, onde o Brasil é mais competitivo do que em outros mercados. “Do jeito que estamos caminhando, vamos acabar exportando nem commodities, nem industrializados”, resume Marcelo Zero.