Guardas atiram em pai e filha com bala de borracha, e jovem corre risco de ficar cega

Atualizado em 3 de maio de 2021 às 21:15

Publicado originalmente na Ponte Jornalismo

Por Jeniffer Mendonça

Geovanna Teixeira, 21, e o pai Joab Teixeira, 42, estão no Hospital das Clínicas aguardando cirurgia | Fotos: Arquivo pessoal

“Foi uma noite de terror”, lamenta a dona de casa Nycole Dafne Carvalho Teixera, de 23 anos, ao relembrar sobre ação da Romu (Ronda Operacional Municipal), tropa da Guarda Civil Metropolitana de Osasco (Grande SP), durante a madrugada de sábado para domingo (3/5). O gari Joab Santos Teixeira, 42, pai de Nycole, e a irmã a servidora pública Geovanna Tawanne Carvalho Teixeira, 21, estão hospitalizados no Hospital das Clínicas, na capital paulista, aguardando cirurgia depois de terem sido atingidos por balas de borracha.

Nycole conta que Geovanna foi atingida no olho, no portão do edifício onde moram, e o pai baleado na cabeça e no abdômen e no braço, sendo que um dos estilhaços atingiu seu olho durante a ação dos guardas. “Ela já tinha um problema no olho direito porque ela só enxergava só de perto. Agora que ela foi atingida no esquerdo, ela pode ficar sem a visão”, afirma. A Romu é uma espécie de “tropa de elite” da GCM de Osasco que recebeu treinamento da Rota, a tropa mais letal da PM de São Paulo.

De acordo com ela, o pai estava num bar com amigos na Rua Gabriel Soares de Souza por volta das 23h30 de sábado, que é próxima da travessa onde residem, quando uma viatura da Romu parou e pediu para que o volume do som fosse abaixado. “O dono do bar abaixou, mas daí um dos guardas ficou encarando um dos rapazes lá e resolveu abordar”, conta. “Teve uma hora que o GCM falou para esse rapaz ‘o que foi, gostou de mim?’ e daí ele respondeu ‘eu não gosto de homem’”, prossegue. Foi nesse momento, afirma, que um dos GCMs deu uma cabeçada nesse rapaz chamado Carlos Eduardo Santos, confeiteiro de 27 anos, e começou a agredí-lo. “Ele revidou com um soco e o guarda começou a jogar spray de pimenta em todo mundo e o rapaz correu pela viela”, conta. Um dos vídeos feito por moradores mostra esse rapaz tentando se desvencilhar de dois guardas e um deles dá um chute na cabeça do jovem caído no chão.

“Eu estava em casa e fiquei sabendo que os policiais [GCM] estavam agredindo esse rapaz, eu e todo mundo fomos atrás”, lembra a dona de casa. Os dois guardas, segundo ela, voltaram com o jovem para a rua e, em outro vídeo, um deles aparece pisando e chutando em um homem de moletom vermelho enquanto os outros conduzem o rapaz, vestido de branco, à viatura. “O de vermelho é o padrasto dele, não tinha nada a ver com a situação e foi agredido”, denuncia Nycole. Em seguida, segundo ela, os guardas foram embora, mas como teriam pedido reforço, outros apareceram e começaram a abordar as pessoas que estavam nas proximidades, na Rua João Guimarães Rosa.

“Eu encontrei meu pai e a gente estava indo em direção à casa do meu avô, que fica perto, e na hora que ele estava recebendo um sermão por estar no bar aquela hora, os guardas da Romu abordaram ele”, conta Nycole. “Um veio por trás e começou a apontar e a pegar na cintura dele com truculência e eu disse que se ele [GCM] continuasse com essa abordagem, eu ia filmar”, prossegue. Nesse momento, ela afirma que o guarda lhe deu um soco e ela acabou caindo no chão. “Meu pai veio para me socorrer e nessa hora começaram a jogar spray de pimenta e um deles atirou para cima para o pessoal se afastar, todo mundo saiu correndo, mas meu pai ficou”, lembra.

“Começaram a dar muito tiro de bala de borracha em direção às pessoas e aos prédios dali e como meu pai ficou no chão, recebendo os tiros, eu comecei a gritar ‘meu deus, mataram meu pai’”, continua Nycole. De acordo com ela, nessa hora, por causa dos gritos, Geovanna foi descer do prédio. “Uma das meninas estava tentando abrir o portão para ela sair, quando ela colocou a cabeça para fora, acertaram o olho dela e a gente só começou a ver sangue jorrando. Os guardas levaram meu pai para a delegacia e não a socorreram”, denuncia.

No boletim de ocorrência, os guardas Alexandre Tavares e Alexandre Jesus Pignatari disseram que faziam patrulhamento pela Avenida Benedito Alves Turíbio, por volta das 00h30, quando munícipes teriam solicitado que eles fossem até a Rua Gabriel Soares de Souza onde estaria acontecendo um “pancadão”. Alegaram que no local haviam 100 pessoas e que pediram para que o volume do som no “Bar dos Amigos” fosse baixado e que as pessoas saíssem da via, mas que não teriam atendido. Em seguida, uma das pessoas no local teria puxado a arma do GCM Izaias Augusto de Souza e roubado um carregador com 18 munições. Os guardas alegaram que usaram “de força moderada” para conter o tumulto e que fizeram três disparos em direção a Joab porque “estava muito agressivo” e teria agredido com chutes e socos o GCM Izaias. Os guardas também afirmaram que Carlos Eduardo havia agredido os guardas Izaias e Antonio Marcos da Silva.

Na versão deles, Carlos Eduardo se machucou no momento em que saiu do local quando seria preso, “caindo de um escadão situado nas proximidades”. O GCM Izaias confirmou, na delegacia, que ele havia recebido o soco de Carlos e que, ao tentar detê-lo, teve o carregador roubado, o dedo “mordido por um desconhecido” e foi “hostlizado pelos populares que lançavam a todo momento pedras e outros objetos”. Ele também afirmou que desferiu os tiros contra Joab, mas que não havia agredido Carlos, apenas tentou “detê-lo”. Joab e Carlos foram levados para a UPA (Unidade de Pronto Atendimento) Jardim D’abril e depois para o 5º DP de Osasco.

Na delegacia, Joab contou a mesma versão de Nycole, dizendo que não havia aglomeração no local nem agredido guardas, sendo que um dos disparos de bala de borracha “atingiu a parte lateral esquerda de seu rosto e o olho esquerdo, cuja visão está comprometida” e que não enxergava por esse olho naquele momento. Já Carlos Eduardo disse que o guarda que lhe deu uma cabeçada era “de cor parda, cerca de 1,75m, 34 anos aparentes, forte” e que só revidou ao ver seu nariz sangrando. De acordo com ele, os GCMs o agrediram quando correu pela viela e que antes de o levarem para o pronto socorro e para a delegacia, haviam parado “num local ermo, longe de câmeras de segurança”. “Todos batiam ao mesmo tempo, se revezando e, enquanto um apertava seu pescoço, os demais desferiam socos à vontade, principalmente contra sua região peitoral e rosto; sendo que tinha um deles que adorava bater em seus olhos”, diz trecho do boletim de ocorrência.

O caso foi registrado como lesão corporal, resistência e furto, mas ninguém foi indiciado. O delegado Bruno Martins de Mello solicitou exame de corpo de delito em todos os envolvidos e perícia nas ruas onde o caso aconteceu, já que considerou as “versões divergentes” e “necessidade de maiores elementos para a completa apuração dos fatos”.

À Ponte, Nycole disse que Geovanna foi levada para o Hospital Antonio Giglio, em Osasco, mas que chegando ao local foi transferida para o Hospital das Clínicas, na capital paulista. “Eles disseram que o HC é especializado e que possivelmente iam tirar o globo ocular”, afirma, sem conseguir conter as lágrimas.

De acordo com ela, “a Geovanna e o meu pai são os alicerces da família”. Nycole também está muito preocupada com a possibilidade da irmã ter a visão comprometida. “Ela é uma menina linda, jovem, com sonhos que vão ser destruídos por causa da ação deles [GCM]. Eles chegam aqui na região e acham que todo mundo é bandido, tratam todo mundo mal”, desabafa. Além disso, a família teve duas perdas. “Faz nove meses que perdemos nossa mãe para o câncer e há duas semanas minha avó não resistiu a um AVC (acidente vascular cerebral). Está muito difícil, o que a gente quer é justiça”, lamenta.

A Ponte tentou contato com Carlos Eduardo, mas ele não retornou até a publicação deste texto.

O que diz a prefeitura de Osasco

A Ponte solicitou entrevista com os GCMs envolvidos bem como questionou a ação dos guardas nos vídeos gravados por moradores. Em nota, a assessoria informou que “os GCMs foram identificados e afastados das ruas” e que o caso está sendo investigado pela Corregedoria da Guarda Municipal e pelo comando da corporação.

A Secretaria de Segurança Pública informou que “as investigações foram encaminhadas ao 8º DP do município, responsável pela área dos fatos. A unidade realiza diligências visando à elucidação da ocorrência”.

A reportagem também procurou o Hospital das Clínicas cuja assessoria informou que Geovanna e Joab estão estáveis na enfermaria aguardando cirurgia, mas não deu mais detalhes.