Guia das escolas cívico-militares enfatiza submissão. Por Rodrigo Ratier

Atualizado em 3 de fevereiro de 2020 às 15:45
Escolas do DF adotam modelo de gestão compartilhada com a Polícia Militar. Foto: Reprodução/Globo

Publicado originalmente pelo UOL:

POR RODRIGO RATIER

Revelado hoje pela Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI), o manual das escolas cívico-militares já está sendo distribuído pelo Ministério da Educação às secretarias que aderiram ao programa conjunto do MEC e Ministério da Defesa.

Comparado ao barulho na comunicação, o alcance da iniciativa é irrisório: 54 escolas por ano até 2023. O Brasil, vale lembrar, tem cerca de 180 mil escolas.

Com 324 páginas, o manual reúne 11 documentos, do regulamento das escolas às normas para uso de uniformes. Há inspiração em propostas de colégios militares já existentes, geridos pelas Forças Armadas, Corpo de Bombeiros ou Polícias Militares. O MEC diz que o manual foi construído “democraticamente” junto com representantes das redes municipais e estaduais. Não detalha quem, quando, onde e como.

A recorrência de termos no documento dá pistas das inclinações e intenções. De um lado: disciplina (127 aparições), uniforme (115), respeito (81), transferência compulsória (sinônimo para expulsão, 17), civismo (13), cabelo (12), bandeira (11). De outro: pobreza (0), democracia (1), gênero (1, mas alimentício), racismo (2), desigualdade (3, nunca a social), justiça (5).

Nas escolas cívico-militares, a gestão é compartilhada. Junto a diretor, vice e secretaria, um “oficial de gestão escolar” faz parte da cúpula da administração. “Monitores”, também militares, zelam pela disciplina no ambiente. Devem ser chamados por sua patente pelo alunado. Se não souberem, por sua função.

Os aspectos folclóricos são conhecidos. Hastear a bandeira, cantar o hino, cortes de cabelo pré-determinados, uniforme (incluindo boina) asseado e completo. Defende-se, por associação automática sem argumentação consistente, que tais posturas incentivam “amor à pátria” e “sentimento de pertencimento a um país”. É possível fazer tudo isso e abominar tais valores. Ou o contrário: nada fazer (o uso recente da bandeira e do hino tem provocado repulsa em muita gente) e cultivá-los.

O modelo é conhecido. Recorre-se a uma forma de ensino concebida com a massificação do ensino há 200 anos, pautada pela autoridade incontrastada do professor, do diretor, dos membros militares. Adicionam-se valores das corporações militares – disciplina, respeito e civismo. Obtém-se uma forma escolar em que a submissão é, a um só tempo, o objetivo principal e a melhor forma de sobreviver dentro da instituição.

As referências pedagógicas consistentes estão ali – a palavra autonomia aparece 14 vezes –, mas sua utilização parece meramente cosmética. Fala-se em “pluralismo pedagógico”. Mas como imaginar a pedagogia individualizada proposta por Perrenoud quando se defende a uniformização de condutas? Como contemplar a afetividade na educação, como pede Wallon, se o comportamento é medido numericamente na forma de estímulo-resposta?

Sim, é isso mesmo. Cada aluno começa o ano com uma “nota de comportamento” igual a 8,0. Uma repreensão, por exemplo, tira 0,30. Já um elogio coletivo adiciona 0,10, e se for individual, melhor ainda: tome 0,30 na nota (“a concessão de elogio é prerrogativa do gestor competente”). Mas, cuidado: se no fim do ano a nota cair abaixo de 2,99, o estudante estará expulso por mau comportamento.

Essa é uma prática que só existe na escola, sem dialogar com a vida social. Ou você tem aí na sua carteira um boletim dizendo se seu desempenho na vida cotidiana foi “excepcional”, “ótimo”, “bom”, “regular”, “insuficiente” ou “mau”?

Quando surgem conflitos, sugere-se que se recorra primeiro a um professor, mas a intervenção militar não está descartada. A família também pode contribuir – mas a seção dedicada a ela é exemplar: pode contribuir desde que apoie o projeto da escola.

Pode-se dizer que essa forma de ensino dialoga com o desejo de parte da sociedade. Cansados da violência, imaginam encontrar nos apelos à ordem uma saída. Pode ser. A repressão tem, sim, seus efeitos. E dialoga com uma perspectiva bem brasileira de atribuir as responsabilidades por sucessos e fracassos a terceiros, em vez de tomar o destino com suas próprias mãos, por mais desafiador que isso possa ser – e é.

Só não se pode dizer que essa seja uma alternativa educativa. Em sentido amplo, a educação conduz à autonomia e à autoconstrução de conhecimentos. Como fazer isso em instituições em que é considerada uma falta comportamental desafiar as pessoas? Aliás, a definição de “desafiar” não seria propositalmente vaga?

Uma última observação: aos filhos das classes altas, as boas experiências de gestão participativa e de educação libertadora estão disponíveis e são valorizadas. Já escrevi anteriormente neste espaço sobre as ótimas experiências de educação democrática também nas redes públicas. Mas, aos filhos das classes populares (subtexto: sem valores, de famílias “desestruturadas”), recomenda-se a educação militar. A opção é tudo, menos pedagógica.