Guru da cloroquina, Didier Raoult incita ataques de grupos negacionistas a médicos e cientistas na França

Atualizado em 24 de setembro de 2021 às 15:27
Senador Luis Carlos Heinze, o “Rancho Queimado”. Foto: Reprodução/Twitter

Um grupo de neonazistas foi preso nesta semana na França, acusado de preparar uma série de atentados contra centros de vacinaçao contra a Covid-19, ministérios e antenas 5G. Detidos na última terça-feira, eles vão responder à justiça em liberdade a partir desta sexta por organização terrorista.

Dois dentre os detidos seriam membros, e um deles diretor, do grupo neonazista Honneur et Nation (Honra e nação). Os outros três são apontados pela imprensa francesa como próximos do grupo, mas não necessariamente neonazistas.

Dois teriam participado do sequestro da menina Mia (8) este ano, raptada da avó, que detinha sua guarda, e levada para a mãe, Lola Montemaggi, extraditada da Suíça, onde fazia parte do One Nation, grupo nascido nos Estados Unidos, de adeptos de teorias conspiratórias antivacina, em torno da tecnologia 5G e que acredita num complô mundial de elites em prol da pedofilia.

Estímulos ao terror

Problema crescente na Europa, o terrorismo de extrema direita tem uma dimensão particular na França.

A retórica conspiratória é frequentemente alimentada por canais de televisão a cabo, como BFMTV e CNEWS, que dão ampla exposição a figuras como Eric Zemmour e Didier Raoult.

O primeiro é candidato ainda não oficial de extrema direita à presidência, cotado em torno de 11% das intenções de voto, segundo pesquisas de opinião. Condenado diversas vezes por racismo e incitação ao ódio, é comentarista do canal CNews e articulista do jornal conservador Le Figaro. Favorável a privatizações, ele é adepto da teoria de uma grande substituição da civilização cristã pela muçulmana através da migração em massa.

Raoult, entrevistado recorrentemente pela BFMTV, promove uma cruzada contra a comunidade médica contrária ao seu tratamento ineficaz a base de cloroquina para a Covid-19.

Forca e guilhotina

Recentemente, o professor de Marselha compartilhou um editorial do site de extrema direita France Soir, que insinuava um pedido de guilhotina para uma série de grupos da sociedade.

O editorial, publicado no fim de agosto, dizia que tanto os confinamentos quanto o passe sanitário (vacinação e teste negativo em locais fechados), exigidos para conter a propagação do coronavírus no país, constituem uma fraude. Sugeria que a vacina contra a Covid-19 pode gerar mais mutações e induzir mais mortes do que a ausência de vacinação.

Em vídeos no YouTube, Raoult sugere ineficácia de vacinas contra Covid-19. Foto: Reprodução/IHU Mediterranée-Infection

As insinuações são refutadas pela redução de mortes onde a vacinação é maciça, seja na França ou no Brasil.

A publicação anônima, assinada por um “médico resistente”, considera como escândalo que o “tratamento precoce” associando azitromicina e hidroxicloroquina (o remédio proposto por Raoult e a extrema direita bolsonarista) “não” tenha sido avaliado e que a ivermectina tenha tido o mesmo destino.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) não recomenda o uso de nenhuma dessas drogas para o tratamento de Covid-19.

“Quem está por trás dessa fraude? Certamente não (para fazer alusão a uma polêmica recente) a comunidade judia, portadora de uma das mais belas espiritualidades e injustamente atacada. Quem? Aqueles que lucram com o crime. A indústria farmacêutica, os médicos corruptos, os políticos com ideologia europeísta e globalista que, depois de décadas afundando nosso país, destruindo metodicamente seus valores ancestrais (patriotismo, segurança, educação, cultura, família tradicional, moral universal cristã secular) por alta traição arruinaram a França”, diz a publicação.

“Um processo deverá ter lugar. A Viúva se impacienta. Tudo está claro”, finaliza.

“Viúva” é o apelido que se dava na França à forca e à guilhotina. Já o “processo” foi compreendido pela imprensa francesa como uma alusão ao tribunal de Nuremberg, que resultou na condenação à morte de 12 pessoas.

A “solução” proposta provocou grande polêmica, levando a publicação de extrema direita a adicionar um adendo pouco convincente de que fazia referência às mulheres que ficaram viúvas durante a pandemia.

Didier Raoult compartilhou o “manifesto”, endossando-o com as seguintes palavras: “Nesse artigo, France Soir revê um ano de pandemia marcada por uma multiplicação de fraudes e mentiras”. Esqueceu de mencionar que ele próprio é o autor da maior delas.

Indignação

Um coletivo de cientistas e médicos citados e visados pelo artigo, dentre eles diretores de hospitais, reagiram com indignação, condenando tanto o jornal quanto a conduta de Raoult, que possui milhares de seguidores no Twitter.

“O texto de France Soir marca um ponto de inflexão nessa escalada de ameaças e violência com incitação ao cometimento de crimes”, diz artigo do coletivo publicado no início deste mês.

“Não compreendemos a inação do poder público”, diz o coletivo, aludindo à impunidade contra a conduta de Raoult. Como o DCM informou, ele foi recentemente reconduzido por mais um ano ao cargo de diretor do laboratório Institut Hospitalo-Universitaire de Marselha.

“Muitos de nós (ou daqueles que nós representamos) sofreram e continuam sofrendo ameaças de morte e agressões físicas desde o início dessa crise”, denuncia.

“Não estamos ao abrigo de uma passagem ao ato”, disse um dos signatários.