Há quase 50 anos, Allende defendia a democracia com o fuzil nas mãos. Por Emir Sader

Atualizado em 11 de setembro de 2020 às 6:46
Salvador Allende, com a metralhadora que ganhou de presente de Fidel Castro
Como eu morava a duas quadras do Palacio da Moneda, acordei, de novo, com o ruído dos aviões que sobrevoaram o palácio presidencial. Em junho de 1973, havia passado algo similar, militares tentaram derrubaram o Allende, mas ele conseguiu contornar a tentativa.
Desta vez as coisas se passariam de maneira diferente. Me dei conta já ao chegar à praça e ver o Palácio completamente cercado pelas tropas, com Allende solitário, na janelinha de onde costumava discursar, com o fuzil AK que o Fidel lhe havia dado de presente e o capacete que os mineiros lhe haviam entregado pouco tempo antes.
Allende já havia feito seu ultimo discurso. Miguel Enriquez, dirigente do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) já havia telefonado para Allende, falado com sua filha Beatriz Allende, proposto que ele depusesse todos os militares e colocado um fiel a ele, nem que fosse de baixa patente; proposto que ele fizesse uma declaração conclamando o povo à resistência; e que um comando do MIR estava pronto para tirá-lo do Palácio e levá-lo para um bairro popular, porque ele era o presidente legal do Chile e continuaria a ser reconhecido internacionalmente.
Allende pediu à sua filha que respondesse que ele não podia fazer nada mais, que iria cumprir o que sempre dissera: sairia do Palácio da Moneda no final do seu mandato ou morto. Que a continuidade da luta, a reabertura das grandes alamedas do Chile seria feita por novas gerações.
Allende fez com que sua filha, grávida, e outras pessoas que estavam com ele, abandonassem o Palácio, depois de negar a oferta dos golpistas de que ele também saísse dali. Ficaram apenas algumas pessoas com ele, entre elas, a Payita, sua companheira.
Allende retomou seu lugar na janelinha e recomeçou a disparar contra o golpistas, que lhe deram o prazo das 12 horas para que se entregasse, senão disparariam diretamente sobre o Palácio da Moneda.
Allende se recusava sistematicamente a atender a pessão dos golpistas, até que às 14 horas deu pra ver os caças britânicos disparando sobre o Palácio da Moneda, que começou a ser envolto em densa fumaça. Nos dávamos conta de que Allende não só não sobreviveria, como ali terminava a democracia no Chile, que havia tido apenas duas breves interrupções desde a estabilização da independência com o Portales, em 1830.
Payita me contou que Allende se retirou para sua sala no Palácio e atirou com o fuzil sobre seu queixo, suicidando-se.
Hortencia Bussi de Allende, a esposa de Allende, conseguiu sair para o México, onde o presidente Echeverria lhe convenceu a dizer que Allende não se havia suicidado, mas havia sido morto pelos disparos aéreos. Versão que se manteve por um tempo, até que toda a esquerda chilena se rendeu à versão da Payita, que conseguiu sair do Palácio no meio dos cadáveres e chegar à embaixada da Suécia, que havia abrigado a todos os da embaixada de Cuba, depois que esta perdeu caráter diplomático a ruptura das relações pela Junta Militar golpista.
Tudo se deu terça-feira 11 de setembro. No domingo, 9 de setembro, Allende se havia dado conta de que não conseguiria se manter na presidência e havia tramado uma operação política para tentar desarticular o golpe, depois de ter nomeado os militares golpistas para o seu governo, tentado neutralizá-los. Allende pensava chamar um plebiscito por cadeia nacional na quarta-feira dia 12, sobre um tema de caráter universitário, que ele tinha certeza de que perderia. Ele renunciaria e entregaria a presidência ao presidente do Senado, Eduardo Frei, ex-presidente do Chile.
Mas Allende confessou seus planos para o próprio Pinochet, seu ministro no governo. Pinochet acelerou então os planos golpistas, que estavam previstos para depois da quarta-feira, e desatou os planos na própria segunda-feira, com a Armada chilena começando a sublevação em Valparaiso, já na segunda-feira 10, à noite.
Allende morreu heroicamente, com o fuzil nas mãos, no dia 11 de setembro de 1973, há 50 anos, defendendo a democracia em que ele tanto acreditava.