Há a destruição da soberania brasileira e a debacle de ‘agendas ambientais’ nunca vista na história, diz pesquisadora

Atualizado em 12 de janeiro de 2020 às 8:46
Desmatamento. Foto: Instituto Socioambiental – ISA

Publicado originalmente no Instituto Humanitas Unisinos

POR PATRICIA FACHIN

Entre as inúmeras declarações polêmicas do governo Bolsonaro na condução da agenda ambiental em seu primeiro mandato, “o que nos atingiu neste ano desastroso no trato do meio ambiente foi a incompetência e o firme propósito de tornar o Brasil um deserto, um campo farto para a exploração de riquezas minerais, da extração de madeiras nobres da floresta, para a produção de commodities agrícolas”, diz Telma Monteiro à IHU On-Line.

Na avaliação dela, o primeiro ano da gestão Bolsonaro indica que o governo não tem uma agenda ambiental e tampouco comete equívocos na área. Ao contrário, por meio do Ministério do Meio Ambiente, que atua deliberadamente, está em curso uma “destruição disfarçada de soberania”. “Ficou claro que a estratégia de Bolsonaro foi entregar o Ministério do Meio Ambiente para alguém com a competência e a incumbência de depreciá-lo, reduzir sua importância, promover o desmanche da sua estrutura institucional e transformá-lo numa espécie de sucata inoperante”, afirma, ao comentar a atuação do ministro Ricardo Salles.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Telma faz uma retrospectiva dos principais problemas ambientais do país em 2019 e comenta a proposta do governo de dar continuidade à construção de novas hidrelétricas na Amazônia, como as usinas de Bem Querer, em Roraima, Tabajara, em Rondônia, e São Luiz do Tapajós, no Pará. “Construir hidrelétricas em regiões remotas da Amazônia tornou-se um grande negócio para empreiteiras e políticos corruptos. Os custos de implantar uma grande obra no meio do nada passaram a ser astronômicos e financiados pelo próprio governo; a fiscalização inexistente, o que facilitou aditivos. Acrescente-se a isso a construção de linhas de transmissão que cruzaram o Brasil, como as que saíram das usinas do rio Madeira e de Belo Monte”, adverte.

Telma Monteiro é especialista em análise de processos de licenciamento ambiental e pesquisadora independente.

A entrevista foi publicada originalmente pelo IHU no dia 08-01-2020.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A agenda ambiental do governo Bolsonaro está sendo bastante criticada. Em que aspectos o governo está cometendo equívocos, na sua avaliação?

Telma Monteiro – Eu não chamaria de equívocos. Equívocos pressupõem erros involuntários, ou desacertos, ou lapso de visão de questões que surgem e que requerem procedimentos baseados na legislação, nesse caso, do meio ambiente. O governo Bolsonaro não está cometendo equívocos, ele está fazendo uma transformação proposital de todo o sistema ambiental brasileiro. Durante a campanha à presidência, Bolsonaro declarou que extinguiria o Ministério do Meio Ambiente – MMA. Gerou muita polêmica e medo entre os defensores do meio ambiente, ativistas, ONGs, cientistas, pesquisadores e professores. Extinguir o Ministério do Meio Ambiente seria uma espécie de “fim do mundo ambiental” brasileiro.

Eleito, Bolsonaro usou de uma tática predadora, mas que no primeiro momento acalmou as expectativas da sociedade: manteve o Ministério do Meio Ambiente e criou uma ansiedade coletiva sobre o futuro titular da pasta. Eliminar o ministério, objetivo anunciado durante a campanha, teria sido uma estratégia do “bode na sala”. Então, quando o presidente declarou que não extinguiria mais o Ministério do Meio Ambiente, houve um alívio inicial, pois melhor ter um ministério do que não ter nenhum. Será? Então, diante da perplexidade dos ambientalistas, ele indicou o advogado Ricardo Salles para ser o ministro.

A mídia ferveu, os ambientalistas colapsaram, pois Ricardo Salles, sabidamente, é réu por improbidade administrativa por atos cometidos quando esteve à frente da Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo, durante o governo de Geraldo Alckmin (PSDB). E, para completar, é ligado umbilicalmente aos ruralistas.

Ele é a antítese do ministro de Meio Ambiente que o Brasil precisa para enfrentar tantos desafios como o de cumprir o Acordo de Paris. Faz contraponto ao movimento dos principais líderes mundiais preocupados com a pauta de redução das emissões de GEE (Gases de Efeito Estufa), para evitar que a temperatura global suba 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais.

Ricardo Salles é, sem dúvida, o homem certo para travar as agendas ambientais em curso e atrapalhar bem a imagem do Brasil no exterior. Seria esse o objetivo de Bolsonaro? Sim, basta relembrarmos os desdobramentos dessa escolha e suas consequências funestas, com tantos compromissos descumpridos e descasos com o meio ambiente. Sem contar os vexames de sua participação na COP25, em que fez um discurso ostensivo para exigir que os países desenvolvidos pagassem ao Brasil pela preservação da Amazônia. Foi em busca de dinheiro. Há que se lembrar, também, que a reunião preparatória para a COP25 seria realizada no Brasil, na Bahia, e Salles a cancelou. Outro vexame internacional. Não satisfeito, arrematou que essa reunião só serviria para se fazer turismo na Bahia e comer acarajé. Bolsonaro não poderia ter feito uma escolha melhor para os seus propósitos de desmontar todas as conquistas feitas pelo Brasil e a sua longa trajetória como exemplo de preservação ambiental!

Brasil na COP25

Na COP25, o Brasil foi considerado um estranho no ninho, dadas as políticas ambientais adotadas pelo governo Bolsonaro e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Ao falar na COP25, Salles afirmou que o Brasil estaria comprometido em combater as mudanças climáticas. Mentira facilmente constatada pelos países da cúpula. As imagens do mais recente conflito, dos brigadistas e as queimadas em Alter do Chão [Santarém], às vésperas da COP25, estampadas em todos os principais jornais do mundo, comprovaram isso.

Então, respondendo à sua pergunta, configura-se que não houve equívocos na agenda ambiental de Bolsonaro, tendo em vista o histórico da atuação do ministro Salles. Ficou claro que a estratégia de Bolsonaro foi entregar o Ministério do Meio Ambiente para alguém com a competência e a incumbência de depreciá-lo, reduzir sua importância, promover o desmanche da sua estrutura institucional e transformá-lo numa espécie de sucata inoperante; incapaz de conduzir e dar continuidade aos compromissos internacionais, já assumidos pelos governos anteriores, de redução de emissões e diminuição do desmatamento da Amazônia, questões bastante complexas que requeriam um ministro apto, conhecedor da legislação ambiental e comprometido com o Brasil do século XXI.

Sim, Bolsonaro planejou destruir a credibilidade da agenda ambiental do Brasil, líder mundial, exemplo internacional, até então, em questões que levaram décadas de ativismo para serem implementadas e consolidadas. Basta ver a liberação dos agrotóxicos em 2019, que até setembro chegou a 325. Marca histórica.

Populações tradicionais

Como se não bastasse, presenciamos fatos decorrentes da falta de agenda ambiental que colocaram em risco o meio ambiente e as populações tradicionais que dele sobrevivem. Estamos assistindo todos os dias aos ataques a indígenas nos estados do Norte e Nordeste brasileiro. Um verdadeiro genocídio está acontecendo. Parece normal o ataque aos indígenas; as pessoas já não se surpreendem e as emissoras de TV não dão o devido destaque. É a banalização da tragédia. Parece que estamos numa franca escalada para exterminar as populações originárias. Quando foi que isso começou? Quando os eleitores de Bolsonaro o elegeram passaram um cheque em branco para matar indígenas, destruir o meio ambiente, violando a Constituição Federal. Por falar em direito dos povos originários, é bom lembrar aos brasileiros o que está na Constituição Federal, o Art. 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Bolsonaro está tentando fazer com que os indígenas sejam menos indígenas porque querem ter celular. As pessoas estão se revelando protegidas sob um guarda-chuva fascista de um presidente brasileiro que elogiou os EUA pelo extermínio de seus indígenas.

Destruição disfarçada de soberania

Nada nos havia preparado para a catástrofe de Ricardo Salles à frente do MMA e nem de Bolsonaro como presidente; o planejado não é executado, providências oficiais para minimizar os danos morais, sociais e ambientais que permearam a (não) gestão ambiental de 2019 e os desastres que pautaram o ano. Isto esteve claro, por exemplo, quando Bolsonaro atribuiu às ONGs os incêndios na Amazônia, que ele mesmo incentivou em seus discursos desvairados a proprietários de terras limitadas por áreas de floresta. Na verdade, o que nos atingiu neste ano desastroso no trato do meio ambiente foi a incompetência e o firme propósito de tornar o Brasil um deserto, um campo farto para a exploração de riquezas minerais, da extração de madeiras nobres da floresta, para a produção de commodities agrícolas. Uma destruição disfarçada de soberania. A agenda ambiental do governo Bolsonaro não existe. No lugar dela o mundo assistiu às queimadas dos biomas, à destruição da biodiversidade importante para a sobrevivência dos povos da floresta e dos ribeirinhos, estes últimos os grandes entraves para a implantação de uma agenda fascista da economia liberal de Paulo Guedes.

Bolsonaro vai mais além, quando dá à ministra da Agricultura, Tereza Cristina, espaço e um assessor, Ricardo Salles, para impor influência direta do agronegócio sobre o MMA.

Retrospectiva da catástrofe

Deixo então, aqui registrada, uma retrospectiva desta catástrofe que tem sido a política ambiental do governo de Jair Bolsonaro e de seu boneco de ventríloquo, Ricardo Salles, um analfabeto em meio ambiente.

Em maio deste ano Salles criou um imbróglio com a Noruega e a Alemanha, doadores do Fundo Amazônia – FA há dez anos para combate ao desmatamento da Amazônia, ao afirmar que haveria irregularidades no uso, pelas ONGs, dos recursos do FA. Não se constataram irregularidades nos projetos das ONGs. Ele não conseguiu provar a suspeita. Mesmo assim, o Comitê Orientador do Fundo Amazônia – Cofa, foi extinto por Ricardo Salles e, com isso, os mantenedores suspenderam a remessa de recursos em 2019, e o FA foi praticamente extinto. Sem os recursos do fundo foram paralisados os projetos de prevenção aos incêndios na floresta, com treinamento de brigadistas, compras de equipamentos e veículos, estratégias de detecção de fogo, programas com instituições de monitoramento via satélite.

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe, uma das instituições beneficiárias do FA, anunciou o aumento do desmatamento na Amazônia. Esse anúncio não agradou a Bolsonaro, que acabou por mandar demitir o diretor do Inpe, Ricardo Galvão, considerado pela revista Nature um dos 10 cientistas mais influentes do mundo. A “agenda ambiental” de Bolsonaro e Salles não permite um aumento do desmatamento. Os cálculos devem estar errados, segundo Bolsonaro. Como é possível um cientista de renome internacional, respeitado, se atrever a anunciar o aumento do desmatamento sem que o governo “confira” as contas?

Os desacertos foram se sucedendo ao longo do ano e aí veio o desastre de Brumadinho, quando a barragem de rejeitos da Vale se rompeu ceifando 270 vidas e destruindo a biodiversidade da região. Até hoje há 13 corpos não encontrados. A Vale não pagou as indenizações e as multas e as sanções dos órgãos do MMA não vieram. Bolsonaro e Salles passaram batidos por mais essa.

Incêndios na Amazônia

Depois tivemos os incêndios na Amazônia que recrudesceram de tal modo, incentivados por Bolsonaro e seus discursos. O ápice foi o incentivo aos proprietários de terras na região da BR 163 que se sentiram seguros apoiados pelo presidente, a ponto de criarem “o dia do fogo” que se propagou e se tornou incontrolável. O desmanche da estrutura do MMA, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama concorreu para que uma Amazônia em chamas se tornasse o inferno na Terra. As equipes do Ibama para o combate às queimadas estavam desmanteladas, e o território ardeu como jamais. Não vimos um gesto sequer do governo no sentido de coibir o sacrilégio que ali se instaurara. Como se isso não fosse o suficiente, Bolsonaro rejeitou ajuda internacional, criando ainda uma saia justa com o presidente francês, Emmanuel Macron, que ofereceu recursos para ajudar no combate ao fogo da Amazônia. Bolsonaro, não satisfeito, dando seguimento à sua política arrasa quarteirão, culpou as ONGs pelas queimadas e vociferou que a Europa queria se apoderar da Amazônia. Foi uma verdadeira debacle de “agendas ambientais” nunca vista na história.

Vazamento de óleo

Dando continuidade ao desmanche, conselhos foram extintos, recursos cortados e um ministério à deriva pautou a política antiambiental de Salles e Bolsonaro. Chegamos, então, ao vazamento de petróleo nas praias do Nordeste que começou a aparecer no final de agosto. As praias mais lindas do Brasil se tornaram depósito de óleo cru (estimou-se em mais de quatro mil toneladas retiradas) cuja origem até hoje não se sabe. Em situação vexaminosa, mais uma vez, com a Marinha dirigindo as investigações, sem a participação dos pesquisadores e das universidades, uma chanchada de notícias hilárias, como a acusação inicial de que a Venezuela teria despejado óleo no litoral brasileiro, ou que um navio Grego, o Bouboulina, havia vazado o óleo venezuelano que chegara à costa brasileira; e se não bastasse, nas buscas atropeladas pela incompetência, mais um navio, desta vez de bandeira liberiana, se tornou suspeito. O óleo continua aparecendo e ameaçando o Parque Nacional de Abrolhos e os recifes de corais; já há vestígios no Sudeste, mas até o momento nenhuma perspectiva de descobrir a origem foi apresentada. A Marinha fez um último comunicado dando conta que as investigações não tinham sido conclusivas e que não identificaram a origem do vazamento.

Enquanto isso a população local de pescadores, das praias atingidas, num mutirão emocionante, sem equipamento de proteção, sem controle da contaminação que poderia causar o contato com o óleo, começou a limpeza, tentando evitar que o óleo chegasse à areia. Quase 60 dias se passaram do início do vazamento e o governo não se mexeu. Parecia alheio e feliz, creditando, para horror do mundo, o vazamento do óleo ao navio do Greenpeace.

Nem Bolsonaro e nem Salles mencionaram que havia um Plano Nacional de Contingência – PNC para situações de vazamento de petróleo no mar, concebido em 2013, e que estabelecia uma estrutura organizacional que deveria ser acionada pelo governo em caso de desastre. Mas foi desativado pelo próprio governo no início de 2019.

Todo um arcabouço de planos emergenciais, com brigadas treinadas nos estados e municípios, equipamentos de contenção ainda no mar para evitar que as manchas chegassem às praias, detecção do vazamento ainda em mar aberto para seguir sua trajetória, todos os procedimentos necessários para uma situação de desastre dessa magnitude foram ignorados pelo governo inapto de Bolsonaro, pela Marinha e por Ricardo Salles. Estava confirmada a gestão antiambiental.

Quero reforçar um alerta já feito. O desastre se consolidou, ainda é uma ameaça. Porém, o mais grave é que diante da iminência de vazamentos possíveis, decorrentes da exploração do pré-sal em áreas que foram objeto de leilão em novembro, o governo tem que se preparar e retomar os programas de contingenciamento que foram desmantelados.

Quando você acha que acabou, a realidade da inoperância proposital e a incompetência criminosa mostra sua cara. A saga das queimadas na Amazônia recrudesceu. No início de dezembro, mesmo com toda a exposição internacional que culpou o governo brasileiro pelo descaso, mais uma tragédia coroou essa gestão antiambiental insana. Desta vez, foram as queimadas na floresta do paraíso chamado Alter do Chão, distrito de Santarém, no Pará, na beira do rio Tapajós.

Alter do Chão é uma joia de praias de água azul turquesa e que pertence ao rio Tapajós e a seus povos. Alter do Chão depende da doação de organizações para que se mantenha incólume. O rio oferece esse bem precioso e nós temos que cuidar dele. No entanto, o que presenciamos foi fogo criminoso, consequência de disputas fundiárias, que culminaram com a prisão de jovens brigadistas inocentes, voluntários e equipados graças às doações de organizações da sociedade civil, para prevenir e apagar focos de incêndios na região.

A prisão autoritária dos quatro jovens, pela polícia civil do estado, a mando do governador, não recebeu atenção do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ou um gesto de solidariedade sequer. Não bastasse isso, o presidente da República, diante de um teatro montado para desqualificar o trabalho de ONGs na região, chegou a atribuir os incêndios da floresta a um ídolo internacional, famoso e respeitado pelas doações a causas ambientais, o ator Leonardo DiCaprio. Essa ópera bufa fez a dupla Salles/Bolsonaro se tornar objeto de chacota na mídia internacional. Os desacertos nas questões ambientais levadas adiante, pelo ministro e pelo presidente da República, são infindáveis e dificilmente reversíveis. Eles cometeram crime contra a Natureza. Devem pagar por isso.

IHU On-Line – Que balanço você faz da conclusão da hidrelétrica de Belo Monte, que foi amplamente contestada por ambientalistas e movimentos sociais durante a sua construção? Quais foram os custos sociais e ambientais desse empreendimento?

Telma Monteiro – Tudo, acredito, já foi escrito sobre Belo Monte. Pesquisadores, ambientalistas, professores, organizações internacionais já manifestaram publicamente o que significa hoje a hidrelétrica de Belo Monte para a região do Xingu. Eu mesma já escrevi inúmeros artigos, análises, coautoria de livros, antes, durante e depois do advento de Belo Monte. Mas nada do que foi escrito, nem as piores previsões, fez justiça à tragédia que se tornou Belo Monte para os povos da região, para o município de Altamira e para o rio Xingu e sua biodiversidade.

O projeto concebido desde os anos 1970 passou por etapas que se pode considerar traumáticas. A visão que tenho hoje é a de que houve um primeiro momento em que pensávamos que nossa luta contra a construção de Belo Monte no rio Xingu poderia ser ganha. Afinal, nós tínhamos todos os estratos da sociedade solidários com a causa. Ativistas locais, ambientalistas, indígenas das terras afetadas, as populações ribeirinhas, a academia, a igreja, pesquisadores, o ministério público, a mídia internacional, alguns jornais e emissoras no Brasil, atores internacionais, ONGs nacionais e internacionais.

Oposição a Belo Monte

Havia um arcabouço de forças que nos levava a crer que venceríamos, pois nossos inimigos eram o governo e as empresas que se beneficiariam da construção. Se você juntasse toda a sociedade, veria que nós sempre fomos maioria e que os estudos, livros, artigos, documentos, análises mostraram exatamente o que está acontecendo hoje, quando Belo Monte alterou para sempre a face da Amazônia e do rio mais amado do Brasil, o Xingu.

Fomos uma força que não via limites para atuar. Os recursos financeiros não faltaram para mostrar ao mundo que nosso mundo estava sendo terrivelmente alterado e se transformaria num trauma que jamais será superado. Belo Monte é isso hoje, uma marca, um monumento à nossa incompetência por acreditar que bastava provar cientificamente que os impactos seriam piores do que os apresentados nos estudos. Que a energia a ser gerada não compensaria a destruição, nem os custos. Mas, mesmo que compensasse, o preço a pagar era uma ameaça ao futuro das novas gerações. Não haveria como repor a destruição das vidas dos povos do Xingu, da beleza que fora brilhantemente concebida pela Natureza.

Belo Monte se tornou um mausoléu que lembrará às futuras gerações como um projeto que fora concebido para satisfazer a ganância, pode mudar a face do planeta, o clima, num mundo em que, atualmente, todo o equilíbrio é precioso. Qualquer alteração num ecossistema pode ser uma porta para o fracasso da humanidade e da perpetuação da raça. Não dá para se pensar que ao erguer um monstro no meio da região onde estão terras indígenas, populações tradicionais e trechos de rio absolutamente únicos na sua biodiversidade, não tenhamos que pagar por isso no futuro.

Custos sociais e ambientais

O rio Xingu é um monumento da Natureza numa Amazônia, agora frágil, mas rica de vida e de história. E quando você me pergunta sobre os custos sociais e ambientais resultantes da construção de Belo Monte, eu só posso responder que nunca saberemos a dimensão ao certo. Podemos vislumbrar aquilo que hoje está acontecendo, com a fragilização da floresta, com a mudança nos hábitos dos indígenas das terras na Volta Grande do Xingu, com a desesperança de toda uma população que foi levada a acreditar nas promessas não cumpridas, mas gravadas a ferro e fogo nas condicionantes obtidas a fórceps pela sociedade civil e pelo ministério público, no curso do processo de licenciamento; na miséria e na violência, resultados do inchaço urbano provocado pela corrida em busca de empregos e oportunidades sonhados por pessoas vindas de todos os rincões do Brasil; na decepção da população de Altamira que sonhou com uma cidade limpa, com saneamento básico, mais escolas, creches, hospitais e postos de saúde. Onde estavam empreendedores e governo quando uma revolta dizimou a população carcerária da penitenciária de Altamira que não suportou a pressão de uma estrutura decadente e corrupta?

Belo Monte serviu, sim, para favorecer o “pode tudo” na região afetada, como a possibilidade de mais um desastre, a exploração de ouro pela mineradora canadense Belo Sun Mining, que está licenciando a maior mina a céu aberto do Brasil, umbilicalmente unida às estruturas do monstro e que pretende dali retirar 59 toneladas de ouro. Mais um impacto, cujas consequências são impossíveis de avaliar, no presente e no futuro, se for concretizada.

Recentemente, com a seca na região, o rio Xingu tem apresentado baixas vazões, reduzindo ainda mais a capacidade da hidrelétrica de gerar a energia prevista. Como solução para o impasse, o consórcio responsável pela usina, a Norte Energia, solicitou licença para construir usinas termelétricas no entorno de Belo Monte, para poder entregar toda a energia vendida no leilão. Ouvidos moucos e interesses escusos fizeram erigir uma hidrelétrica que barrou o rio Xingu, destruiu a Volta Grande, e não produz a energia que deveria conforme os termos do leilão e das licenças dadas pelo Ibama. Agora, a Norte Energia não vai poder entregar a energia que deveria escoar pela Linha de Transmissão que custou R$ 15 bilhões, construída pela chinesa State Grid, mais uma beneficiária, junto com as grandes empreiteiras que queriam os lucros das obras civis, das escavações, da construção do canal, dos diques, das estruturas dos dois reservatórios, outros R$ 40 bilhões. O saldo é esse, por enquanto.

Belo Monte serviu para expor a miséria e o desrespeito que brasileiros e brasileiras sofrem por parte de governos sucessivos. Só quem lá esteve pode testemunhar a mentira, o engodo e a falta de respeito de que são alvo. E, para finalizar, eu não podia deixar de acrescentar que o presidente Bolsonaro foi a Altamira para colocar a cereja do bolo. Inaugurou a última turbina de Belo Monte, assinando, assim, seu nome embaixo dos nomes dos demais assassinos do rio Xingu e da sua biodiversidade. A história lhe fará justiça, pois quem dá vida ao monstro é quem inaugura.

IHU On-Line – Os governos Lula e Dilma foram bastante criticados por investirem na construção de novas hidrelétricas no país. O governo Bolsonaro, por sua vez, também aposta nessa via e já sinalizou a intenção de retomar o plano de erguer grandes hidrelétricas na Amazônia, como as hidrelétricas Bem Querer, em Roraima, e Tabajara, em Rondônia. Que informações a senhora tem sobre essas propostas e quais são os possíveis impactos desses empreendimentos para a Amazônia?

Telma Monteiro – Não poderia ser de outra forma. Neste 2019, pautado pela polarização política, ano em que houve retrocesso em todas as conquistas da sociedade brasileira nas últimas décadas, dar continuidade ao plano de construir mais hidrelétricas na Amazônia seria previsível, em se tratando do governo Bolsonaro. Notícias já veiculadas nos dão a pista sobre a retomada dos projetos que constam do Plano Decenal de Energia 2027. Quero mencionar que retomar a UHE São Luiz do Tapajós, no rio Tapajós, no Pará, mesmo depois que os estudos ambientais foram arquivados pelo Ibama, também está nos planos do governo Bolsonaro.

O que mais me preocupa é que o Ministério do Meio Ambiente pretende “cortar caminho” para licenciar esses projetos hidrelétricos. Isso significa uma simplificação do processo de licenciamento ambiental que pode tornar um projeto no papel numa obra, num piscar de olhos.

Usina Hidrelétrica Bem Querer

A UHE Bem Querer foi planejada para barrar o rio Branco, no Estado de Roraima; um território extenso, vítima de um histórico traumático de ocupação ilegal de terras, que sempre ignorou os direitos dos povos indígenas e a preservação do meio ambiente. Graças às terras indígenas e às Unidades de Conservação, que são parte considerável do Estado, conseguiram garantir certa imunidade. Quero lembrar que a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, legalizada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal – STF, está localizada num extremo de Roraima e no outro está a Terra Yanomami e, juntas, ocupam 45% do território. Esse resumo já nos dá uma dimensão do que significaria uma obra de hidrelétrica e seus impactos numa região tão frágil.

O rio Branco e sua bacia hidrográfica ocupam uma posição de destaque nessa conformação espacial do território, pois é um divisor entre as duas terras indígenas. Os ecossistemas dessa bacia hidrográfica são essenciais para a sobrevivência desses povos. Apesar de os estudos de inventário da bacia do rio Branco terem sido iniciados em 2006 e interrompidos em 2008, em 2011 eles foram retomados e aprovados pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL. Apenas o aproveitamento hidrelétrico Bem Querer, no município de Caracaraí, sul do Estado, com potência prevista de 650 MW, foi aprovado no rio Branco. Agora o governo Bolsonaro retomou o projeto e pretende inaugurá-lo.

A Empresa de Pesquisa Energética – EPE já anunciou um pacote em que consta o leilão da UHE Bem Querer. E dá para imaginar, já tendo como exemplos os históricos de outros casos como as hidrelétricas de Belo Monte, no rio Xingu, Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, como os impactos ambientais e sociais decorrentes da construção de uma hidrelétrica devem afetar um rio com uma bacia hidrográfica extensa, em plena Amazônia, e que dá suporte e vida para as terras indígenas Raposa Serra do Sol e Yanomami. É preciso mencionar que a exploração ilegal de ouro e a pressão sobre suas terras tem sido denunciadas pelos Yanomami.

Usina Hidrelétrica Tabajara

Nada melhor para se ter uma ideia do que significa construir a UHE Tabajara, do que resgatar um apelo feito, em março de 2014, pela Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira – Opiam, representante de dez etnias, por carta, à então procuradora da República, Dra. Deborah Duprat, presidente da 6ª Câmara do MPF, em Brasília. As etnias da região do município de Humaitá/Amazonas manifestaram seu desacordo com os planos do governo de construção e instalação da UHE Tabajara no município de Ji-Paraná, Rondônia. A organização denunciou que duas etnias seriam afetadas diretamente, nos territórios dos Povos Indígenas Tenharin e Jiahui, na Transamazônica. Na época em que os estudos estavam sendo aprovados, os indígenas não tinham sido consultados sobre os impactos culturais, sociais e ambientais em suas terras, em franco desrespeito à Constituição Federal, em seus artigos 231 e 232 sobre os direitos dos povos indígenas.

Não há como negar que governos sucessivos têm se mostrado coniventes com os projetos de hidrelétricas que afetam diretamente povos indígenas da Amazônia. Os planos para construção desses projetos hidrelétricos vêm de um momento em que se previa um crescimento da economia em 5% ao ano. Segundo os planos decenais de energia elétrica que se sucederam, seria necessário suprir o país de energia elétrica, dita limpa e barata, para suportar o crescimento projetado da economia. E assim foi e, parece, não vai parar.

Construção de hidrelétricas: um negócio para empreiteiras e políticos

Não faltaram denúncias da sociedade civil, de pesquisadores e professores sobre os planos de expansão de energia que incluíam os principais rios da Amazônia a serem barrados para atender, em particular, as indústrias eletrointensivas e a necessidade de obras para satisfazer as grandes empreiteiras brasileiras. Só para recordar, construir hidrelétricas em regiões remotas da Amazônia tornou-se um grande negócio para empreiteiras e políticos corruptos. Os custos de implantar uma grande obra no meio do nada passaram a ser astronômicos e financiados pelo próprio governo; a fiscalização inexistente, o que facilitou aditivos. Acrescente-se a isso a construção de linhas de transmissão que cruzaram o Brasil, como as que saíram das usinas do rio Madeira e de Belo Monte. Outras, como as usinas na bacia do rio Teles Pires, também foram construídas num momento prevendo uma economia robusta que nunca chegaríamos a alcançar. Já escrevi dezenas de artigos e concedi dezenas de entrevistas sobre esse engodo no planejamento da energia elétrica pelo Ministério de Minas e Energia, nos governos FHC, Lula, Dilma e, culminando agora com Bolsonaro que, não satisfeito em retomar essa forma predatória de gerar energia elétrica, ainda pretende retomar geração nuclear.

Levamos décadas para conseguir que as fontes realmente limpas de energia saíssem do papel para se tornarem uma realidade. Energia fotovoltaica, energia eólica, finalmente, começaram a alcançar o mercado nacional e se tornaram competitivas. Enquanto os países avançados se preocupam em transformar seus sistemas para obter energia limpa, com impactos reduzidos, com fontes mistas complementando-se, o Brasil caminhou a passos de cágado. Depois de finalmente atingirmos a quase maturidade na aceitação de geração que não dilacerasse os rios da Amazônia, eis que o governo Bolsonaro anuncia a retirada dos subsídios que barateavam o mercado iniciante de energia solar. E em seu lugar anuncia planos ultrapassados de construção de mais hidrelétricas na Amazônia e de usinas nucleares no sertão de Pernambuco. Na contramão da história, pois a Alemanha, por exemplo, acaba de anunciar que vai desativar todas a suas usinas nucleares até 2050.

Telma Monteiro – Foi fácil relaxar quando o PT assumiu o governo, esquecer o passado traumático ainda vivo nas nossas memórias, olhar para a frente e ver um futuro próspero logo ali, ao alcance da mão. Só que não. Em muito pouco tempo o sonho virou pesadelo e descobrimos que havia mais um engodo em que o Brasil se afundara. É lógico que o PT criou uma vida melhor para a maioria da população, não há como negar. Foi positivo, a economia parecia que ia decolar, projetos como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, fizeram diferença e o número de miseráveis diminuiu, menos brasileiros abaixo da linha de pobreza. Mas em pouco tempo vieram os problemas que não estavam no script. Primeiro foi o mensalão e depois a Lava Jato. Dois traumas que criaram abalos na sociedade. O mensalão revelou Joaquim Barbosa, ministro do Supremo Tribunal Federal, negro, de raízes simples, que vencera todos os obstáculos sociais e o racismo, para se tornar autoridade e guardião da Constituição Federal, como presidente de um dos três Poderes da República. O caso mensalão abriu uma ferida no coração de cada brasileiro.

Passado o impacto que mostrou a corrupção paga na forma de salário que atraiu políticos sórdidos, condenando alguns à cadeia, Joaquim Barbosa se despiu da toga. Simples assim. É interessante como o povo brasileiro precisa de heróis e vive em busca deles. Talvez seja o país que mais precise exaltar um herói, ou anti-herói, e isso me chama a atenção. Nas últimas duas décadas, o herói do momento surgiu sempre na esteira de um escândalo desmascarado, ou depois de um golpe na autoestima dos brasileiros. Foi assim que a Lava Jato surgiu.

Um herói despontou. Quase cinco anos de caça às bruxas e lá estava o novo herói nas ruas na forma de balão inflável, com capa de Batman, indestrutível e pronto para fazer com que o bem vencesse o mal. Corrupção nunca mais, afinal nós tivemos também, de quebra, o Robin, disfarçado de um invencível Deltan. No auge, a força-tarefa da Lava Jato me remeteu, por analogia, aos Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, Athos, Porthos, Aramis e D’Artagnan. Parecia que o Brasil, finalmente, arrumara mais heróis, não apenas um. Como invencíveis, estavam desvendando os segredos da corrupção na maior empresa brasileira, a Petrobras, com a participação das maiores empreiteiras do país. Foi mais um duro golpe no moral dos brasileiros, afinal a esperança tinha vencido o medo.

A Lava Jato fez surgir, então, um personagem (até então) impoluto, arauto da ética e da justiça, que peitou poderosos, que os levou para a cadeia. Empresários, executivos da Petrobras, doleiros e políticos famosos foram mostrados em rede nacional, sendo conduzidos algemados para a sede da Polícia Federal. Sergio Moro passou a ocupar o vácuo deixado por Joaquim Barbosa. Bilhões de reais foram descobertos transitando livremente pelos bastidores da política, em instituições financeiras, em malas, sem que os controles de tramitação financeira tivessem detectado. Como foi possível?

Muito dinheiro azeitando relações obscuras entre empresários das maiores empresas brasileiras e políticos, para alimentar caixa dois de campanhas. O vai e vem do dinheiro ilícito pelos caminhos tortuosos dos maiores bancos do país manteve esse toma-lá-dá-cá no umbral.

É interessante como o destino nos prega peças. Aliás, o Brasil se tornou uma espécie de teste do destino. O juiz impoluto sucumbiu ao mundo do poder sem toga e que despreza a toga. Enganou-nos para satisfazer um ego inflado pelo sucesso. Ele construiu um mito de si mesmo, ultrapassando todos os limites éticos da missão que abraçara. Sergio Moro conspurcou sua história e a nossa história. Fez-nos ver o quão frágeis e ingênuos somos diante do poder imensurável de egos e artimanhas de bastidores para derrubar uma democracia e dar lugar ao autoritarismo. Sergio Moro derrubou um gigante, que também nos traiu de certa forma, colocou entre as grades o único homem que ameaçava o plano de eleger um autoritário. Pior, convenceu a todos. Entregou Lula aos leões e partiu nossos corações.

Com Moro, os mosqueteiros sem as espadas da ética aproveitaram para usufruir do sucesso inesperado. O dinheiro passou a comandar a Lava Jato por dentro, já que por fora já a comandava.

IHU On-Line – Também há a possibilidade de o governo retomar o projeto da Hidrelétrica São Luiz do Tapajós. Quais as implicações ambientais e sociais desse empreendimento?

Telma Monteiro – A Medida Provisória – MP nº 558 foi editada em janeiro de 2012, pela presidente Dilma Rousseff para alterar limites dos Parques Nacionais da Amazônia, dos Campos Amazônicos e Mapinguari, das Florestas Nacionais Itaituba I e II e do Crepori e da Área de Proteção Ambiental do Tapajós, com o objetivo de viabilizar, sem entraves ambientais, a construção das hidrelétricas no rio Tapajós, no Pará.

Foi em 1º de março de 2012 que a Eletrobras abriu um edital para a realização da Avaliação Ambiental Integrada – AAI e dos estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental – EVTE do complexo hidrelétrico do rio Tapajós – hidrelétricas São Luiz do Tapajós, Jatobá, Cachoeira do Caí, Jamanxim e Cachoeira dos Patos, nos rios Tapajós e Jamanxim. Já em fevereiro de 2012, o Ibama tinha dado o aval para emissão do Termo de Referência – TR para elaboração do EIA/Rima da UHE São Luiz do Tapajós e em maio do mesmo ano para o TR da UHE Jatobá.

Estou resgatando a história para que a sociedade não esqueça como se deram as decisões para reduzir Unidades de Conservação – UCs, que podem transformar mais uma vez a face da Amazônia. Isso não é privilégio do governo Bolsonaro, é preciso que se diga. Ele só está sendo mais destrutivo ao não respeitar as leis ambientais de forma absolutamente autoritária e fascista.

Em dois ofícios, de 17 de fevereiro (nº136/2012) sobre a UHE São Luiz do Tapajós e de 26 de março (nº 197/2012) sobre a UHE Jatobá, dirigidos à Diretora de Licenciamento Ambiental do Ibama, Gisela Damm Forattini, a Funai se reporta à portaria nº 419 no que “estabelece presunção de interferência em Terras Indígenas para aproveitamentos hidrelétricos localizados, na Amazônia Legal, até 40 km de distância de terras indígenas, ou situados na área de contribuição direta do reservatório, acrescido de 20 km a jusante”.

Com o risco de haver um bloqueio dos projetos das usinas do Tapajós pela Funai que, em ofício à diretora do Ibama, faz menção à portaria nº 419, Dilma Rousseff se apressou e editou a MP nº 558, em março de 2012, que mencionei no início desta resposta.

Como em todo processo de licenciamento, usinas hidrelétricas, em especial na Amazônia, precisavam passar por aprovação dos estudos de viabilidade técnica e econômica. Eu fiz questão de frisar o verbo no passado “precisavam” porque agora parece que há uma pretensão do governo Bolsonaro de alterar o processo de licenciamento ambiental com o fito de acelerar o prazo de obtenção das licenças. O Ibama é o órgão do Ministério do Meio Ambiente responsável pelo licenciamento, nesse caso.

Quando se deu o início do processo de Licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, o Termo de Referência para orientar o Estudo de Impacto Ambiental – EIA e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental – Rima deveriam ter sido elaborados pelo Ibama. Mas não foi o que aconteceu. Começou errado, pois o próprio empreendedor é que se encarregou de fazê-lo. Esse é um dos pontos que, em minha opinião, já bastaria para inviabilizar a continuidade do processo.

O rio Tapajós ou rio especial da Amazônia, além de nos presentear com Alter do Chão e suas praias paradisíacas, como já mencionei em resposta a uma questão anterior, nasce da confluência de dois outros rios também especiais: o Teles Pires e o Juruena. Os rios Tapajós e Juruena com seus afluentes formam uma grande bacia hidrográfica com características especiais e muitas terras indígenas. No início do processo de licenciamento, os desenvolvedores pouco mencionaram sobre essas terras indígenas, sonegando dos estudos a verdadeira dimensão e importância de sua existência para escamotear os impactos que as afetariam. Caso da TI Sawré Muybu que foi, no entendimento do MPF, um dos principais motivos que deram origem ao arquivamento do processo de licenciamento ambiental no Ibama. A descrição das populações indígenas e a manifestação da Funai foram pífias. Distorcer a lei e contornar os procedimentos para licenciamento ambiental de grandes hidrelétricas na Amazônia foram sempre lugar comum nesses anos em que a febre de grandes obras imperava, principalmente no Ministério de Minas e Energia.

Implicações da construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós

A localização prevista para a UHE São Luiz do Tapajós é próxima à cidade de Itaituba, no Pará. Nesse trecho do rio há um complexo belíssimo de cachoeiras que se perderá com as obras, se o licenciamento da hidrelétrica vier a ser aprovado pelo Ibama. O processo de licenciamento foi arquivado a pedido da presidência do Ibama, em despacho de 05 de agosto de 2016.

A construção de uma megaestrutura, num rio que tem ao longo do seu curso unidades de conservação — embora reduzidas pela MP 588 para “encaixar” o projeto —, terras indígenas e populações tradicionais, vai causar impactos na mesma proporção de Belo Monte. Processo arquivado pode ser desarquivado. A Eletrobras recorreu da decisão, mas em despacho a então presidente do Ibama, Suely Araujo, manteve a decisão até que as pendências legais e constitucionais apontadas pela Funai e pelo MPF fossem sanadas pelos órgãos competentes.

Os estudos ambientais foram elaborados pela Eletrobras em parceria com a CNEC Worley Parsons Engenharia S.A. e deram entrada no Ibama em agosto de 2014. Nesse estudo foi criada a “usina-plataforma”, invenção jamais mencionada em nenhuma publicação, inspirada nas plataformas de petróleo. Me parece claro que há o nítido objetivo de criar uma cortina de fumaça sobre a magnitude dos impactos. Cito abaixo trechos dos estudos ambientais:

consolidar as boas práticas socioambientais na construção de hidrelétricas”, “com uma concepção contemporânea de engenharia e construção que tem como objetivo o desenvolvimento energético realizado de forma integrada e em conciliação com a conservação do meio ambiente”; ou ainda: “Definição básica: consiste em uma metodologia para planejar, projetar, construir e operar um aproveitamento hidrelétrico ou um conjunto de aproveitamentos hidrelétricos situados em espaços territoriais legalmente protegidos, ou aptos a receberem proteção formal e em áreas com baixa ou nenhuma ação antrópica, de modo que sua implantação se constitua em um vetor de conservação ambiental permanente”; ou mais ainda: “O conceito de “Usina-Plataforma” é baseado nas plataformas de petróleo e tem como objetivo a realização das menores intervenções possíveis nas etapas de construção e operação das hidrelétricas sobre o meio ambiente, no caso a floresta amazônica”.

Mas, não esqueçamos que os chineses aprenderam com Three Gorges e a Odebrecht, e temos um governo disposto a tudo. Porém, é preciso não esquecer que os impactos serão os mesmos apontados por especialistas na ocasião da análise dos estudos engavetados pelo Ibama. Na margem esquerda do rio, na região prevista para a execução do primeiro projeto das estruturas, está o Parque Nacional da Amazônia. Qual a dimensão dos impactos para a biodiversidade da região?

O projeto poderá ser viabilizado com essa provável investida do governo Bolsonaro no propósito de ocupar e destruir a bacia do Tapajós, dando continuidade ao retrocesso ambiental que ele e Ricardo Salles estão implementando. Há que mencionar também que a maior província mineral de ouro do mundo se encontra ali. Será o reinício de um tormento nas vidas dos indígenas e das populações tradicionais da bacia do rio Tapajós. Seja qual for o projeto, nunca vão poder alterar os impactos decorrentes e que os afetarão para sempre. Isso não mudará, só mudarão o governo de plantão e o órgão que vai licenciar, levando-se em conta as pretendidas alterações no sistema de concessão de licenças ambientais. Talvez não ouçamos mais falar em usina-plataforma.

No entanto, se o projeto original for mantido teremos mais um monstro na Amazônia, pois os números são espantosos no que concerne às estruturas, como os surpreendentes 7.608 m de extensão total da barragem (mais de sete quilômetros e meio), no sentido diagonal do rio. Ou a área de 729 km² que ficará permanentemente inundada. Ou o reservatório que terá 123 km de extensão. Isso não será mais um verdadeiro estupro da floresta? Posso ainda acrescentar as 850 mil toneladas de cimento e 208 mil toneladas de aço. Só de rochas a previsão é de escavar perto de 22 milhões de m³. Alguém tem ideia do que isso significaria em termos de intervenção local? Basta resgatar as fotos da destruição do ambiente causada pelas escavações do canal de desvio das águas do rio Xingu, nas obras da usina de Belo Monte. Belo Monte pode perder o status de pior hidrelétrica no Brasil, se São Luiz do Tapajós for retomada. Será um páreo duro, infelizmente. Tudo isso poderá acontecer no maior distrito aurífero do mundo. Alguém tem dúvidas sobre os interesses por trás dessa obra?

IHU On-Line – Os pesquisadores brasileiros divergem de opinião em relação a como o Brasil deve proceder com o pré-sal. Por que, na sua avaliação, o país deveria abandonar a exploração desse recurso? Os recursos econômicos advindos dessa atividade não compensam a exploração?

Telma Monteiro – Há poucas semanas escrevi uma análise sobre essa questão, tendo por base as informações de uma Nota Técnica de outubro de 2019, assinada pelos professores Ildo Sauer e Guilherme de Oliveira Estrella, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo – USP. Essa nota fez uma análise acurada do leilão dos excedentes dos campos da cessão onerosa do pré-sal realizado em dois turnos, nos dias 6 e 7 de novembro de 2019, pelo governo brasileiro.

Antes é preciso explicar da forma mais simples possível o que são os tais excedentes dos campos da cessão onerosa do pré-sal. Quando o pré-sal foi confirmado na costa brasileira, a União, dona de todo o petróleo descoberto em águas do mar territorial brasileiro, teve que criar um projeto de lei, PL n. 5.941/2009 (virou a Lei Ordinária nº 12.276/2010), para regulamentar o sistema de cessão onerosa, ou seja, conceder à Petrobras, empresa mista da qual o governo brasileiro tem 49% das ações, o direito de explorar cinco bilhões de barris de petróleo (cálculo na época) que chamaram de “petróleo equivalente”, aí incluídos óleo e gás natural .

Mais tarde, novas pesquisas mostraram que a área a ser explorada no pré-sal possuía, na verdade, muito mais que os cinco bilhões de barris considerados na descoberta inicial. Segundo a Nota Técnica dos professores da USP, esses excedentes podem chegar a quantidades muito maiores. Uma estimativa prévia apontou mais de 100 bilhões de barris, mais que todo o petróleo retirado do pós-sal, a camada menos profunda, mais próxima da superfície e que tem uma reserva de 13 bilhões de barris.

O que seriam os tais excedentes da cessão onerosa? A Lei Ordinária – LO, mencionada no começo, regulamentou a exploração, pela Petrobras, apenas daqueles cinco bilhões de barris da cessão onerosa. Então, para explorar os excedentes, ou seja, as outras áreas pesquisadas depois, e que mostraram ter um potencial muito maior de petróleo, seria preciso criar outra forma de exploração. Os investimentos seriam muito maiores. Para viabilizar essa exploração e atrair os investimentos necessários, o governo resolveu adotar um sistema de partilha ou concessão, na forma de licitação que atrairia outras empresas nacionais, e estrangeiras, além da Petrobras. Nesse caso, o governo abriria mão da sua soberania sobre essa imensa riqueza que pode chegar às cifras de 1,2 a 1,6 trilhão de reais. O leilão foi realizado em duas etapas, nos dias de 6 e 7 de novembro de 2019, para transferir os excedentes para empresas privadas.

Curiosamente, não houve disputa acirrada entre as grandes empresas internacionais, que acabaram não participando. O consórcio vencedor do primeiro dia foi uma parceria entre uma empresa chinesa e a Petrobras. No segundo dia, novamente a vencedora foi empresa chinesa. Causou bastante surpresa o fato de que das 17 empresas habilitadas para o leilão, apenas três participaram. O consórcio vencedor vai pagar no ato o valor fixo de R$ 5 bilhões a título de bônus de assinatura e deve entregar no futuro 30% do lucro em óleo ao governo. Mas esse lucro das vencedoras nesse “futuro” pode ser incerto, já que os custos de exploração são desconhecidos e facilmente manipuláveis.

Leilão no escuro

O curioso é que o leilão foi realizado sem que nem a sociedade e nem o governo tivessem uma noção da dimensão exata do quantitativo de petróleo a ser explorado. Eu chamaria de um leilão no escuro, pois se tivesse havido grandes empresas internacionais vencedoras, além de abrir mão da soberania sobre essa exploração por três décadas, esse governo não teria como planejar o uso dos recursos oriundos de sua participação nos lucros. Na mais completa escuridão estariam, também, governos futuros, uma vez que não teriam a mínima ideia de quantos barris poderiam ser extraídos e, se extraídos, nenhum controle sobre ele. O governo brasileiro, seja de qual partido for, estaria nas mãos de consórcios internacionais com propósito puramente controlador da produção para regular os preços no mercado internacional. E a Petrobras, empresa que também pertence ao povo brasileiro e que investiu no desenvolvimento da tecnologia para a exploração do pré-sal, não teria a justa participação que lhe é devida. Quero lançar aqui minha preocupação como brasileira, pois apesar de o leilão de novembro de 2019, dos excedentes da cessão onerosa do pré-sal ter fracassado, espera-se nova investida do governo Bolsonaro, num leilão em novo formato para atrair as grandes internacionais.

Mesmo com o recente fracasso do leilão, não estaremos livres, no futuro, das pressões internacionais dos países exportadores de petróleo, a OPEP+ (Argélia, Angola, Equador, Irã, Iraque, Kuwait, Líbia, Nigéria, Catar, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Venezuela e + Rússia, México e Cazaquistão). Se vendermos nossa soberania, deixaremos de exercer nosso direito ao enfrentamento numa possível guerra de preços e de optar por deixarmos as profundezas do pré-sal bem quietinhas, para dar um exemplo ao mundo que caminha para um desastre climático. É esse, em minha opinião o ponto controverso que merece uma análise. Extrair mais petróleo seria anular todo o esforço feito até agora para substituir os combustíveis fósseis por energias limpas e salvar o planeta da destruição.

A questão que precisamos discutir é se o Brasil vai mesmo “caminhar na contramão da história”. Em que momento o povo brasileiro abriu mão de optar por energias limpas, acompanhando o resto do mundo? Quem outorgou a este ou a outro governo o direito de explorar petróleo no coração da Terra, para poluir mais o planeta, as cidades, os oceanos, o ar que respiramos; aumentar as emissões de gases de efeito estufa – GEE, promover o aumento de refugiados climáticos, fazer acelerar as mudanças climáticas, contribuir para a extinção da vida no planeta? Consideremos que o “fracasso” histórico do leilão do pré-sal brasileiro pode ser considerado um sucesso, pois salvou o Brasil de entregar, mais uma vez, suas riquezas aos interesses econômicos globais, inclusive de disputas internacionais; evitou mais emissões futuras de mais GEE na atmosfera que contribuem para o aquecimento global. Mas se mantivéssemos nossa soberania sobre o pré-sal e optássemos por não explorá-lo, estaríamos dando a maior de todas as lições ao resto do mundo. Não seria um gesto inédito?

Estamos adotando uma economia liberal, mercado autorregulado, quando o governo promove o leilão do pré-sal e se isenta da responsabilidade de controlar a produção em benefício de empresas privadas. Na Nota Técnica dos professores do IEE da USP, explorar o pré-sal representaria uma oportunidade de riqueza para promover o desenvolvimento e a melhoria da vida dos brasileiros. Eu questiono se realmente é isso que quer a sociedade brasileira. Esses bilhões de dólares que entrariam na economia poderiam reverter o quadro de descaso com a saúde, a educação, o saneamento básico, a moradia, o transporte público em que vivem os brasileiros? Serviria para reduzir a pobreza e melhorar a distribuição de renda, criando empregos? Por outro lado, explorar o pré-sal seria retroceder em questões e discussões que levaram décadas para serem acertadas, como as alternativas de energia limpa que substituem o petróleo e cumprem o papel de controle do aquecimento global e da intensificação das mudanças climáticas.

O outro lado da questão seria saber o que realmente queremos: manter a soberania do Brasil de dispor da riqueza imensurável que se nos apresenta ou abrir mão dela e sermos cobrados pelas próximas gerações. Teríamos esse direito? A decisão é agora. Manter um legado para as futuras gerações que lhes garanta a sobrevivência e um planeta saudável ou não. O desafio maior é abrir mão da riqueza, corrigir os erros do passado, investir em consumo consciente, alimentação saudável, lixo zero, diminuição do desperdício, agricultura familiar, para tentar salvar o planeta da extinção. Essa é a verdadeira fórmula para ganhar a guerra pela preservação da raça humana.

Se não, que segurança teríamos, ao contribuir com as consequências do aquecimento global, explorando o pré-sal, se os lucros obtidos seriam usados para salvar os milhões de brasileiros de doenças decorrentes da poluição do ar nos centros urbanos. Ou seriam usados na recuperação de biomas afetados pelas queimadas e pelas mudanças climáticas. Ou usados na recuperação de cidades destruídas pelas tempestades, enchentes, deslizamentos, decorrentes das alterações climáticas. Ou usados na remoção de populações inteiras afetadas pelo aumento do nível do mar. Ou na recuperação de rios mortos com a devastação da Amazônia e dos outros biomas brasileiros. Ou na produção de água potável.

Sim, é a resposta à pergunta. A riqueza da exploração do pré-sal talvez não fosse suficiente nem para resolver as suas consequências.

IHU On-Line – Quais são as alternativas energéticas viáveis para o Brasil neste momento, tanto do ponto de vista ambiental quanto da eficiência?

Telma Monteiro – Já mencionei que a energia hidrelétrica é pouco mais de 66% de nossa matriz elétrica. Durante décadas, governos se preocuparam em construir grandes hidrelétricas legando para a sociedade todos os impactos que elas criaram. Até hoje nós temos, para aqueles que não sabem, que conviver com cicatrizes sociais e ambientais como as deixadas por Itaipu, ou Balbina, ou Tucurui e seus grandes reservatórios de regularização. Retomada a febre de construção de grandes hidrelétricas nos primeiros quatro anos do governo Lula, sob a alegação de que trariam menos impacto, optou-se pela construção das chamadas hidrelétricas a “fio d’água”, ou seja, aquelas que não têm grandes reservatórios de acumulação, que em períodos de seca evitariam redução na geração de energia.

Com isso foram erigidas, nos principais rios da Amazônia, algumas das maiores hidrelétricas do Brasil a “fio d’água”, que se mostraram, além das questões ambientais e sociais, verdadeiros desastres de geração, além dos custos estratosféricos financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social – BNDES a juros subsidiados que o mercado não praticava: UHE Santo Antônio, UHE Jirau, no rio Madeira, UHE Teles Pires, UHE São Manoel, UHE Sinop, no rio Teles Pires e UHE Belo Monte, recém inaugurada pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro, em novembro deste ano. Há ainda outras menores, mas tão nefastas quanto. Todas as mencionadas saíram de projetos megalômanos de grandes empreiteiras ligadas ao governo federal. Os leilões, verdadeiras obras de ficção, tornaram vencedoras empresas apenas interessadas nas obras estruturais.

O Ibama licenciou todas e, para suprir as inconsistências dos estudos ambientais, dos impactos mal dimensionados, instituíram as condicionantes que deveriam ser atendidas antes da concessão da próxima licença. Nem é preciso entrar nesse mérito, pois tudo o que se sabe está na imensa bibliografia de pesquisadores, professores, cientistas, jornalistas, que comprovaram que a maior parte não foi atendida.

Com a Lava Jato, as grandes empreiteiras brasileiras foram afastadas, pelo menos momentaneamente, do mercado construtor de grandes hidrelétricas. Mas as empresas chinesas, como a State Grid, já assumiram a construção de linhas de transmissão como a que leva energia de Belo Monte. Todas as previsões de crescimento da economia, desde 2003, não se consumaram. Crescimento de 5% ao ano, como constam nos planos decenais, demandaria mais energia e a fonte considerada “barata”, “farta” e “limpa”, a hidroeletricidade, transformou-se num pesadelo para a Amazônia e suas populações tradicionais. Os impactos jamais foram mitigados, ou as populações compensadas. Já discutimos isso. E para consolidar essa política, em dezembro, começou a tramitar na Câmara dos Deputados um texto-base do Deputado Lafayette de Andrada (Republicanos/MG), do novo Código Brasileiro de Energia Elétrica que pretende unir toda legislação do setor. Dei uma olhada e não consegui identificar alterações que beneficiem ou incentivem fontes alternativas. Para a aprovação do texto há um longo caminho a percorrer e a sociedade deverá se manifestar nas audiências públicas. Teremos que acompanhar de perto, pois deve haver um pulo do gato nesse tal Novo Código Brasileiro de Energia Elétrica. Fiquemos atentos.

Energia hidrelétrica: um dos principais engodos dos governos

O Brasil ainda tem 66,6% da sua matriz elétrica dependente de hidrelétricas enquanto o mundo tem 16,1%; a biomassa aqui ocupa 8,6% contra 2,4% no mundo; com relação ao gás natural estamos também na faixa de 8,6% contra 22,9% no mundo. O resto do mundo ainda tem uma matriz energética bastante suja, principalmente em se tratando de carvão e nuclear. Mas é preciso lembrar que o Brasil tem planos de explorar mais as fontes sujas como o carvão e a nuclear, além de depender da energia hidrelétrica em mais de 60%.

A energia hidrelétrica é um dos principais engodos que os governos lançaram no passado, sempre sob a alegação de que ela seria fonte limpa e renovável, sem questionar seus impactos e desperdício. Atualmente, já se fala em otimização da força motriz disponível para melhorar a eficiência e economizar energia. Eficiência energética é o termo que precisamos incorporar no dia a dia de todos os brasileiros. Temos que buscar o uso consciente e aposentar a geração de energia que demande recursos naturais. Esse é o lema, pois não existe energia hidrelétrica renovável. Hábitos simples podem fazer a diferença para a sobrevivência do planeta.

A construção civil no Brasil é uma das atividades que mais agridem o meio ambiente. Demanda o uso de muita energia como a forja do aço, a produção do alumínio e do vidro. Temos a mineração de pedra, areia, cimento, argila e a exploração de madeira. Muito se tem falado e escrito sobre sustentabilidade e eficiência, porém não caminhamos nessa direção com a velocidade que deveríamos. A construção civil, um segmento que é um nicho restrito a arquitetos e engenheiros, vem desenvolvendo alguns princípios e materiais que contribuem para o uso sustentável do espaço.

No entanto, por uma questão de escala e custo os materiais e procedimentos sustentáveis acabam por não chegar às habitações de interesse social e à autoconstrução. Temos falado sobre consumo consciente, muito em moda, diante das emergências climáticas que vivemos, mas estamos desconsiderando os custos para o meio ambiente, principalmente no Brasil, de construções tanto comerciais como residenciais. Exemplos não nos faltam, na arquitetura, que podem transformar, e muito, o conceito de economizar energia – telhados inteligentes com telhas que são placas fotovoltaicas, vidros que não transmitem calor e que levam a economia na climatização dos espaços profissionais ou residenciais, sensores de presença que poupam energia elétrica, aproveitamento da luz natural considerando-se a orientação adequada da construção, torneiras inteligentes, agora já comuns no Brasil, em banheiros públicos como de shoppings, restaurantes, empresas, edifícios empresariais, vasos sanitários que têm controle da quantidade de água necessária regulada por botões economizadores, ou ainda o aproveitamento da água da chuva para limpeza e irrigação. Mas uma parte substancial das construções, habitações de interesse social, pequenas empresas, não consegue ter acesso a essas mudanças que minimizariam a exploração dos recursos naturais.

A escala de produção de alguns desses insumos ainda é pequena, o que acaba por inviabilizar o seu uso devido aos altos custos envolvidos. Estamos perdendo tempo, produzindo impactos ambientais por falta de incentivos e subsídios para promover eficiência e preservação ambiental.

Arquitetura de sustentabilidade é uma realidade já muito difundida no mundo, com o uso exclusivo de madeira de reflorestamento para as obras, reciclagem dos entulhos, planejamento da vida útil e do descarte dos materiais de construção, conceitos de sustentabilidade na seleção e uso de materiais, dimensionamento eficiente do espaço. Infelizmente tanto a construção comercial como a construção de interesse social no Brasil ainda carecem de políticas públicas que obriguem construtores e arquitetos a fazerem uso de recursos que poupem o meio ambiente com materiais e técnicas sustentáveis.

Os combustíveis fósseis como o petróleo, gás natural e carvão mineral são os maiores responsáveis pelas emissões de GEE. O Brasil está perdendo o momento para investimento em novas tecnologias de energias limpas. Tudo o que usamos no cotidiano de nossas vidas é baseado no petróleo. O plástico está em todos os componentes descartáveis, embalagens, eletrodomésticos, eletroeletrônicos, móveis, veículos, construção civil. Tudo que é feito de plástico ou derivados do petróleo leva de centenas a milhares de anos para desaparecer na Natureza. Esse mal é inerente ao cotidiano de nossas vidas e, olhando à nossa volta, percebemos o quanto somos dependentes do petróleo. Mas a boa notícia é que há muito tempo se pesquisa materiais alternativos confeccionados com fibras naturais que num futuro próximo poderão substituir, esperamos, o que hoje custa a salubridade do planeta. Sobre o petróleo, eu reputo o que há de pior para superarmos. Além das necessidades da vida moderna em que ele se insere diuturnamente, há o lobby dos grandes produtores, países calcados em economias ricas e, ao mesmo tempo, dispendiosas por ter que compensar os impactos causados por sua própria riqueza.

Os mares estão cada vez com mais ilhas de lixo plástico, o planeta está aquecendo, as doenças tornando-se mais resistentes e os humanos menos capazes de suportar calor extremo ou frio extremo. Países muito ricos, entre eles os produtores e exportadores de petróleo, estão investindo fortunas para proteger sua população de eventos climáticos como aumento das tempestades, dos furacões, do nível do mar.

A água doce disponível no planeta está cada vez mais escassa. O derretimento da calota polar é uma realidade; e os impactos ambientais produzidos por usinas que usam carvão mineral como combustível são enormes. Além da toxidade dos resíduos que elas produzem, emitem gases poluentes como mercúrio, cádmio e chumbo, combinados com a poluição térmica das caldeiras.

Quanto à energia hidrelétrica, acredito ter falado quase tudo. Mas nunca é demais lembrar a história, como a das usinas no rio Madeira que foram impostas à sociedade com o argumento de que estaríamos à beira do apagão se elas não fossem construídas. O mesmo argumento foi usado para justificar Belo Monte. O mesmo está sendo usado para também justificar as usinas no rio Tapajós e as do rio Teles Pires. No entanto, esse “à beira do apagão” não fez com que investimentos substanciais se direcionassem para as alternativas.

Basta dar um giro pela Europa e constatamos a geração a partir das fontes alternativas e, o que é melhor, de forma descentralizada. Nada de longos sistemas de transmissão como temos no Brasil, onde uma linha como a que liga as usinas do Madeira tem 2.450 quilômetros de extensão para chegar a São Paulo. Se houvesse geração descentralizada com as fontes alternativas nós não precisaríamos desse linhão.

IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, a agenda ambiental não tem sido uma prioridade nos últimos governos?

Telma Monteiro – Desde que eu comecei a atuar nas questões ambientais, não senti por parte dos governos, não só dos últimos, nenhum esboço de priorizar o meio ambiente. Vou mais longe: nunca houve uma agenda ambiental. Mesmo depois da ECO 92, quando o Brasil passou a ser considerado um país que poderia assumir a liderança na questão ambiental e compromissos com a sustentabilidade, os governos que se sucederam não criaram uma mobilização para implementar uma agenda. O Brasil tem caminhado sempre atrás do resto do mundo, agora sendo considerado o último da fila, após os vexames pelos quais tem passado, com a exposição absolutamente negativa na mídia internacional.

O Artigo 225 da Constituição Federal diz respeito ao meio ambiente. Estamos falando de 1988 quando ela foi promulgada. Em 1992 o Rio de Janeiro sediou a Eco 92, em que estavam presentes mais de 100 países. A Convenção sobre o Clima, a Convenção sobre a Biodiversidade, a Carta da Terra e a famosa Agenda 21, foram acordos importantes firmados pelos então líderes mundiais. Depois chegamos à Rio+20, em 2012, em que se fez um balanço de tudo o que foi acordado 20 anos antes.

Ricardo Salles determinou que só ele responderia à mídia. Ele impôs uma verdadeira censura na comunicação do Ibama e do ICMBio, o que reflete o quanto estamos tateando no escuro quanto à existência de uma agenda ambiental, depois de quase 12 meses de governo. O que temos para chamar de agenda ambiental se o Ministério do Meio Ambiente nem atende aos questionamentos dos jornalistas?

Não aprendemos as lições dos últimos 27 anos. O desmatamento na Amazônia vem aumentando, e Jair Bolsonaro até ameaçou sair do Acordo de Paris, além de incentivar as queimadas num nítido desconhecimento da responsabilidade que lhe caberia como presidente de um país que quer ser um líder global. Para esse governo, as mudanças climáticas, o aquecimento global, o genocídio indígena, simplesmente não existem. Ricardo Salles por sua vez compareceu à COP-25 para exigir algo que ele nem sabe o que é, pois para sua mente retrógrada o mundo deve ao Brasil bilhões de dólares por preservar a Amazônia.

Não bastasse isso, Salles se apresentou na Conferência do Clima pela primeira vez no dia nove de dezembro e ele mesmo se encarregou de afirmar que os combustíveis fósseis seriam responsáveis pela maior parte das emissões de gases de efeito estufa no planeta. Acho que ele esqueceu que o Brasil está tentando explorar o pré-sal, que mostrou ser uma reserva inesgotável de petróleo e gás, portanto, passaria a ser um dos países a ter que pagar pelo aumento das emissões.

Fora isso, temos o aumento do desmatamento da Amazônia, que o governo ignora, e que transfere para o Brasil o ônus de não ser um exemplo de preservação entre os países participantes da cúpula do clima. Salles está mais uma vez desalinhado e batendo de frente com os países participantes do Acordo de Paris, quando pretende que o Brasil, como vendedor de créditos de CO2, desconte esses créditos das metas de redução dos GEE com as quais se comprometeu.

IHU On-Line – Como analisa a participação dos militares no governo Bolsonaro? Tem informações sobre como os militares pensam a questão energética para o país? Em que fontes de energia eles apostam?

Telma Monteiro – Quem não viveu a época da ditadura militar no Brasil deve ter aprendido a história nos bancos da escola. É o que espero. Pois não se deve jamais esquecer esse período de obscurantismo que muitos, hoje, afirmam não ter existido. De 1964 até 1985, os militares censuraram todas as formas de expressão artística e tentaram impedir que as manifestações contra o regime militar tivessem eco na sociedade. Os mortos sob tortura, em minha opinião, não foram ainda devidamente reconhecidos pela sua coragem e sofrimento no propósito de salvar o país. Fiz essa introdução para lembrar que a lei da anistia, que completou 40 anos em agosto, feita para os dois lados, nunca me satisfez como forma de pôr uma pedra no passado, e imagino não ter satisfeito as famílias daqueles que foram torturados ou mortos sob tortura.

A anistia aprovada no Congresso foi um perdão para os crimes dos torturadores cometidos nos anos de chumbo. Quero aproveitar a oportunidade dessa pergunta para expor o que senti quando o governo Bolsonaro assumiu acompanhado de uma presença maciça de militares. Sua biografia como ex-militar inclui a “glória” de ajudar a caça de Lamarca na região do Vale do Ribeira. Senti revolta, pois as memórias vieram à tona e me recusei a acreditar que o povo de um país como o Brasil não tenha aprendido as lições da história. Não aprendeu, por quê? A história não foi bem contada pelas gerações de pais e mães, avôs e avós que vivenciaram, de uma forma ou outra, esse período obscuro? Os professores não se encarregaram de dar os detalhes, nas aulas de história, sobre o sofrimento dos pais e mães que perderam seus filhos para os torturadores? Quando acabou o regime militar tratamos logo de esquecer para evitar expor a chaga que vitimara toda uma geração?

Até hoje não consigo entender o silêncio ensurdecedor da omissão dos brasileiros quando Bolsonaro começou a indicar medalhados militares para os altos escalões do governo. Medalhas deveriam significar heroísmo nas guerras em defesa da justiça, contra a opressão, contra o genocídio, jamais poderiam servir para propiciar poder executivo numa democracia. Na posse, só consegui enxergar, entre lágrimas de frustração e medo, um monte de medalhas perfiladas e um presidente eleito democraticamente, marchando como durante a ditadura. Ministros, porta-voz, segundo escalão, assessores, autarquias, conselhos, repartições. São 2.500 medalhados ao todo. Um verdadeiro exército no lugar de servidores.

O Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, é militar e defensor do programa nuclear, que entende ser prioridade para o Brasil, sob a alegação de que é parte da nossa matriz energética. Profetiza que a energia nuclear terá, nos próximos 30 anos, sua participação duplicada. Bolsonaro planeja fazer mais oito plantas nucleares.

Para concluir, esclareço que militares não “pensam” a questão energética, porque não são formados para isso. Eles são treinados para a defesa das fronteiras, do mar territorial, do espaço aéreo e das estruturas que garantam a segurança da geração e transmissão de energia do seu país, quando se fizer necessário. Falando em defesa, em 2018 foi lançado o primeiro submarino nuclear que se “justifica” para defender as reservas do pré-sal.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Telma Monteiro – Primeiro é preciso falar um pouco sobre a Democracia. Afinal emergimos de anos difíceis em que palavras e acordes musicais poderiam se tornar a forma mais rápida de levar à perseguição e à tortura. A censura era a preliminar na busca de mínimos indícios de pensamentos mais ousados daqueles cujos neurônios ainda produziam sinapses. Tortura, mortes. Viver era uma repetição de gestos e atitudes protetores para preservar a integridade de pessoas corajosas. Ficaram marcas indeléveis nas almas de todos que assistiram, ou de perto ou de longe, aos momentos mais constrangedores, até então, do povo brasileiro. Mas, a maioria parecia sofrer uma espécie de negação, alienação, talvez, seja um termo melhor. Aqueles que não participaram, se alienaram na ditadura, não sentiram perdas e transferiram para seus descendentes uma crença de que a verdade era mentira. Faz tão pouco tempo que tudo aconteceu. Não era para ser assim.

Voltando para 2018, depois da “facada” de setembro e do primeiro turno das eleições, os holofotes se voltaram para uma só pessoa: Jair Messias Bolsonaro. Quem era Jair Messias Bolsonaro? Um político medíocre com dois projetos em 27 anos de atuação no Congresso, ex-capitão do exército, que tem como ídolo um dos maiores carniceiros da tortura durante a ditadura, coronel Brilhante Ustra. Os 57 milhões de brasileiros que votaram nele abateram mortalmente um PT já alquebrado. Foi uma espécie de vingança inconsciente pela decepção de ter acreditado na tal “esperança que venceu o medo”. Agora, é a desesperança que caminha com o medo.

Em plena campanha presidencial, um candidato nanico, famoso por seus arroubos à la Hitler, exibindo e desferindo palavras de ordem com elogios ao maior torturador do período da ditadura, tornou-se visível. Saiu da escuridão em que se encontrava para a claridade que lhe granjeou o apoio de que precisava. O futuro já estava selado, pois o Messias já se consolidava favorito, prestes a se tornar um verdadeiro azarão. A esquerda já estava morrendo imersa num mar de crimes de corrupção. A extrema direita, então, emergia do fundo abissal da escuridão. O Messias ainda não mostrara suas garras afiadas, preparadas para arranhar o bom mocismo do Brasil.

Quem autorizou o que estaria para acontecer no Brasil? Quanto mais eu me aprofundo mais sinto que viver consoante ao perigo é uma forma de fortalecimento do nosso legado. Nosso legado? Qual é na verdade o nosso legado no Brasil? Aprendemos com os erros do passado que para ter um país forte, com equidade, seria necessário passar mais uma vez por um teste inglório? Bolsonaro seria a última experiência amarga que teríamos, uma espécie de catarse para nos preparar para um outro tempo? Insistirei nisso, pois só a repetição dos erros pode nos levar à limpeza d’alma e ao exorcismo do horror que tem cercado a vida dos brasileiros.

Parece impossível que a violência que tem sido cometida contra nossas vidas, com palavras, atitudes e expressões jocosas possa estar presente na mídia diuturnamente. Afinal, por que espalhar algo que denigre pessoas e apequena povos, cientistas, ciência, estudos, educação, participação?