PUBLICADO NA CARTA CAPITAL
A intervenção federal decretada pelo presidente Michel Temer na sexta-feira 16 pode ser inédita, mas não é a primeira vez que militares são convocados para ir às ruas no Rio em plena democracia. Desde 1992, trata-se da 37ª operação envolvendo a presença de forças armadas na Cidade Maravilhosa.
Não à toa, Alexandre Fuccille recorre com frequência às experiências anteriores com o Exército para explicar a situação atual. “Não se busca combater o crime organizado ou melhorar as condições de segurança da população fluminense. Há outros interesses”, afirmou o professor de Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Fuccille, que trabalhou no Ministério da Defesa durante o primeiro mandato do ex-presidente Lula e presidiu a Associação Brasileira de Estudos de Defesa, vê as Forças Armadas como essencial para um país de dimensões continentais como o Brasil e defende um debate claro entre militares e civis.
O especialista avalia que há uma disputa no interior do próprio Exército sobre qual conduta a ser assumida. “Há pelo menos duas vertentes do Exército brasileiro”, afirma. Uma é do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, que acha temerária essa banalização do emprego das forças armadas em missões de Garantia de Lei e Ordem (GLO). A outra vertente é encabeçada pelo ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Etchegoyen, que diz não ver nenhum problema e usa a velha máxima entre os militares de que missão dada é missão cumprida.
Fuccille também é um otimista. Para ele, a intervenção é uma oportunidade para a população avançar o diálogo sobre o papel do Exército na sociedade — e uma prova de que a mentalidade militar não mudou em nada nas últimas décadas.
CartaCapital: O que a intervenção federal no Rio diz sobre a relação entre os militares e o poder político?
Alexandre Fuccille: Tem aí um debate de fundo que não está sendo encarado – principalmente por parte da Presidência da República – que são as questões sociais. Se deve enfrentar os problemas sociais do Brasil e do Rio para reduzir a violência e a criminalidade.
Outra questão importante é a ausência de um debate mais sério sobre a questão das drogas ou da descriminalização das drogas. O Rio de Janeiro não faz fronteira com nenhum outro país e a maior parte das drogas consumidas no Brasil vem de fora. Isso sim é uma atribuição do governo federal, que não tem respondido a contento. A partir da PEC do Teto, a implementação do sistema de monitoramento de fronteiras caminha a passo de tartaruga.
O terceiro ponto desse debate é a reforma das polícias, um problema fundamental que se arrasta desde a redemocratização, em 1985, e até o momento não teve nenhuma resposta apropriada por parte do poder político. As polícias, praticamente a única estrutura de Estado no período pós-autoritário, não passaram por nenhum tipo de reforma. Elas continuam estruturadas basicamente da mesma forma que no regime de exceção.
CC: Que mensagem passa a escolha de um general para comandar uma intervenção civil?
AF: Para uma democracia robusta e salutar, não é a melhor decisão. A forma como é construída essa cadeia de comando – ou seja, o fato que o general nem se reportará ao comandante do Exército, e sim ao presidente da República – não é desejável. Braga Netto agora tem sob sua responsabilidade 50 mil homens do Exército, ou um quarto do efetivo da força terrestre.
CC: Quais as consequências da intervenção na rotina do Exército, especialmente no Rio?
AF: Os termos ainda estão muito nebulosos, mas acredito que mude muito pouco. O efeito é muito mais pirotécnico do que real ou de mudança da situação concreta. O risco é que os militares acabem contaminados pela criminalidade. Isso já tem ocorrido vez por outra, com militares sendo apreendidos com drogas e armamentos [ilegais]. Até porque o soldado faz vigilância durante o dia, mas volta para a favela em que vive quando termina.
Obviamente, não é só na polícia do Rio que há “bandos podres”, e que o Exército não conseguirá resolver isso em seis meses, um ano ou dois anos. O preparo militar é completamente distinto do preparo para a segurança pública. O preparo militar é o preparo para a guerra. Você não declara guerra contra concidadãos. Do ponto de vista de desrespeito aos direitos humanos, há um risco muito grande.
CC: Para o setor mais conservador do Exército – a exemplo do general Mourão, no ano passado, e de Bolsonaro, que criticou a intervenção -, a medida representaria uma perda de autonomia para a entidade. O que pode vir da resistência desses militares?
AF: Há pelo menos duas vertentes do Exército brasileiro. Uma é do comandante [o general Villas Bôas], que acha temerário essa banalização do emprego das forças armadas em missões de GLO. A outra vertente é encabeçada pelo ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Etchegoyen, que diz não ver nenhum problema e usa a velha máxima entre os militares de que missão dada é missão cumprida.
Há uma disputa no interior do próprio Exército sobre qual conduta a ser assumida. Do ponto de vista político, Etchegoyen é muito mais próximo do presidente Temer, até porque foi nomeado por ele na recriação do gabinete, que havia sido extinto pela ex-presidente Dilma. Já Villas Bôas foi nomeado pelo governo Dilma. Me parece muito mais prudente a posição do comandante, que inclusive sairá em março – e aí entrará alguém mais alinhado a Temer, o que vejo com muita preocupação.
CC: O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, afirmou que a intervenção pode desgastar o Exército, tanto na imagem como na parte logística. Na visão do sr. isso é provável?
AF: Sem dúvida. O Exército e as forças armadas podem sair com a sua imagem chamuscada perante a opinião pública brasileira ao final dessa intervenção. Hoje eles gozam de um prestígio bastante elevado junto à população, conforme várias pesquisas de opinião indicam.
A população sempre apoia isso. Quando a operação [Rio I, no qual o então presidente Itamar Franco mobilizou 20 mil soldados para ocupar favelas tidas como perigosas] termina em 1995, as pesquisas indicavam quase 90% de apoio às forças armadas. Um tanque de guerra com a torre de tiro voltado para a favela, um soldado armado no calçadão em Copacabana — isso traz, principalmente entre a classe média, uma sensação de melhora da segurança pública. As pessoas se sentem mais seguras, mas é uma percepção equivocada.
Há um grande show, o governo [está] fazendo um grande espetáculo para a sociedade, e uma boa parte da grande mídia está indo atrás e o saudando por isso. Me parece uma grande manobra por parte de Temer, muito mais uma jogada política por parte de seu governo — que carece com uma legitimidade contestada, uma popularidade baixíssima, com dificuldades sérias para aprovar a reforma da Previdência — de criar uma cortina de fumaça para o processo eleitoral que se avizinha.
A questão logística [da intervenção] envolve um custo extremamente caro. Você tem diárias, alimentação, uma série de coisas que, se estivessem sendo destinadas originalmente para a área social, ou à experiência das UPPs — que começou de forma interessante e acabou se degenerando completamente — poderia resultar em algo diferente.
A área da segurança pública incomoda a todos e atinge do rico ao pobre de forma indistinta. Obviamente que a comunidade pobre, favelada, negra, sente isso literalmente na pele, mas eu diria que não houve nenhum fato de envergadura a justificar a intervenção. O Rio continua vivendo um processo de degradação muito triste, e nada mudou substantivamente.
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CC: O desconforto dessa ala “mais profissional” do exército deve aumentar?
AF: Pode aumentar, mas eu espero que siga apenas como desconforto. É importante recordar que o presidente da República é também o comandante-chefe das forças armadas. Ou seja, é Temer quem tem a legitimidade para decidir acerca do emprego das forças armadas à luz da Constituição. Ele, como professor de direito constitucional, sabe muito bem como fazer isso.
Acho positivo que as forças armadas continuem tendo essa posição profissional. Ainda temos o Ministério da Defesa, que no seu interior é muito militarizado, e é importante fortalecer a ocupação em vários cargos-chave [do ministério] por civis. Não é uma pessoa trocar a farda pelo pijama que vai mudar a socialização de quem passa vinte, trinta anos, com uma mentalidade militar.
CC: Como o sr. vê a declaração de Villas Bôas de que os “militares precisam ter garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”?
AF: Fiquei boquiaberto ao ouvir essa declaração. Ela mostra que eles não entenderam nada do que a Comissão da Verdade significa. Mais do que isso, mostra que não há mudança de fundo na mentalidade das nossas forças armadas. É óbvio que os militares devem ter garantia para agir, mas isso não é um cheque em branco para eles atuarem como quiserem.
CC: Ainda sobre Villas Bôas: na reunião do Conselho de Segurança, o general sugeriu um mandado de busca e apreensão coletivo no Rio, que foi atendido pelo presidente e deve seguir para o Judiciário. Qual é a sua avaliação sobre essa decisão?
AF: Imagino que esse tipo de pressão sobre o comandante venha da corporação. É absolutamente lamentável. Obviamente, o mandado coletivo não é para entrar numa residência na avenida Atlântica, na avenida Vieira Souza. A gente sabe para onde vai esse mandado coletivo, e os resultados práticos que isso acaba tendo.
Talvez a minha leitura seja demasiado otimista, mas acredito que [os mandados] estejam muito mais para uma carta na manga do Exército do que para se valer desse expediente rotineiramente. A criminalidade e as facções se sentiriam acuadas a partir de um mandado coletivo e teria um arrefecimento da onda de violência por um período temporário.
Se nós tivéssemos um STF efetivamente guardião da Constituição, ele não aceitaria isso de forma alguma. Sabemos sobre quem recai o custo real e concreto [do mandado]. Isso tem endereço geográfico, cor e classe social. Não deveria constar nem na Constituição aquela parte que diz que as forças armadas são responsáveis pela garantia da lei e da ordem.
O que é lei pra uma pessoa é relativamente pacífico, mas a ordem é um conceito absolutamente subjetivo. Esse tipo de redação acaba servindo de expediente para que as forças armadas sejam utilizadas em defesa do governo e não do Estado, como deveria ser.
CC: O sr. defende um debate claro e transparente entre a sociedade civil e o setor militar. O novo papel dado às forças armadas no Rio avança ou retrocede o diálogo?
AF: A intervenção é lamentável, mas o debate que ela suscita é absolutamente positivo, porque permite pontuar os riscos a que a população está exposta, em especial a população de baixa renda e mais fragilizada socialmente. Tem um acesso pedagógico para nós podermos discutir com um número maior de pessoas o tipo de risco que esse emprego trata. É para falar “Olha, a quais interesses servem essa intervenção no Rio de Janeiro?”
É um debate importante porque as pessoas, no dia a dia, não se dão conta disso. Muitas vezes, elas acham que quando os militares vão [às ruas], é para garantir a vida das pessoas. Não estou dizendo que os militares estão mal-intencionados, eles foram colocados nisso pelo presidente, mas é importante enfrentar esse debate. Em vários países as forças armadas são proibidas de serem empregadas internamente, porque existem para ser empregadas contra ameaças estrangeiras, o que não é o caso.
CC: A intervenção deve ir até o início de 2019. Caso a situação da segurança no Rio não melhore, os militares podem se incomodar com o fato de assumirem essa responsabilidade?
AF: Isso poderia trazer um descontentamento no interior da taverna, e um eventual acirramento de ânimos entre essas duas alas do Exército. Mas para além disso, é difícil prognosticar.
CC: Temer pode se beneficiar dessa manobra? Se sim, até que ponto?
AF: Ele pode até se beneficiar, mas é difícil reverter a situação de um governo cuja aprovação popular não chega nos dois dígitos. Houve especulações na imprensa de que a intervenção poderia impactar na sua possibilidade de reeleição, o que me parece fora da realidade.
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Isso embaralha todo o jogo. Tem vários aliados, de Rodrigo Maia a Alckmin, que são pré-candidatos à Presidência. Em razão de todo esse processo complexo, é difícil imaginar qual o resultado que essa operação terá. Mas é certeza que o governo espera faturar dividendos políticos com a intervenção no Rio. Não se busca combater o crime organizado ou melhorar as condições de segurança da população fluminense, há outros interesses aí. Se ele conseguirá ou não, fica em aberto. Acho improvável que consiga.
CC: O presidente sinalizou a criação de um Ministério da Segurança Pública, ainda sem titular, que será subordinado ao Ministério da Justiça. Qual o efeito de mais uma pasta?
AF: A criação de mais um ministério é muito mais midiática, no sentido de sinalizar a sociedade de que o governo está fazendo alguma coisa, do que de apresentar resultados práticos.Não vejo sentido na criação de mais uma estrutura ministerial para isso.
Interessa muito mais uma ausência de políticas públicas efetivas em outras áreas, que poderiam resultar na redução da violência. Há uma série de medidas que poderiam ser tomadas e não estão sendo. Também me preocupa um possível deslocamento de Etchegoyen como ministro da Segurança Pública. Continuamos indo na direção errada.
CC: A intervenção no Rio pode abrir caminho para possíveis guinadas ainda mais autoritárias no País?
AF: Acredito que não se trate de uma guinada autoritária, ainda que não seja desejável. O que acontece é uma série de movimentos em que os militares estão ganhando protagonismo novamente, devido à inércia da sociedade civil. Conforme nós abrimos os jornais, percebemos como os militares estão envolvidos no Rio, na questão dos imigrantes em Roraima e em outros lugares, porque os civis estão jogando isso nas costas fardadas.