“Há muitas semelhanças entre a autoproclamada presidenta e Bolsonaro”, diz ao DCM pesquisador francês na Bolívia

Atualizado em 17 de novembro de 2019 às 11:04
Jeanine Áñez, presidente autoproclamada da Bolívia. Foto: AFP

O sociólogo francês Franck Poupeau está há meses em La Paz, dentre uma das inúmeras estadas no país, que é tema de suas diversas publicações há 20 anos.

Professor no Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) da Universidade Paris-Sorbonne Nouvelle, ele vê nas últimas semanas um processo mal descrito em nível internacional, seja pela direita, seja esquerda.

Uma destituição forçada por ameaças e depredações, uma autoproclamação ilegal, a deturpação do cargo. Nesta entrevista ao DCM, Poupeau explica por que o presidente boliviano sofreu um golpe. Fala da repressão policial de Jeanine Añez, compara-a a Bolsonaro e vê uma possibilidade de saída da crise vivida pelo país vizinho.

DCM: O que você tem observado na Bolívia nos últimos meses?

Franck Poupeau: O que os observadores não consideram, como os críticos de Morales, os defensores da tese de um golpe de estado… Na minha visão, há golpe de estado e poderemos falar (sobre) ao final. Mas o que os observadores internacionais não consideram é o profundo descrédito e a profunda ilegitimidade que afetavam o governo.

A vontade de ficar no poder desde as últimas eleições, de ter contornado o referendo em 2016, de ter recorrido ao Tribunal Constitucional para poder se candidatar novamente, quando ele não tinha esse direito nos termos da Constituição, tudo remonta ao comportamento do partido no poder, o MAS, que no início era um partido muito ligado aos movimentos sociais e se tornou ao final muito mais um partido do governo, uma burocracia não muito eficaz… Eficaz não é a palavra.

Seria mais “desligado” das bases, com muitos problemas de corrupção, de fechamento das elites sobre elas mesmas. Isso contribuiu para deslegitimar a imagem de Evo Morales, como pessoa, que não respeita seus compromissos e chefe de um partido que reproduz uma nova elite, quando ele na verdade foi eleito para mudar tudo isso.

DCM: A ONU aponta uso excessivo da força pela polícia e exército na Bolívia. Quanto à OEA, aponta-se o silêncio. Añez adota uma política repressivdea?

Franck Poupeau: Sim, não há dúvidas quanto a isso. Há muitos mortos. Acusou-se muito Morales de ser violento durante o período pós-eleitoral; houve três mortos, e isso é sem dúvida ligado aos enfrentamentos entre tropas de choque e grupos da população de oposição. Agora há muito mais mortos. Uma dezena de mortos.

Há uma manchete infame no jornal de oposição, o Página Siete, que agora se tornou o órgão oficial do poder, que diz: “troca de tiros entre o Exército e os cocaleiros”. Troca de tiros? Não é isso, os cocaleiros não estão armados. Eles têm paus, objetos artesanais, tipos de pequenas bazucas, pedras… Em todo caso, as mortes são de cocaleiros.

A ministra da Comunicação fez uma declaração ameaçando de processar os jornalistas sediciosos. Então, veja, esse governo é composto por pessoas que pertenciam a partidos de oposição de direita, muito autoritários, muito conservadores, muito radicais em termos de religião. Eles adotam a política que se espera deles: nenhuma piedade com os pobres, nenhuma piedade com os manifestantes. A presidente Añez acaba de assinar um documento desculpando os militares pelo uso excessivo da força.

O governo é autoritário e todos os “defensores” da democracia que agitaram essa palavra contra Evo Morales estão calados agora. Então é como se dissessem: a questão são só os campesinos e cocaleiros, se (a repressão) é contra eles, a gente não está nem aí. Penso que isso vale para muitas pessoas. Mas é intrigante ver que defende-se uma democracia quando convém a uns e a outros e depois calam-se assim quando já não convém mais nas lutas políticas.

DCM: Por que os indígenas se voltam contra Jeanine Añez?

Franck Poupeau: É complicado. Não são os indígenas. Primeiramente, são as organizações sociais. Os cocaleiros, não podemos dizer que sejam o conjunto dos indígenas. Os que estão no Altiplano, são indígenas, sindicatos, estruturas ligadas ao trabalho e à produção de coca. Os indígenas não estiveram sempre ao lado de Morales, desde 2011, quando ele deixou a Amazônia queimar, a nível legislativo, para continuar fazendo o extrativismo agrícola, e então fazer fogo para expandir a terra.

As organizações indígenas, do oriente, ele perdeu ao longo do tempo. O que resta são dois bastiões históricos do MAS e o sindicato dos cocaleiros, as organizações do Altiplano. Por que eles se mobilizam?

De um lado, há coisas conjunturais. Com a chegada de uma direita radical, há o medo de perder todas as conquistas. No começo, principalmente, queimaram a “whipala”, símbolo do povo indígena e isso é algo que tocou muito as comunidades, do Altiplano, do norte, de Potosí. Eles se mobilizaram para defender a whipala.

Eles não defendem Evo, eles defendem a whipala. E isso é importante porque a outra questão, simétrica à que você pergunta, é: por que não se mobilizaram antes, quando Evo os chamava para a mudança do processo de mudança, a democracia, etc.?

Eu acho que há a gestão de Evo Morales e o partido MAS, a gestão um pouco catastrófica do conjunto das organizações sociais. O distanciamento entre o MAS e as organizações sociais como um todo. Não podemos esquecer que Evo foi abandonado pelos cocaleiros e yungas, pelos cooperativistas de Potosí, pelos indígenas do oriente, mas também pela COB (Central Operária Boliviana), a confederação camponesa do Altiplano boliviano. As pessoas viram Evo cair e não saíram às ruas para defendê-lo. E eu acho que isso é um ponto cego da crítica dos observadores internacionais de esquerda, que gritaram “golpe de estado”.

Sim, houve realmente um golpe de estado. No começo, não era o caso. Mas se tornou ao longo do processo. Houve uma mobilização democrática que foi instrumentalizada. O que todos esses observadores não veem, eles têm razão na sequência apesar de tudo, mas na análise não têm razão, é que grande parte da responsabilidade pela situação atual é da defecção das organizações sociais no combate até o momento da destituição forçada de Evo Morales.

A responsabilidade é de Evo Morales e de sua reação catastrófica e radical, consistindo em não escutar, não negociar durante dez dias até se tornar minoritário no combate e chamar uma negociação apenas no final, enquanto a direita radical, integrista, capitalizou a estratégia da oposição na Bolívia. Tudo isso é culpa dele. E isso é preciso ser dito. Há uma estratégia catastrófica de Evo Morales na gestão do conflito.

Franck Poupeau

DCM: E por que é um golpe de estado?

Franck Poupeau: É preciso olhar a definição de golpe de estado. Um golpe de estado é uma mudança forçada de regime com o objetivo de garantir ou instaurar um novo regime; de continuar ou derrubar uma relação forças pontual.

Não é um golpe de estado se limitarmos, como fazem muitas pessoas, a questão do golpe de estado ao golpe militar. Não houve golpe militar. Por outro lado, a atitude dos militares foi extremamente ambígua. Evo Morales lhes pediu ajuda e eles recusaram intervir, quando ele lhes tinha adulado por 14 anos. Depois de sua passividade, eles sugeriram a Morales de renunciar.

Ele o fez de maneira forçada porque havia ameaças físicas contra ele, seu entorno e um grande número de pessoas em volta. Então há uma mudança de regime. Eu encontrei uma boa definição de golpe de estado numa tese: “é uma derrubada de poder por uma pessoa ou autoridade de modo ilegal e frequentemente brutal. A derrubada é uma revolução se for popular; e ‘putsch’ se for um golpe pela força das armas”.

Houve um movimento popular que era mais no sentido de distribuição de panfletos entre as organizações, entre o exército Evo e a defecção da polícia e pontos de bloqueio bastante específicos. Para falar de golpe de estado é preciso se perguntar: o novo regime instaurado é legal? Nesse ponto, podemos observar que há uma ruptura da ordem constitucional. De um lado, porque a destituição de Evo Morales é forçada, numa relação de forças violenta.

Fala-se muito da violência exercida pelo MAS contra os manifestantes, mas fala-se muito pouco das casas depredadas de deputados do MAS, da casa do presidente Assembleia dos Deputados, que foi incendiada, de ameaças contra sua família, de seu irmão, que foi rendido, certos governadores, prefeitos do Altiplano, muita pressão. Então há uma destituição forçada, não voluntária, pela força.

Em seguida, há um vácuo no poder. A uma pessoa que toma o poder, Añez, tem toda a legalidade e legitimidade para ser presidente do Senado já que os outros haviam renunciado, forçados. Mas não é o caso para a autoproclamação da presidência do Senado à presidência do estado plurinacional. A jurisprudência remonta a 2001, na Constituição. Olhando nos detalhes, a única questão encontrada para acalmar a todos e proclamar uma nova presidente é um acordo com o Tribunal Constitucional sobre bases que não são constitucionais e aí há uma ruptura da legalidade.

Terceiro ponto: a natureza do regime em vigor, que é um regime provisório, a saber que tem por única função programar eleições, se encontra fazendo ações a nível internacional, rompendo contratos, compromissos e reprimir pelas armas uma população que se manifesta não somente contra ela e o tratamento à nova oposição. A instauração de um governo autoritário. Eu não penso que haja um golpe de estado completamente premeditado. Mas acabam de vazar áudios entre a antiga oposição e os Estados Unidos…

DCM: A destituição de Morales aconteceu depois das manifestações no Chile, da vitória da esquerda na Argentina e praticamente no dia seguinte à libertação de Lula. Há uma conexão entre esses fatos?

Franck Poupeau: Há analistas que te dirão que sim. Mas eu acho que não. Nos anos 2000, falava-se numa onda da esquerda. Depois, numa volta da direita. Acho que nesse caso há fatores bem singulares da Bolívia.

DCM: Há um forte diálogo entre o governo Añez e Bolsonaro, principalmente por símbolos como a Bíblia e o apelo ao autoritarismo. Qual é sua percepção?

Franck Poupeau: Tem muitas semelhanças. Estou escrevendo um artigo em que concebia justamente o governo Añez como o bolsonarismo. Há um partido evangélico que teve 8% de representação no parlamento. Tanto Antes quanto Bolsonaro dois utilizaram a questão da corrupção.

Apesar dos resultados sociais positivos de Evo Morales e do pouco que fez na distribuição de renda, isso foi considerado excessivo pela classe média, que não aceitou essa repartição. Então a repressão adotada por Añez atende a essa parcela da sociedade.

DCM: Como avalia a reação internacional do ponto de vista político e midiático em relação aos acontecimentos na Bolívia?

Franck Poupeau: Não tenho competência para falar sobre esses aspectos. Foi muito básica. Ou dizendo “foi golpe” ou dizendo que foi maravilhoso.

DCM: O que pode trazer paz nesse momento?

Franck Poupeau: Uma negociação entre a assembleia, onde o MAS é majoritário, e o governo, que terá de negociar, sob o risco de mais violência e mortes.