“Há pessoas num delírio místico”, diz ao DCM grande imã francês sobre terrorista que degolou professor

Atualizado em 22 de outubro de 2020 às 11:55
O imã francês Tareq Oubrou

“Há pessoas que estão num delírio místico”, afirma Tareq Oubrou, grande imã de Bordéus, sobre Abdoullah Anzorov, jovem de 18 anos que decapitou na semana passada o professor Samuel Paty depois que ele mostrou caricaturas do profeta Maomé em sala de aula, e Zaheer Hassan Mahmoud, 25 anos, que atacou com um machado duas pessoas perto da antiga sede do jornal Charlie Hebdo no final de setembro.

Na visão do líder religioso, a França se depara com um desafio cuja República tem uma responsabilidade: jovens incultos, expostos às mais diversas fontes de manipulação e preconceitos, problemas de integração econômica e cultural, uma guetificação que transforma bairros país adentro em um terreno fértil para o fundamentalismo que ele diz ser um erro chamar de religioso.

Nesta entrevista para o Diário do Centro do Mundo, Tareq Oubrou, ameaçado de morte pelo Estado Islâmico por propor uma doutrina liberal do islã, relata como vive diante da ameaça. Elucida causas, aponta responsabilidades e propõe soluções para erradicar o terrorismo no país.

DCM: Uma semana depois do atentado que matou o professor Samuel Paty, qual é sua reação?

Tareq Oubrou: Minha reação é a de todos os meus compatriotas franceses. É um crime horrível. Não é apenas um criminoso que matou sua vítima. Ele cortou-lhe a cabeça, então é mais do que um crime. Foi um cidadão francês como eu, morto por um perverso.

Sou muçulmano e esse crime é atribuído erroneamente à minha religião. Então sou duplamente penalizado.

DCM: O senhor certamente cruzou diversos membros da religião muçulmana na França nestes últimos dias. Qual é o estado de espírito da comunidade ou das comunidades muçulmanas na França neste momento?

Tareq: Ela está horrorizada. É terrível. A comunidade muçulmana na França está numa situação muito delicada, refém de atos terroristas bárbaros, perpetrados em nome de sua religião.

DCM: O jihadismo ameaça não apenas uma sociedade laica, mas também personalidades muçulmanas como o senhor, um imã jurado de morte pelo Estado Islâmico em 2016. Como isso é possível?

Tareq: Eu não chamo isso de “jihad”. “Jihad” é o esforço pela justiça e a verdade. O “jihadismo” é empregado às vezes de forma errônea. Não é o Corão que diz ao muçulmano para combater seu próprio inimigo, leia-se a si mesmo. É preciso chamá-los pelo que eles são: criminosos bárbaros.

Claro que sou ameaçado. É preciso lembrar que esse terrorismo matou mais muçulmanos do que não-muçulmanos. Ele começou em países muçulmanos antes de atingir a França.

É claro que meu discurso incomoda os extremistas. Essa ideologia prega o separatismo, a violência, a guerra. Essa não é a minha religião. Minha religião é a paz, a serenidade, a alteridade. Meu discurso combate essas ideias extremas e extremistas, razão pela qual sou ameaçado.

DCM: Por que lhes incomoda?

Tareq: Tudo que é contrário à ideologia deles lhes incomoda.

DCM: De que maneira o senhor vive hoje em termos de segurança, desde a ameaça?

Tareq: Normalmente. Propuseram-me duas vezes o uso de guarda-costas, o que eu recusei. Primeiro porque eu não posso pesar sobre o contribuinte, porque custa muito a proteção de personalidades.

Incomoda-me muito ser protegido porque é ceder ao medo e eu não tenho medo. Por isso recusei a proteção. Eu não me vejo entrar numa mesquita, diante dos fiéis, rodeado de guarda-costas. É antinômico em relação à minha função.

DCM: E os atentados que ocorreram na França nas últimas semanas não lhe provocam medo?

Tareq: Eu sou crente. Eu acredito que Deus está acima de tudo. Eu não posso viver no pânico e no medo. Vivo na serenidade da fé. Eu sou prudente, tomo cuidado. A França não pode parar de viver. A sociedade não deve parar de viver porque há loucos. A vida é um risco. Pode-se morrer por causa de um criminoso ou por um acidente. Enquanto crente, eu não tenho medo.

DCM: Por que dois jovens terroristas evocaram a religião muçulmana em meios a seus atos nestas últimas semanas na França?

Tareq: Há pessoas que estão num delírio místico. Tudo que eles fazem em nome da religião, mesmo quando eles matam, é terrível.

Há pessoas que têm um problema com sua identidade. Estou convicto de que não são verdadeiros crentes, isto é alguém que ama Deus, que sabe fazer a oração, que tem uma experiência espiritual com o divino. Querer matar alguém é contrário à fé.

DCM: Uma grande tensão se configura no país entre liberdade de expressão, de confissão religiosa e o combate ao islamismo. O senhor acredita que as operações de dissolução de associações muçulmanas e fechamento da mesquita de Pantin (na região metropolitana de Paris) são eficazes para combater o terrorismo sem cair na islamofobia?

Tareq: O político precisa de gestos simbólicos. É preciso que ele tranquilize a população. Mas fechar uma mesquita para reabri-la seis meses depois não muda radicalmente a situação.

Se houver mesquitas que propagam ódio e palavras contrárias ao Direito, é preciso aplicar a lei e o direito.

DCM: O senhor não teme uma perseguição ou um aumento da islamofobia no país?

Tareq: Eu compreendo o francês médio, quando ele vê esses crimes perpetrados em nome da religião, isso reforça os preconceitos dos não-muçulmanos em relação ao islã. Então há um medo do islã que pode gerar uma reticência em relação a muçulmanos. Mas eu não penso que o povo francês seja racista, essencialmente antimuçulmano.

DCM: Mas o senhor reconhece que o risco de islamofobia existe?

Tareq: Há um risco, claro. Mas não se deve superestimá-lo. Os muçulmanos não devem entrar em pânico. É preciso haver um mínimo de confiança entre muçulmanos e o resto da sociedade.

Nós estamos evidentemente num Estado de Direito, há uma República. Não se pode fazer o que se quer. Todos os atos antimuçulmanos, todos os atos racistas são punidos pela lei, são combatidos pela República.

DCM: A cada vez em que há acontecimentos como os destas últimas semanas, o senhor ouve relatos de dificuldades para viver em conjunto, viver em sociedade?

Tareq: Há muito tempo há um problema de integração econômica, de integração cultural. É preciso saber que é uma população muito diversa, de origem diversa. Não há apenas o islã nessa visibilidade que se atribui ao islã hoje em dia.

Há uma dificuldade social, cultural, étnica, identitária, visibilidades sobre as quais se soma o elemento religioso, com interpretações completamente anacrônicas em relação à realidade.

Nossos jovens não conhecem o islã, não foram educados, não foram ensinados por professores que ensinam o islã. Eles são incultos em matéria religiosa. Eles aprendem pelas redes sociais, pelo que os pais dizem. Não há uma formação religiosa.

Os primeiros ignorantes do islã são estes jovens. A integração se faz, como disse o presidente Macron, por uma parte de responsabilidade que cabe à República; o fracasso escolar, porque se colocaram pessoas de origem estrangeira no mesmo bairro, então se contribuiu de uma certa maneira ao que acontece hoje nos nossos bairros.

Há uma responsabilidade que cabe à educação porque não se conseguiu dar-lhes um sucesso escolar e econômico. Há também a exclusão social nas empresas.

Estamos numa situação muita tensa e complexa, em que há muitos problemas. Apesar disso e das aparências, as coisas evoluem.

DCM: O ministro do Interior Gérald Darmanin se diz chocado de entrar em supermercados e ver seções de uma cozinha (árabe) que ele qualifica como comunitária. Marine Le Pen prega a expulsão de pessoas investigadas por terrorismo. Jean-Luc Mélenchon quer a revisão de determinados dossiês de refugiados da comunidade tchetchena. Como avalia as declarações da classe política?

Tareq: É preciso ter foco no inimigo. Quando se começa a misturar tudo, vai-se passando de terrorismo para islamismo, do islamismo ao islã, de islã a muçulmano, então é preciso ter cuidado. É necessário identificar o inimigo, que é o radicalismo rumo ao terrorismo.

Há um combate cultural em relação a nossas crianças quanto ao que elas aprendem, em relação a suas posições. Carne “halal” não tem nada a ver com o extremismo ou o terrorismo.

No entanto, foi-lhe feita uma pergunta (ao ministro) fora do tema e o que foi destacado foi isso. Mas para mim é um erro, pois não se deve associar praticas religiosas, com as quais pode se estar ou não de acordo, eu mesmo sou crítico à carne halal, ao véu, enquanto teólogo muçulmano, porém é preciso aceitar a diversidade.

DCM: Como ganhar a batalha ideológica na França e na Europa contra o terrorismo que se autointitula “jihadista”?

Tareq: Tem que educar nossas crianças, dar-lhes as ferramentas, armá-las pela cultura, pela crítica. A maior parte das informações recebidas pelas crianças não vem nem das escolas, nem das mesquitas, vêm das redes sociais. Então, é preciso fornecer-lhes ferramentas adaptadas, que lhes permitam ter um filtro para escolher as informações corretas sobre a religião, desenvolver nas crianças uma capacidade crítica de distinguir o verdadeiro do falso e sair da mentalidade do “complô”.

Os imãs devem fazer seu trabalho, pois efetivamente há imãs que desenvolvem um discurso não necessariamente fanático, mas inspirado em parte no fanatismo, o que precisa ser revisto para que não se diga qualquer coisa. É preciso adaptar o discurso à mentalidade contemporânea.

As instituições religiosas muçulmanas devem fazer seu trabalho. As instituições de segurança devem adaptar suas técnicas de vigilância e controle. O sistema judiciário deve se adaptar para enquadrar o virtual, porque hoje proibiu-se a burca em espaço público, mas não se proibiu a “burca virtual” nas redes sociais.

As pessoas se valem de discursos de ódio mas não são punidas pois utilizam falsos nomes, pseudônimos, etc. Então é necessário considerar o virtual como um espaço público onde as pessoas assumem a responsabilidade por suas palavras. Então o Direito tem que evoluir.

A educação tem que levar em consideração o que acontece na sociedade, pois isso se reflete na escola, como a questão do véu, a compatibilidade da “sharia” (conjunto de leis do Corão, livro sagrado do Islã) com a República. É preciso levar em consideração esse mercado ideológico para combatê-lo com uma educação inteligente e pedagógica.

DCM: Nesse sentido a escola é falha?

Tareq: Ela não está suficientemente “armada” porque o mundo mudou brutalmente. Não se vive mais numa sociedade puramente física. Ela é também conectiva, as pessoas estão conectadas. A sociedade é conectiva e virtual. O virtual habita o real. Precisa-se considerar que estamos em sociedades-mundo, numa humanidade fractal, o que acontece na China, na Síria, na Arabia Saudita, na América, no Irã, na Turquia tem repercussões na nossa sociedade francesa.

As fronteiras, as vias do virtual permitem a circulação de ideias. Não há apenas uma globalização da economia. Há a globalização da religião, das ideologias, então é preciso adaptar a pedagogia do ensino para que nossas crianças estejam bem “armadas”.

DCM: De que modo a comunidade muçulmana pode e pretende responder a estes ataques?

Tareq: Os muçulmanos estão na sociedade. Eu penso que se deve responsabilizar os muçulmanos enquanto cidadãos e indivíduos. Na França, não se reconhecem comunidades, se reconhecem indivíduos. Cada um deve assumir sua responsabilidade. Os pais em primeiro lugar.

Eles não têm o direito de colocar filhos no mundo e não cuidar deles. Não basta enviá-los à escola. É preciso acompanhá-los. Os muçulmanos, enquanto indivíduos, devem assumir sua responsabilidade enquanto cidadãos.