Haddad: Como são construídos os golpes de estado na América Latina

Atualizado em 16 de novembro de 2019 às 12:48
Fernando Haddad Foto: NELSON ALMEIDA / AFP

A história da América Latina é tão violenta que muitas vezes as sutilezas do processo político passam despercebidas e confundem o observador de boa-fé.

Comecemos pelo que parece mais inofensivo: alterar a Constituição em proveito próprio.

Durante os anos 1990, virou moda governos neoliberais emendarem a Constituição com vistas a garantir a recondução dos mandatários latino-americanos de plantão.

No Brasil, a situação foi agravada pelo fato de a emenda constitucional que permitiu a reeleição de FHC ter sido aprovada mediante comprovada compra de votos de deputados federais, sem que o Ministério Público à época se interessasse em investigar o mandante.

A título de comparação, vale lembrar que, quando alguns poucos dirigentes do PT, animados com a aprovação popular sem precedentes do governo, ensaiaram defender a possibilidade de um terceiro mandato consecutivo para Lula, a operação foi abortada pelo próprio, no nascedouro, o que lhe reserva um lugar diferenciado na lamentável tradição latino-americana que ainda persiste, tanto à direita quanto à esquerda (Evo).

Não quero, neste momento, tratar dos golpes menos sutis que têm marcado o período recente. Golpes parlamentares (Lugo e Dilma) e “lawfare” (Cristina Kirchner, Rafael Corrêa e Lula) –expedientes que corroem a democracia por dentro das instituições– vêm sendo abordados por estudos acadêmicos em profusão. Não são tão escancarados como os golpes militares dos anos 1960-70 (e contra Evo)–daí o recurso aos adjetivos “híbrido” ou “soft” para caracterizá-los– nem são tão sutis quanto aqueles que se praticam sob aparente normatividade.

Recentemente, o ex-senador Jorge Bornhausen afirmou que “agora o Congresso vai rumar para o parlamentarismo”. Desconsiderando os plebiscitos de 1963 e 1993, que reafirmaram nossa tradição presidencialista, o ex-governador biônico sinalizou apoio à candidatura de Luciano Huck, que, dias depois, concedeu entrevista defendendo o parlamentarismo.

É discutível se o presidencialismo se tornou cláusula pétrea após 1993, mas, com certeza, falar em parlamentarismo sem plebiscito é golpe: aquele típico arranjo de gabinete envernizado tão ao gosto do tradicional centr(ã)o brasileiro que se pensa moderno.

Fernando Haddad, professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo