Haddad é muito melhor, mas o voto está sendo decidido com o fígado, não com o cérebro. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 15 de outubro de 2018 às 17:32

No futuro, quando os historiadores se debruçarem ao estudo da atual campanha eleitoral, uma das constatações será a perda da racionalidade por grande parte do eleitorado

Só a perda da racionalidade explica a vantagem de Bolsonaro entre 16 e 18 pontos nas pesquisas.

No confronto de biografias e de propostas, Haddad vence de goleada, mas isso não tem sido levado em conta por grande parte do eleitorado.

Por quê?

Na entrevista que concedeu hoje de manhã, Haddad tocou nesse ponto indiretamente, ao falar da consequência de um ambiente tóxico como o atual, que é a violência.

Citou o caso de uma mulher que apanhou ao sair do Metrô em São Paulo porque seus algozes desconfiaram que ela fosse de esquerda.

“Perguntaram: você é de esquerda? Está se vestindo como uma pessoa de esquerda… E levou umas bordoadas. É isso o que está acontecendo no país”, contou.

Haddad atribui parte da onda bolsonarista ao medo que as pessoas estão tendo. “Quem manifesta uma posição contrária tem sido atacado”, constatou.

Ataques que, quando lhe são dirigidos, não o intimidam.

“Modéstia à parte, sou uma pessoa que não tem medo de enfrentar situações adversas, e vou trabalhar até o último segundo para evitar que o Brasil caia numa aventura que vai trazer consequências danosas para o país, não sei se irrecuperáveis”, acrescentou.

Por isso, como era de se esperar, Haddad reafirmou o compromisso com a construção de uma frente democrática ainda antes das eleições.

“Não vou poupar esforços para evitar o pior”, insistiu, e cobrou a imprensa por um noticiário que apresenta Bolsonaro como se ele fosse natural na política.

“Meu adversário está na lista dos piores parlamentares da história. Está no top ten de qualquer lista. No entanto, ele está sendo naturalizado, como se fosse banal o que está acontecendo (…) Já vi esse filme em outros países e não termina bem”, observou.

Haddad mencionou uma entrevista do cientista social Marcos Nobre, publicada hoje pela Folha de S. Paulo, em que ele afirma que a vitória do Bolsonaro transformaria o Brasil numa mistura de Filipinas com a Turquia.

Disse Nobre:

“Nas Filipinas, virou uma coisa do tipo: você tem algum problema para resolver com seu vizinho, com lideranças indígenas, pode resolver que o Estado não vai mais arbitrar. O Estado deixa de arbitrar conflitos violentos na sociedade. (…) Isso já está acontecendo e vai piorar. Se Bolsonaro tivesse alguma responsabilidade, iria para a TV e diria para essas pessoas: parem. Só que ele tem um problema. Se disser para essas pessoas pararem, está aceitando que é responsável por essa violência. Então temos um impasse. Esse é o lado Filipinas. O outro lado é o de estrangular as liberdades, como é no caso da Turquia.”

Nobre é formado pela USP, professor da Unicamp e pesquisador do CEBRAP, a entidade fundada por Fernando Henrique Cardoso há quase 50 anos, com grande contribuição aos estudos sociais e políticos do Brasil. “Ele (Nobre) sabe o que está falando”, endossou Haddad, na entrevista.

Nobre acertou ao dizer que Haddad deve se colocar como um candidato que represente forças que vão além do PT, mas errou ao fazer a proposta de que Haddad deveria abrir mão já da reeleição e apresentar Ciro Gomes como candidato à sua sucessão, em 2022.

Além de impraticável, como se democracia dependesse da vontade pessoal de Haddad, a proposta tem origem em um equívoco: parte do pressuposto de que a atual situação política é fruto das forças de esquerda aglutinadas no PT e nos seus aliados de primeira hora.

Nunca é demais lembrar que Bolsonaro é filho bastardo da aliança nefasta construída entre setores do Judiciário e a mídia hegemônica, a velha imprensa, que apresentou ao Brasil uma caricatura da política, como se toda ela estivesse contaminada pela corrupção e colocou no mesmo balaio propina e doação empresarial de campanha — desde sempre interessada, mas não necessariamente vinculada a ações do governo.

Essa onda, movida para tirar o PT do governo federal, atingiu em cheio os demais partidos — mas não o PT, partido que teve origem nos movimentos sociais.

Bolsonaro, por sua vez, se apresentou como o anti-politico, preservou-se do tsunami e viu sua estratégia dar resultado.

Ele é uma farsa, já que é uma raposa velha no Congresso, mas foi assimilado como outsider pelo eleitorado, que, de resto, tem decidido com altas doses de emoção.

O apoio maciço dos mais escolarizados a Bolsonaro é, com certeza, algo que a razão não explica — segundo a pesquisa do BTG Pactual, divulgada hoje, entre os que têm curso superior, 66% dizem que poderiam votar no capitão da reserva contra 29% que estariam dispostos a votar em Haddad.

Por que quem deveria se pautar pela razão se move por impulso de linchador? É a baixa qualidade das universidades? É analfabetismo político? É ódio de classe?

São questionamentos que devem merecer maior atenção de intelectuais como Nobre e o próprio Haddad, em estudos futuros, mas, nesse momento, o que deve prevalecer é a ação concreta que revele compromisso com a democracia — de lado a lado.

Não é hora da teoria, mas da prática.

E democracia vai além de nomes, e dispensa o toma lá, dá cá — “me apóia agora que te apóio em 2022”.

É preciso ampliar, sim, o leque de apoios em torno de Haddad — ele é o candidato –, com a construção de uma frente democrática, mas sem desespero.

Eleição se ganha e se perde, e o voto é apenas um ato de quem tem compromisso com a democracia.

O Brasil permanece, Haddad e o PT também, assim como Ciro. 

É preciso mostrar quem é Bolsonaro, que o problema está nele e nas forças que o sustentam, não no campo democrático, e é preciso avisar ao eleitor que votar nele é a pior decisão.

É preciso também mostrar Bolsonaro em todas os seus detalhes e suas contradições, e mostrar o que era o Brasil antes de 2003 e o que poderá voltar a ser.

É preciso, enfim, emocionar, sem ferir a razão. No respeito à verdade é que Haddad se diferencia.

Mas, sem se afastar desse compromisso, deve se dirigir mais ao coração das pessoas, para anular o veneno que confunde o fígado.