Haddad resgatou da sombra o papel monstruoso de Serra no caos que vivemos. Por Kiko Nogueira

Atualizado em 5 de junho de 2017 às 22:21
José Serra e Michel Temer. Foto Orlando Brito

O alentado ensaio de Fernando Haddad sobre sua carreira política publicado na Piauí traz, entre vários insights, um retrato de Serra que dá a dimensão de sua figura pública.

Como o papel de Aécio Neves no processo do impeachment tornou-se muito visível, dado que foi o candidato que não aceitou a derrota para Dilma e saiu gritando na frente das câmeras, deixou-se de lado o eminente colega tucano.

O Careca da Odebrecht está hoje desaparecido sob uma montanha de escândalos. Pediu demissão do ministério das Relações Exteriores alegando dor na coluna e voltou ao Senado.

Sua amiga Eliane Cantanhêde, colunista do Estadão e da GloboNews, afirmou em fevereiro que a depressão vinha “aumentando”.

Ele “não estava feliz no cargo, que é muito distante da Fazenda com que sonhou”, escreveu.

O triste fim é um caso de justiça poética, uma cautionary tale sobre como um sujeito sem escrúpulos se alia a uma corja pior do que a sua de sempre e ajuda a arruinar um país de lambuja.

Para atrapalhar Geraldo Alckmin em seus planos para 2018, topou até fazer uma dobradinha com Aécio, seu inimigo público números 1, 2 e 3 até 2014.

A fama de cocainômano do mineiro teve colaboração decisiva de Serra. Basta lembrar do artigo canalha que encomendou a um jornalista do Estadão com o título de “Pó pará, governador”.

Serra é mau feito um pica pau.

Se 20% dessa energia fosse destinada para as tarefas para as quais ele foi eleito, talvez seu destino fosse outro — mas aí não teríamos o Zé Serra, um dos personagens mais desprezíveis da República.

No futuro, você vai dizer a seus netinhos: “Meninos, eu vi o Serra”.

Haddad:

A campanha de José Serra à Presidência em 2010 foi um momento importante dessa inflexão tucana. Embora talvez fosse o desejo íntimo de alguém como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o PSDB não conseguiu se transformar na versão brasileira da agenda democrata norte-americana. Pelo contrário, ao radicalizar o discurso conservador, o partido revolveu o campo político de onde floresceu a extrema direita no Brasil. Quem abriu a caixa de Pandora de onde saiu o presidenciável Jair Bolsonaro foi o tucanato. Embora essa agenda pudesse vir à tona em algum momento, foram os tucanos que a legitimaram. Um equívoco histórico. Quando, pela mudança de conjuntura, se tenta abdicar desse ideário, isso já não é mais possível, pois logo aparece alguém para ocupar o espaço criado. Foi exatamente o que aconteceu: a extrema direita desgarrou e agora quer tudo – a agenda tucana e muito mais.

(…)

O que me surpreendeu foi a pós-eleição [de Dilma]. As principais lideranças do PSDB se dividiram: Aécio começou a trabalhar por novas eleições; Serra, pelo impeachment; e Alckmin, grande vencedor do pleito de 2014, pela normalidade institucional até 2018, cenário que mais lhe favorecia.

O movimento mais visível foi o de Aécio. Pediu recontagem dos votos, ação pela cassação da chapa Dilma–Temer por abuso de poder econômico, mobilizou todos os argumentos para que o resultado das urnas não fosse aceito. A tensão aumentava a cada dia.

Convidei FHC para um almoço na prefeitura. Dias depois, fomos juntos ao Theatro Municipal. Queria entender melhor o que ele pensava. Concordamos sobre a gravidade da crise. Mas meu diagnóstico sobre seu desenrolar se mostrou totalmente errado. A certa altura do almoço, arrisquei: “Ela não governa, mas vocês não a derrubam.”

A unidade do PSDB a favor do impeachment foi construída com a participação de FHC. Alckmin, o último que resistia à ideia, finalmente foi enquadrado e a tese de Serra saiu vitoriosa.

Ao longo do ano de 2015, Serra trabalhou intensamente pela causa. Seu papel no impeachment foi subestimado. O ex-governador tucano aproximou-se muito de Michel Temer e lhe garantiu apoio. Era Serra quem telefonava para os governadores, sobretudo do Nordeste, e depois de uma conversa política passava a ligação a Temer, que a concluía com a senha “Precisamos unir o Brasil”.

A articulação de Miguel Reale Jr. e Janaina Paschoal com Hélio Bicudo, autores do pedido de impeachment contra Dilma, teve participação direta de Serra. E, no final de 2015, a ida de Marta para o PMDB foi acertada no Senado com a participação de Serra. A estratégia servia a dois propósitos: garantia o voto da senadora pelo impeachment e criava uma candidatura competitiva alternativa à minha na periferia. (A candidatura de Erundina pelo PSOL complicaria ainda mais o quadro já fragmentado e abriria uma avenida para João Doria.)