Herança escravocrata: Por que brancos como Bocardi não conseguem se libertar do racismo estrutural

Atualizado em 7 de fevereiro de 2020 às 12:56

O apresentador de TV Rodrigo Bocardi está apanhando feio nas redes sociais por uma manifestação que pode ser entendida como produto do racismo cultural que domina o Brasil.

O repórter Tiago Scheuer fez uma entrada ao vivo da estação Pedro II, no centro de São Paulo, e abordou um jovem de camisa azul e calção preto que esperava o Metrô já havia algum tempo.

Perguntado, o jovem diz que se chama Lionel e que precisa chegar às 8 horas em seu compromisso.

O apresentador decide, então, participar da entrevista. Como ele só tem comunicação pelo ponto eletrônico do repórter, manda que ele faça uma pergunta:

— “O Lionel vai pegar bolinha lá no Pinheiros?”.

O repórter parece fingir que não ouviu e faz outra pergunta:

— “Você vai fazer onde a baldeação?

Bocardi interrompe:

— “Não, não, não. Ele vai pegar a bolinha lá no Pinheiros? Bolinha de tênis lá no Pinheiros? Ou não?

O repórter, meio sem jeito, cumpre a ordem:

— “Você vai pegar a bolinha de tênis lá no Pinheiros, o Rodrigo está perguntando.

Lionel responde:

“Não, eu sou atleta lá do Pinheiros, eu jogo polo aquático.”

Rodrigo Bocardi faz o comentário típico de surpresa, como se Lionel não pudesse ser um atleta, como ele próprio, que frequenta esse clube da elite paulistana.

— Aí sim. Está pensando o quê?

A co-apresentadora, Glória Vanique, faz uma exclamação que demonstra surpresa:

— Ahhhhhhhhhohhhhhhhh!

Rodrigo piora a situação:

— E eu achando que eram os meus parceiros ali que me ajudam nas partidas e tal. Joga polo aquático, olha que fera!

E se ele fosse gandula, Rodrigo e Glória? Seria menos?

— Manda um abraço para ele — diz ainda o apresentador, como se estivesse agora diante de um igual.

Scheuer, que tentou evitar o vexame de Bocardi, comenta, já que a pergunta sobre pegar bolinha no Pinheiros não tinha nenhum sentido jornalístico:

— Ah, agora entendi. Era uma piada interna.

Bocardi continua:

— E agradece já logo de cara o sorrisão com que ele recebeu você aí. Como é bom, como já muda a vida. Tenho certeza de que você sentiu isso também.

O repórter faz um sinal de positivo, mas não transmite o recado.

Foi, repita-se, um vexame. Foi também a manifestação do racismo estrutural ou cultural presente no Brasil, como fica claro nas palavras que Bocardi disse em seguida, para explicar que no Pinheiros há um projeto de menores aprendizes.

Segundo ele, há uma galera que vem em peso da Zona Leste para “ajudar” os tenistas e também “aprender”.

O que Borcardi fez não é, tecnicamente, crime, mas a explosão do preconceito racista que divide não só a cidade de São Paulo, mas o Brasil.

O comentário parte da mesma matriz cultural que dificulta a ascensão profissional dos negros e negras e gera situações em que um branco atravessa a rua quando vê um negro se aproximar da calçada como se fosse criminoso.

Ou ainda do policial que revista um cidadão apenas porque ele é negro.

Bocardi, indica o nome, descende de italianos, mas vem de uma família humilde. Nasceu em Ipaussu, interior do Estado, foi contínuo em São Paulo e começou na TV em funções subalternas. Pegava fitas para editores na Bandeirantes.

Nem assim escapou da cultura racista entranhada nos brasileiros, principalmente os de classe média — a co-apresentadora, Glória Vanique, fez manifestação igualmente preconceituosa.

É a nossa herança escravocrata, como anotou o sociólogo Jessé Souza em A Elite do Atraso.

Bocardi ainda tentou se explicar no Twitter. Disse que fez o comentário em razão da roupa que o jovem Lionel usava, igual ao dos gandulas das quadras de tênis. Atletas usam também esse uniforme.

Em sua defesa, reforçou a narrativa do profissional bem sucedido que já foi pobre. “Comecei a vida como garoto pobre, contínuo, andando mais de duas horas de ônibus todos os dias para ir e voltar do trabalho e escola”, afirmou.

“Alguém como eu não pode ter preconceito. Eu não tenho, nunca tive, nunca terei”, acrescentou.

Exagerado.

Se pessoas com origem pobre no Brasil tivessem consciência de classe, o presidente brasileiro não seria um homem que já foi processado por racismo — o STF absolveu Bolsonaro no episódio dos quilombolas cujo peso ele calculou em arrobas.

Ainda para tentar afastar o estereótipo de racista, Bocardi contou que sua foto no Twitter, em que aparece cercado por meninos negros, é a mesma desde 2003.  A foto — ele informou — é do período em que trabalhava como correspondente em Angola.

Com o argumento de que, se posta foto com negros, não pode ser racista, aí piorou a situação. Bolsonaro também desfila com um negro, a quem concedeu o direito de usar o seu nome, para tentar afastar a fama de racista.

Não tem jeito, Rodrigo Bocardi. Foi uma manifestação racista, fruto de quem ainda não compreendeu o que é o Brasil.