O grande jornalista nissei

Atualizado em 24 de maio de 2013 às 16:57
O jornalista Hideo Onaga, no fim da vida

Era o final da década de 1980. Eu editava a Veja São Paulo, e estava fazendo um perfil de um jornalista da Folha que era inovador e, para usar suas próprias palavras, ceticínico – uma mistura de cético e cínico.

Era Matinas Suzuki Jr, um cara interessante, sorridente, criativo. Matinas foi, nos primeiros anos da gestão de Otávio Frias Filho, um jornalista vital na Folha. Fora tudo, se vestia com extravagância. Parecia, com frequência, vítima da moda.

Fui conversar sobre o perfil com José Roberto Guzzo, diretor de redação da Veja e um de meus chefes na Vejinha.  Saí satisfeito do despacho. Guzzo observara que, antes de Matinas, um jornalista nissei se destacara na imprensa brasileira: Hideo Onaga.

Hideo Onaga.

Era um nome caro para mim. Hideo fora vizinho nosso no Previdência, um bairro cheio de jornalistas, e um grande e leal amigo de papai. Cresci com os dois filhos de Hideo, Claudia e José Eugênio, morto tão jovem. Lembro as visitas de Hideo ao Sírio-Libanês naquele agosto de 1982 em que papai agonizou e morreu.  Discreto, o rosto composto como o de um samurai, mas no qual se podia ler a dor de ver um amigo à morte. Era bom abraçar Hideo naqueles dias duros, em que aos 26 anos eu caminhava desgovernado no quarteirão imenso do hospital para adiar o momento de entrar e enfrentar o pesadelo de ver papai doente.  Falar com a equipe médica comandada pelo Doutor Bezerra, ele sempre em trajes executivos, era um horror que eu postergava ao máximo.

Papai contava histórias de Hideo. Gostava de falar da viagem que ele fizera ao Japão, já maduro. Parecia um na multidão, mas não falava nada de japonês. Quando o abordavam na rua, se sentia um débil mental.  Papai falava também da enorme capacidade de repórter de Hideo. Foram companheiros nos anos 50 na Folha. Papai ficaria lá até o resto da vida. Hideo mudaria de vida depois. Foi, por um longo tempo, conselheiro pessoal de Shigeaki Ueki, presidente da Petrobras e depois ministro.

Permaneceriam sempre amigos, dois jornalistas que se respeitavam e gostavam sinceramente um do outro.

Foi com alegria que citei Hideo em meu artigo sobre Matinas. Na história do jornalismo brasileiro, os jornalistas costumam aparecer injustamente em posições secundárias, como se as manchetes, os furos e até as legendas fossem obra dos donos.

Voltei a ver o nome de Hideo estes dias, e outra vez com alegria e nostalgia. Estava lendo o livro de Fernando Morais sobre a seita japonesa que, no pós-guerra no Brasil, não acreditou que o Japão tivesse sido derrotado, a Shindo Renmei. Seus integrantes creditavam à propaganda americana a informação de que o Japão, jamais vencido em sua história milenar, fora derrotado e capitulara incondicionalmente em 1945. O livro, que está sendo transformado em filme, se chama Corações Sujos, uma das formas pelos quais os nacionalistas chamavam seus compatriotas “derrotistas”.

Os adeptos da Shindo Renmei passaram a matar membros da comunidade japonesa que eles consideravam servir aos interesses dos inimigos na guerra, os “derrotistas”. É uma história dolorosamente fascinante, em que se mesclam bravura irrestrita, nacionalismo comovente e um fanatismo sanguinolento.

Integrantes da seita na capa do livro de Fernando Morais

Li que Hideo, um “derrotista”que fizera uma reportagem dura sobre a seita, foi ameaçado de morte. Ele e seu pai, que fora dono de um jornal feito para a colônia japonesa brasileira.  Os japoneses no Brasil, como mostra Corações Sujos, sofreram um bocado depois que o governo relutante de Getúlio Vargas entrou na guerra contra Japão, Alemanha e Itália, em 1942.

Num determinado momento, a legislação brasileira impediu que crianças aprendessem qualquer língua estrangeira até os 14 anos. Escolas japonesas foram fechadas.  Denúncias eram feitas. Numa delas, a polícia chegou já bem noite a um local em que crianças japonesas estariam sendo educadas. O silêncio inicial sugeria que fora uma delação falsa. Ao abrir uma porta, os policiais encontraram crianças numa sala de aula improvisada, estudando. O material subversivo – cadernos, livros, canetas, réguas – foi apreendido. Quando a guerra enfim terminou, entrou em cena a Shindo Remnei – e os tormentos da colônia japonesa se estenderiam ainda por mais alguns meses.

Foi nesse momento que Hideo foi ameaçado de morte.

Gostaria imensamente de falar com ele sobre a Shindo Renmei. Queria saber como ele conseguiu escapar de uma seita que matou muitos “derrotistas”. Chegou a sofrer algum atentado? Teve medo? Fugiu por um tempo? Andava armado? E seu pai?

Mas o tempo fez, pacientemente, o que a Shindo Remnei não conseguiu.

E então fecho o livro com mais uma série de perguntas para as quais não encontrarei jamais respostas.