Himmler, Trump e a doutrina perversa do “America First”. Por Eugênio Aragão

Atualizado em 17 de setembro de 2020 às 23:32
Trump. Foto: Rhona Wise/AFP/Getty Images

Por Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça:

Livros de história fazem parte de minha literatura preferida. Eis que, lendo a respeito do holocausto (a bibliografia a respeito é sabidamente inesgotável), deparei-me, mais uma vez, com certo discurso de Heinrich Himmler, Reichsführer-SS, em Poznán, Polônia, em outubro de 1943.

Dizia ele então (tradução livre do alemão):

“Um princípio deve ter validade absoluta para um homem da SS: Ser honesto, decente, fiel e camarada é um dever que temos para com os nossos consanguíneos e para com mais ninguém. Para mim é completamente irrelevante saber como se sentem os russos ou os tchecos. O que existir de bom sangue da nossa espécie nos outros povos, vamos lhes tomar, se necessário, roubando seus filhos para educá-los entre nós. Se os outros povos vivem em bem-estar ou se eles se estrepam de fome, só me interessa na medida em precisamos deles como escravos para nossa cultura; outro interesse não tenho nisso. Se na construção de uma vala antitanque 10.000 mulheres russas tombam ou não de inanição, isso só me interessa na medida em que a vala antitanque seja concluída para a Alemanha.”

Discurso mais bestial é difícil de encontrar, com o cinismo chocante da ideologia nazista, que aqui transparece em todo vigor. Claro, há que considerar que Heinrich Himmler estava a falar para seu pitbulls.

Certamente adocicaria a fala, se os interlocutores não fossem pessoas iniciadas nas atrocidades da guerra de extermínio levada a cabo no leste europeu.

Logo me veio, então, que, se atualizássemos o discurso de Himmler para nossos dias, em nosso contexto, veríamos que a mesma perversidade extrema se repete.

Trump e sua doutrina do “America First” descara para o mundo o que os falcões de Washington vieram praticando desde a guerra fria, mas nunca verbalizaram.

Se fosse falar para seus correligionários, na crueza das frases diretas, poderia perfeitamente formular assim seus pensamentos sobre a política global:

“Um princípio deve ter validade absoluta para um bom americano: ser honesto, decente, fiel e camarada é um dever que temos para com os nossos apenas e para com mais ninguém. Para mim é completamente irrelevante como se sentem os brasileiros ou os venezuelanos. O que existir de útil para nós em suas terras, vamos lhes tomar, se necessario, roubando suas riquezas para serem melhor aproveitadas entre nós. Se outros povos vivem em bem-estar ou se eles se estrepamem meio ao caos ou na guerra, só me interessa na medida em que precisamos deles para nos entregarem seus ativos estratégicos e consumirem nossos produtos, pagando caro por eles; outro interesse não tenho nisso. Se no caos por nós provocado morrerem 10.000 crianças, velhos ou mulheres ou não, isso só me interessa na medida em que o caos nos permita tomar conta do seu país e submetê-lo a nossos desígnios.”

Tirem suas próprias conclusões. Não é preciso interpretar muito, pois os textos, em sua gritante analogia, falam por si. E nem nos devem espantar os brasileiros que fazem continência à bandeira americana.

Afinal, na Ucrânia de 1943, também houve o “Batalhão Galícia” da SS, formado por ucranianos, para matar seus conterrâneos judeus.

A colaboração com os ocupantes agressores só revela o óbvio – o impulso bestial que muitos humanos, com maior ou menor consciência, teimam em cultivar, ontem e hoje.

Vivamos com isso.