Publicado originalmente na Ponte Jornalismo:
Por Caê Vasconcelos
Em 5 de novembro de 2020 o auxiliar de limpeza José Márcio Nazareno, 30 anos, foi à delegacia acompanhar o enteado, o segurança Luis Henrique Oliveira Cruz, 26 anos, que foi chamado para averiguar se estava tudo certo com o seu carro no 85º DP (Jardim Mirna), no Grajaú, na zona sul da cidade de São Paulo. Ele entrou na delegacia como testemunha, mas acabou preso por roubo.
Em entrevista à Ponte, Luis Henrique descreveu como foi aquela longa quinta-feira, em que viu o padrasto virar o principal suspeito de um roubo que ocorrera na madrugada daquele dia, a 900 metros da casa onde moram há dez anos. Luis e sua mãe, a chefe de cozinha Iranildes Oliveira Cruz, 48 anos, estão desempregados. A cada dia que José Márcio continua preso a tensão da família aumenta.
Às 10h40 daquele dia, Luis Henrique foi abastecer seu carro, que estava sem gasolina há três dias. Naquela manhã, ele tinha uma consulta dentária em um dentista que fica do outro lado da rua de sua casa. Abasteceu o carro e, para não se atrasar para o compromisso, deixou o veículo em frente ao seu portão. “Quando cheguei no consultório, minha mãe me ligou desesperada falando que tinha um policial na porta, falando que queria saber sobre o carro”.
“Desci e conversei com os policiais, me pediram documento, para abrir o carro para revistar, eles revistaram e aí falaram que eu precisava ir na delegacia para avaliar melhor, se não tivesse nada eu voltaria com o carro. Aí eu falei que iria, não tinha nada para temer”.
Nisso, contou Luis Henrique, o policial disse que ele teria que levar uma testemunha e indicou que essa pessoa podia ser seu padrasto. “Aí o José disse que iria, só iria se trocar, porque estava de bermuda. E o policial seguiu ele até dentro de casa, ficou acompanhando ele se trocar. Ele colocou uma calça jeans, uma blusa de frio, um boné, pegou os documentos e entramos na viatura para ir para a delegacia”.
Chegando na delegacia, foram orientados a sentar e esperar. Alguns minutos depois, o delegado Gilson Rodolfo Alarcon Matos Júnior, do 85º DP, apareceu e questionou quem era a testemunha. José Márcio disse que era ele e ouviu como resposta: “Então você está preso”. “Eu fiquei sem entender e comecei a discutir com o delegado, que falou que eu podia fazer o que eu quisesse que o José estava preso”, contou Luis.
Depois de um tempo, continua Luis, o delegado voltou e explicou: a duas ruas de sua casa, duas pessoas, um homem e uma mulher, haviam sido assaltados em um ponto de ônibus. Era por volta das 4h quando o crime acontecera e os três suspeitos estavam em um carro prata, assim como o carro de Luis. Imediatamente Luis partiu em defesa do padrasto e apontou que ele era inocente, que não havia saído naquela madrugada. Só saiu de casa, a pé, por volta das 7h da manhã para comprar pão.
“O delegado contou que a vítima passou em frente a minha casa, quando viu meu carro parado ali. Aí ela falou que era esse carro, o policial tocou a campainha. Meu padrasto abriu a porta e ela começou a chorar falando que era José era o assaltante”, detalhou o enteado.
No primeiro boletim de ocorrência, feito pela vítima às 10h38 na delegacia, os três suspeitos não foram descritos por ela, assim como só havia a informação de que o carro em que estavam era “um veículo de cor prata”, sem detalhar marca ou placa. A descrição do crime não passa de seis linhas no documento elaborado na delegacia, assinado pelo delegado Pedro Luis de Sousa.
“No segundo boletim de ocorrência, a vítima já dá a placa, porque o meu carro já estava na delegacia. Ela afirma com 100% de certeza que um dos assaltantes era meu padrasto, reconheceu ele pela calça jeans”, apontou Luis Henrique.
Esse segundo boletim de ocorrência foi feito às 12h10 daquele dia. Nesse documento a vítima descreveu o modelo do carro, a placa e características e conduta que ela afirma que foram cometidas por José Márcio. Como testemunhas no registro, constam os nomes dos policiais militares Wesley Felipe Barreto (condutor) e Marcos Vinicius Piassa. Também constam os nomes de dois policiais civis, ambos do 85º DP: Carlos Marcelo Andrade e Valter Fausto Guimarães.
Nesse segundo documento, a vítima apontou que foi abordada por três homens em um Fiat Palio. A vítima afirmou que foi José Márcio que usou uma arma de fogo para roubar seus pertences pessoais — uma mochila, com um uniforme do trabalho, um bilhete único, 60 reais em dinheiro e dois celulares: um Moto G8 e um Samsung A30. A vítima disse que reconhecia o carro como sendo o carro usado para roubá-la de madrugada, pela “moldura da placa e detalhes na cor branca do para-choque traseiro”, apesar de o carro de Luis ser um Fiat Siena, também prata.
O enteado de José Márcio continuou tentando conversar com o delegado e apontar o erro que estava sendo cometido ali. “Depois de um tempo, ele me disse ‘tá bom, se você tá falando que ele é inocente, você dá passe livre pra gente entrar na sua casa?’. Aí eu falei que podia entrar lá sem problemas, ele respondeu que o celular dela estava tocando em algum canto”.
De lá, Luis Henrique voltou para casa acompanhado dos PMs. “Quando chegou lá os PMs olharam para mim, olharam para a minha mãe e o meu irmão e falaram que não iriam revistar a casa, porque sabiam que não tinha nada ali, que o problema era o reconhecimento”.
“Eles não revistaram voltamos para a delegacia e eles falaram para o delegado que não tinha encontrado nada. Aí o delegado perguntou se teve alguma suspeita, mas os PMs falaram que agimos normalmente. E o delegado batendo o pé que era o José Márcio”, contou.
José Márcio também apontou em seu depoimento que não havia cometido o crime, conforme descrito no registro policial: “declarou durante seu interrogatório que estava na sua residência e não saiu de lá na presente data. Questionado acerca da imputação que lhe foi atribuída, negou categoricamente os fatos, acrescentando que é trabalhador e que passou a noite ao lado de sua esposa”.
Luis Henrique ainda insistia, mais uma vez, para que o delegado entendesse que José Márcio não era o assaltante. “O delegado me falou: ‘agora são 16h, faz o seguinte, me traz provas que ele é inocente’”.
“Vim correndo pra casa, peguei as imagens das câmeras que tinham foco para o portão da minha casa, da meia-noite até de manhã, para mostrar que o José Márcio não saiu de casa de madrugada, só saiu 7h e pouco para ir no mercado comprar pão e o carro saindo às 10h40. Fui no mercado, peguei a declaração e imagens de lá. Também temos declaração do nosso vizinho que afirmou que o carro ficou parado a noite toda, só saiu naquela manhã”, narrou à Ponte.
Luis Henrique chegou novamente na delegacia às 18h20. “Mostrei tudo isso pro delegado. Sabe o que ele fez? Entrou no computador, disse que eram 18h20 e disse ‘já deu meu horário, vou ter que passar para frente’”.
À Ponte, a chefe de cozinha Iranildes Oliveira Cruz, 48 anos, mãe de Luis Henrique e esposa de José Márcio, lamentou a prisão do marido: “Meu esposo chegou na quarta-feira, por volta das 19h, tomou banho e pouco depois fomos dormir”.
“Ele só saiu às 7h e pouco para comprar pão. Um cara que tem residência fixa, tem trabalho… ele tá perdendo dias de trabalho por conta disso. Ele trabalha em um clube que só tem milionário, jamais se sujaria por causa de um celular. Nada disso valeu a pena, o que valeu a pena foram as mentiras da vítima. Todo mundo tem calça jeans”, criticou o reconhecimento.
Sem analisar as provas trazidas pela defesa de José Márcio, o promotor Paulo D’Amico Junior, do Ministério Público de São Paulo, e a juíza Julia Martinez Alonso de Almeida Alvim, do Tribunal de Justiça de São Paulo, decretaram a prisão do auxiliar de limpeza, que agora está preso no Centro de Detenção Provisória de Belém II, na zona leste da cidade.
“A juíza só olhou o que a vítima alegou. Não olhou que ele tem casa própria, que ele trabalha há mais de 2 anos no mesmo local, que tem a declaração do patrão dele alegando que ele é um funcionário exemplar, que as contas aqui em casa são tudo no nome dele. Tá todo mundo revoltado”, lamentou Luis Henrique. “Meu padrasto não sabe ler, não sabe escrever, não sabe dirigir. Ele não tem nem Facebook. Ele trabalha com limpeza para manter a casa”, completou.
Correndo contra o tempo para tirar o padrasto da prisão, Luis Henrique contou que esteve com a mãe no emprego de José Márcio. “Sentamos junto com o chefe dele, explicamos tudo. Ele falou que tava todo mundo comovido com a história, que não mandariam ele embora, mas iam suspender o contrato e ele ficaria sem receber”.
À Ponte, o advogado Fred Shum, que cuida da defesa de José Márcio, explicou que está montando um pedido revogação da prisão com base nos vídeos colhidos por Luis Henrique. Shum diz que o primeiro passo será o pedido de liberdade provisória do auxiliar de limpeza, e, posteriormente, solicitar a absolvição “porque ele está sendo processo injustamente”.
“Temos uma filmagem que aponta que este carro não saiu da residência. Ou seja, se esse carro tivesse sido usado no roubo, ele teria que ter saído ou entrado na residência. Temos a imagem dele saindo, pela manhã, e retornando. Durante o período da noite este carro não saiu do local. A vítima, nitidamente, confunde o carro, que não é um Palio, é um Siena. Embora a frente seja parecida, a traseira é diferente”.
Inocente até que se prove o contrário
O advogado criminalista Flávio Campos analisou o processo e as imagens a pedido da Ponte. Para ele, o princípio da presunção de inocência, ou seja, a premissa de que uma pessoa é inocente até que se prove o contrário, deveria ter sido levada em consideração na prisão de José Márcio.
“Ele deveria responder o processo em liberdade para ofertar as provas. As imagens que a família levantou atestam uma versão de álibi. Ao que tudo indica, as vítimas confundiram o carro e as pessoas, porque tem gravações do momento exato que o José saiu, e no horário do crime também tem imagens da rua dele tranquila”.
O que vigora na Justiça, aponta Campos, é a presunção de culpa. “O reconhecimento foi diferente porque a vítima viu ele na rua e chamou os policiais. Em audiência, ela precisa ser questionada se estava mentindo ou não”.
A advogada criminalista Débora Roque, que auxilia a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, também analisou o processo a pedido da Ponte. Para Roque, a prisão em flagrante foi ilegal. “O roubo aconteceu na madrugada e a vítima já havia registrado boletim de ocorrência quando vê o carro e chama a polícia. Podemos considerar que não se trata de flagrante, pois o suspeito não estava com os bens e também não estava em perseguição”.
“A questão do ‘acabou de acontecer o fato” pode ser questionada. E deveria ter sido interpretado de acordo com as circunstâncias, como ser encontrado com os objetos, ter sido perseguido, acabou de cometer ou está cometendo [o crime]. Isso é importante, pois, ao meu ver, o flagrante foi ilegal, deveria ter sido relaxado pelo juiz”.
O não relaxamento da prisão, pontua Roque, vai de acordo com a corrente seguida pelos operadores do direito. “O judiciário, em sua grande maioria, é formada por pessoas que seguem a linha punitivista. Por isso as interpretações serão sempre mais direcionadas à punição”.
Por isso, continua, o maior problema de ser acusado de praticar um crime no Brasil é que a maioria dos acusados não têm o princípio da presunção de inocência garantido, ou seja, só ser considerado culpado após a sentença condenatória.
“E por que esse princípio é tão importante? Porque não há defesa que possa subsistir em um processo onde o réu, desde a abordagem policial é considerado o culpado. Quando todos já têm a certeza de que ele praticou o fato, nada do que a pessoa acusada diga vai mudar, e infelizmente essa tem sido a regra no sistema penal”, explica Débora Roque.
“Não é diferente o caso em questão. Você sai de casa um dia, para comprar pão, e acaba sendo apontado por alguém como autor de um crime. Você é preso, nada do que você fala é levado em consideração. A única prova é a declaração de uma pessoa dizendo que você é o autor”, continua.
“O juiz decreta sua prisão e acabou aí. Porque um dia na prisão, sendo a pessoa inocente, podem trazer prejuízos irreparáveis, mas o judiciário parece não se importar muito com isso, pois como eu disse no início, ‘com certeza ele praticou o crime’. E assim se perde o verdadeiro sentido do sistema penal”, lamenta a criminalista.
Outro lado
A reportagem procurou a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar para entender o ocorrido. Solicitamos entrevista com os policiais, militares e civis, envolvidos na ação e, principalmente, com o delegado Gilson Rodolfo Alarcon Matos Júnior.
Ignorando os pedidos, a SSP informou que o caso “foi registrado pelo 85º DP (Jardim Mirna). Duas vítimas reconheceram o suspeito como sendo autor do roubo. Além disso, identificaram o veículo usado. A prisão em flagrante foi convertida pela Justiça em preventiva”.
Em nota, o TJ-SP informou que “não pode emitir nota sobre questão jurisdicional” e que “os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.
Em nota, a assessoria do Ministério Público diz que “o caso envolve cometimento de crime de roubo qualificado pelo concurso de agentes. Um desses agentes foi identificado e preso em flagrante delito. Foi pedida a conversão da prisão em flagrante delito em prisão preventiva, já que foi reconhecido com 100% de certeza pelas vítimas do delito, de acordo com autos de reconhecimento anexados a folhas 08/09 dos autos de inquérito policial digital. Esses reconhecimentos foram destacados, também, pelas testemunhas ouvidas a folhas 04/05, os policiais militares Wesley Felipe Barreto e Marcos Vinicius Piassa. Com esses elementos de prova, o Ministério Público do Estado de São Paulo entendeu ser o caso de se requerer a prisão preventiva do indiciado, nos termos do artigo 310, inciso II, 312 e 313 do Código de Processo Penal”.