Homem foi condenado a 14 anos por estupro, mas exame posterior de sêmen provou que era inocente

Atualizado em 30 de agosto de 2020 às 13:17
Exame. Foto: Reprodução

Publicado originalmente no site Consultor Jurídico (ConJur)

POR TIAGO ANGELO

A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná absolveu um homem condenado a 14 anos de reclusão por estupro e roubo. A sentença foi revisada após uma amostra de sêmen comprovar que o acusado é inocente.

O suspeito foi apreendido por guardas municipais em 1º de outubro de 2016, data do crime, com base em uma descrição feita pela vítima. Posteriormente, no mesmo dia, foi feito o procedimento de reconhecimento e ele foi apontado como autor do ataque.

O rapaz, hoje com 28 anos, ficou preso deste então, primeiro aguardando julgamento e, depois, com a pena já devidamente fixada. A sentença chegou a ser confirmada em 2017 pelo TJ-PR.

O caso só começou a ser revolvido em maio deste ano, quando a Defensoria Pública passou a defender o réu. A instituição constatou que o Instituto Médico Legal, ao realizar na mulher o “laudo de conjunção carnal”, verificou a presença de sêmen, que foi colhido e armazenado.

O TJ-PR admitiu o uso do material como prova. Foi feito, então, um exame de vínculo genético, que constatou “não haver correspondência” entre o sêmen e o suposto autor do crime.

“Tem-se, portanto, prova nova sobre um fato que elucida o processo de responsabilização e que deve ser considerada exatamente através do instituto da revisão criminal, que foi criado para que o Estado não promova injustiças contra uma pessoa no caso de descoberta de prova de sua inocência”, afirmou em seu voto o desembargador Eugênio Achille Grandinetti, relator do caso.

Ainda segundo o magistrado, a evidência obtida por meio do exame de DNA “exige um maior equilíbrio na análise da palavra de vítima, havendo que se concluir pela inexistência de prova suficiente de autoria, tanto em relação ao crime de estupro quanto ao crime de roubo”.

Irregularidades
A apuração do caso é marcada por uma série de irregularidades e inconsistências, tanto no que diz respeito aos objetos colhidos para provar a autoria delitiva, quanto à atuação dos policiais que efetuaram a prisão.

O homem foi detido por guardas municipais mais de uma hora depois do crime, a cerca de 2,4 km de onde ocorreu o estupro. Os agentes que efetuaram a prisão afirmaram em depoimento que decidiram proceder com a abordagem depois que ouviram uma descrição do suspeito via rádio.

De início, a vítima afirmou que o autor vestia calça de moletom clara, camisa de manga longa cinza e preta, boné preto e tinha barba. Já em juízo, disse que o homem usava calça de moletom preta, camisa preta, tinha cabelo grisalho, cara de velho e barba.

Também informou que o criminoso segurou a sua cabeça, de modo que ela não conseguisse ver o seu rosto, e que permaneceu o tempo todo sob a ameaça de uma faca. O homem levou um aparelho celular, uma carteira de cigarros, um espelho e R$ 115 em espécie. Ao ser feita a abordagem, no entanto, os policiais não encontraram nenhum dos itens subtraídos.

Além disso, os agentes teriam encontrado uma faca na mochila do suspeito, tal como descrito pela vítima. Em depoimento, entretanto, um dos guardas municipais diz que o objeto era, na verdade, uma tesoura dividida pela metade.

“Na mochila dele tinha uma arma branca, era uma tesoura que corta grama, com uma parte dela só, que eu lembro que era isso na bolsa dele; celular e cigarro, acho que não tinha”, disse o agente.

O suspeito confirmou em seu depoimento que o item se tratava de uma tesoura que ele havia achado na rua. “Eles falaram que eu usei aquilo ali, sendo que nem faca era aquilo. É um objeto de metal que eu ia vender junto com umas latinhas que eu tinha em casa”, afirmou em juízo.

O Judiciário também acabou empacando o caso. De início, por exemplo, o uso do sêmen colhido no exame feito na vítima não foi admitido como prova pela 4ª Câmara Criminal do TJ-PR.

A corte entendeu que a condenação deveria ser mantida porque a palavra da vítima sobre os fatos estava em harmonia com os demais elementos de prova. Por isso, na ocasião, sequer foi feito o exame de DNA que poderia ter antecipado a absolvição.

Reconhecimento
O reconhecimento do réu também foi feito de modo irregular. Isso porque artigo 226 do Código de Processo Penal dispõe que nesses procedimentos o suspeito deve ser colocado ao lado de outras pessoas com quem tem alguma semelhança.

No caso em concreto, por outro lado, apenas o acusado foi colocado na frente da vítima. Isso foi atestado pelo depoimento de dois guardas municipais ouvidos nos autos do processo. Assim, a prisão e a condenação se deram quase exclusivamente com base em um reconhecimento irregular.

A defensora pública Ana Paula Costa Gamero Salem, que atuou no caso, afirmou à ConJur que reconhecimentos como esse infelizmente são bastante comuns.

“Na situação em análise, apesar da vítima ter sido a única pessoa que estava presente no momento do fato, tal condenação poderia ter sido evitada caso o procedimento pessoal respeitasse o previsto no CPP. O fato deste procedimento ter sido absolutamente violado pela autoridade policial e ser convalidado duas vezes pelo Poder Judiciário fez com que um inocente fosse condenado”, afirmou à ConJur.

Ela também diz que o reconhecimento pessoal, mesmo quando feito dentro dos parâmetros legais, apresenta fragilidades. “Quando ele é induzido pelas autoridades, então, cria no íntimo da vítima que aquele é o seu agressor”.

Flávia Rahal, diretora do Innocence Project Brasil, organização que busca atuar em casos envolvendo a condenação de inocentes, ressalta que de fato o reconhecimento, mesmo quando realizado dentro dos padrões do CPP, é frágil, uma vez que induz falsas memórias na vítima.

“Tal circunstância, por óbvio, induziu a vítima a criar, na pessoa do único suspeito, uma falsa memória e a convicção de tratar-se do homem que a atacou. A partir daí, é natural que ela tenha internalizado essa certeza, tornando qualquer reconhecimento posterior impossível”, diz.

Ainda de acordo com Rahal, a criação de falsas memórias deve ser melhor considerada em nosso sistema processual penal. Para ela, o caso do Paraná, em que o suspeito só foi absolvido quatro anos depois do crime — e apenas por causa de um exame de DNA —, é prova disso.

“A memória humana não é como uma máquina fotográfica e muitas vezes acabamos por preencher as lacunas que temos de determinado acontecimento com o que achamos que ocorreu. Quanto mais distante do fato, maiores as chances de elas, as falsas memórias, acontecerem. É fundamental, portanto, que a tomada de depoimentos das vítimas e testemunhas siga critérios mais objetivos e cuidadosos”.

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