Ideia de Moro para permitir barganha da pena enterra de vez o direito. Por Afrânio Silva Jardim

Atualizado em 12 de fevereiro de 2019 às 9:39
Sérgio Moro. Foto: Sergio Lima/AFP

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO EMPÓRIO DO DIREITO.

Fugindo do que é costumeiro, começo este nosso texto crítico, fazendo algumas assertivas contundentes, que permeiam todo o nosso raciocínio a seguir desenvolvido:

1 – Processualistas críticos, digam “NÃO” à “Plea Bargain”. O perigo ronda o nosso processo penal.

2 – A Constituição Federal só permite acordos no processo penal para os crimes de menor potencial ofensivo.

3 – Este instituto é seletivo por natureza e permitirá ampliar o reprovável “lawfare” em nosso país.

4 – Ademais, o “acordo” é construído com base em prova inquisitorial e não há como controlar todo o processo de negociação.

5 – A privatização do processo penal é consequência de uma sociedade individualista. Caminhamos para um verdadeiro “darwinismo processual”, onde pode prevalecer a vitória do mais apto ou mais astuto.

6 – A nefasta ampliação do poder discricionário no processo penal o torna “coisa das partes”, como era nos seus primórdios.

Agora, vamos ao teor de nosso ensaio:

No célebre prefácio do seu livro intitulado “Contribuição para a Crítica da Economia Política”, Karl Marx nos fornece o que pode ser a explicação, ao menos em parte, para o fato de que, nos dias de hoje, a grande maioria de nossos juristas apresente um discurso que eu chamaria de liberal e individualista.

Vale notar que isto vale mesmo para aqueles que trabalham com o Direito Público e mesmo alguns juristas que se apresentam como inseridos no pensamento de esquerda.

Deixou dito o grande pensador:

“…na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência.”

Evidentemente, não podemos tomar isto como uma fórmula absoluta, até mesmo porque há exceções, onde nos incluímos. Embora tenhamos uma vida meio “burguesa” e sejamos beneficiados por este sistema econômico e político injusto, procuramos desenvolver uma consciência crítica desta realidade e temos como escopo principal a justiça social. Não temos gana de acumular riqueza e não temos o Estado como inimigo ou adversário.

Por isso, somos contrários à visão liberal no direito penal e processual penal, que coloca o Estado como inimigo público e privatiza, cada vez mais, esses importantes instrumentos de contenção da barbárie. O abandono, pelo Estado, das relações sociais conflituosas, especialmente nos crimes econômicos e violentos, promove nada mais que graves injustiças.

Queremos que o Estado se torne popular e verdadeiramente democrático, sendo o único ente que, na triste atualidade, pode eficazmente interferir nas forças do mercado e mitigar a cruel desigualdade social, criada pela globalização do neoliberalismo.

Cabe repetir que estamos falando de um Estado voltado para os interesses populares e não do grande capital.

Ademais, como advertiu o grande pensador brasileiro Caio Prado Júnior, no mais das vezes, na vida cotidiana, não é o Estado que restringe a nossa liberdade, mas sim as relações econômicas que nos submetem ao mando dos outros. O homem manda no homem; o homem explora o homem; o homem tira a liberdade do homem.

Nosso discurso não é liberal e individualista, mas sim em prol de um socialismo democrático, que é o máximo a que se pode aspirar nos dias de hoje.

Desta forma, pertencendo o Direto ao chamado “mundo da cultura”, que é condicionado pelas relações econômicas de produção e circulação dos bens, fica fácil compreender como, em uma economia liberal, se forja um direito também liberal, de matiz individualista. O modo de produção capitalista determina um sistema normativo que o regule e mantenha.

Hoje, em nosso país, chega a ser natural que os juristas tenham um certo fetichismo à vontade individual, aos negócios jurídicos, aos direitos individuais em detrimento dos direitos sociais ou coletivos.

Destarte, a maioria de nossos atuais juristas, ingenuamente, partem de uma liberdade de manifestação de vontade individual meramente abstrata, como se todos fossem realmente iguais socialmente.

O que não compreendo é como juristas de viés crítico e inseridos no “pensamento de esquerda” reproduzam este mesmo discurso liberal …

Interessante salientar que, na teoria do processo, alguns juristas progressistas passaram a repudiar a teoria da relação jurídica, que se cria entre as partes e o Estado (juiz) por achá-la autoritária. Preferem operar com a ideia de que o processo seria um jogo, uma “guerra” entre dois adversários, ficando o Estado (juiz) apenas como um árbitro, apenas tutelando o cumprimento das regras deste jogo.

Entretanto, estes juristas (muitos deles, meus amigos) não perceberam que quase todo o pensamento do grande processualista James Goldschmidt tem forte conotação liberal individualista, como já advertia um dos nossos maiores juristas, professor e desembargador José Carlos Barbosa Moreira.

Ao mencionar que Goldschmidt se opôs à teoria do processo como relação jurídica de Bulow, o nosso grande e saudoso mestre da Uerj acrescenta, com lastro em assertiva do renomado processualista italiano, Piero Calamandrei, in verbis:

“Não foi sem razão que se enxergou na colossal obra goldschmidtiana uma apoteose de liberalismo processual, expressão aqui impregnada da conotação fortemente individualística predominante tempos atrás e reproposta em nossa época por expressiva corrente de pensamento”. (Estudo intitulado A justiça e nós, constante de obra Temas de Direito Processual, sexta série, S.Paulo, Ed. Saraiva. 1997, p.9).

Feitas estas considerações preliminares, que têm o escopo de alertar os desvios pelos quais o nosso sistema processual está trilhando, fica esclarecido por que tenho combatido exaustivamente este verdadeiro “modismo” de se importarem institutos processuais penais do sistema norte-americano, forjados em realidade social totalmente diversa da nossa. Até mesmo as estruturas das carreiras do Ministério Público e do Poder Judiciário são totalmente distintas da nossa.

Vejam até onde se pretende chegar … Não é ingenuidade, mas sede de poder. Querem deixar de se submeterem ao sistema da legalidade e querem ter poderes discricionários de dificílimo controle.

Há pouco tempo, foi publicada a seguinte notícia, no site do Conjur (dia 05.08.16), sobre as sugestões do ex-juiz Sérgio Moro para alteração da nossa lei processual penal:

“Sergio Moro fez ainda uma sugestão que chamou de pessoal. A seu ver, poderia ser adotado no Brasil um sistema de plea bargain (negociação de pena) semelhante ao que existe nos EUA, em que acusados em processos na Justiça possam se declarar culpados e negociar uma pena menor, mesmo que não tenham nada a colaborar na investigação, como na delação premiada. “Esse instituto poderia apressar os processos em que as provas são enormes, e economizaria até mesmo recursos do contribuinte”, destacou.”

Dos muitos estudos que criticam a influência de alguns institutos norte-americanos em nosso sistema processual, cabe transcrever, novamente, a lição do falecido professor José Carlos Barbosa Moreira (antigo titular da Uerj e Desembargador do TJ do E.RJ. ). Disse o mestre de todos nós, de forma incisiva e clara, em trabalho de título já sugestivo “A subserviência cultural”, in verbis:

“No terreno de processo penal, a guinada para as soluções consensuais não chegou ao ponto de introduzir entre nós o expediente do plea bargaining, pelo qual a acusação e defesa negociam privadamente os termos da condenação a ser imposta.

Apesar de criticada com rigor em meios acadêmicos e políticos, pela facilidade com que abre a manobras suspeitas ou francamente imorais, semelhante prática sobrevive no Estados Unidos – e tudo indica que ainda por muito tempo – em razão dos interesses (em boa parte extrajurídicos) a que atende.
Embora o legislador brasileiro, com elogiável prudência, se haja abstido de incorporá-la ao nosso ordenamento, não faltará quem preconize avanços nesta direção.

Em meu entender, JÁ CHEGOU AO LIMITE DO RAZOÁVEL (note-se que ainda não tínhamos a delação premiada) E SERÁ UM DESASTRE QUE SE VÁ ALÉM.

Contudo, a onda americanizante, que não prima pela autocontenção, dificilmente perderá qualquer oportunidade de tentar espraiar-se mais, como já vem acontecendo até em países europeus”. (Temas de Direito Processual, sétima série, S. Paulo, Ed. Saraiva, 2001, p.269/270 – nota e grifos nossos).

Tenho combatido, com a máxima contundência e insistência, essa “onda” privatista que decorre da chamada justiça pactuada.

Parte do Ministério Público não percebeu, mas está enveredando por um terreno movediço, que vai expô-lo às críticas, corretas ou não, da opinião pública.

É preciso tratar do sistema processual penal independentemente dos interesses profissionais ou corporativos. O interesse público deve ser prevalente e deve informar o discurso daqueles que desejam um processo penal público e democrático, que funcione como instrumento para aplicação do direito material, com respeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Não é valioso punir a qualquer preço.

Em suma: a vontade das partes não pode ficar acima da lei e do nosso sistema normativo. Promotor e Procurador não podem combinar com o indiciado ou investigado a aplicação de uma pena diversa da prevista na Lei Penal. Tal “negociação”, na nossa realidade, seria uma lástima para o nosso sistema de justiça.

Repito mais uma vez: a vontade ou interesse de um membro do Ministério Público e do provável criminoso (ele confessa) não pode prevalecer em detrimento do que dispõe a lei penal e a lei de execução penal.

Isto é uma verdadeira privatização do nosso sistema de justiça. Note-se que temos de considerar que vivemos em um imenso país de grandes desigualdades regionais e culturais. Nem tudo é Brasília ou Curitiba (onde até ali já se está extrapolando …).

Por derradeiro, mais um alerta: o primeiro passo para esse descalabro é a adoção do princípio da oportunidade, permitindo que o Ministério Público tenha poder discricionário para escolher quem vai ou não ser processado, ainda que a lei venha a disciplinar tal seletividade. Aberta a porteira, tudo o mais pode passar … A “plea bargain” é uma das consequências deste perigoso princípio da oportunidade.

Finalizando, importa ressaltar que a Constituição Federal somente admite acordos sobre a persecução e punição penal para as infrações de menor potencial ofensivo.

Vejam o que dispõe a nossa Lei Maior:

“Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e INFRAÇÕES PENAIS DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau;”

A conhecida lei n.9099 de 1995 definiu tais infrações. São infrações penais, cujas penas não ultrapassam dois anos de prisão.

Trata-se de tutelar o princípio da legalidade no processo penal, basilar para o Estado Democrático de Direito. Essa sempre foi a nossa tradição.

Mesmo assim, a transação nos juizados especiais criminais não autoriza criar penas, alterar prazos para as penas restritivas de direito, etc. Vale dizer, não autoriza o “negociado sobre o legislado” !!!

Desta forma, a “plea bargain” proposta pelo ministro Sérgio Moro é absolutamente inconstitucional, pois admite o acordo de não persecução penal, com imediata aplicação de pena, nos crimes que têm penas previstas na lei acima de 2 (dois) anos.

Acresce que as penas e o regime de cumprimento destas penas seriam escolhidos pelo órgão acusador e pelo criminoso confesso, derrogando o que está disposto na lei cogente.

Estes acordos são seletivos por natureza e as negociações fogem a qualquer controle eficaz. A ampliação da discricionariedade, no nosso processo penal, é algo absolutamente indesejável, conforme salientamos no início deste nosso texto.

O Ministério Público está sendo transformado em um verdadeiro “monstro”, que vai tragar o chamado “devido processo legal”. Ele não deve ter o poder de negociar com um indiciado ou investigado a aplicação de uma pena ou regime de pena, contrariando o que dispõe o legislador, vale a pena repetir.

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Afranio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj.