Ídolo dos negacionistas, Didier Raoult fraudou resultados sobre cloroquina para obter financiamento do governo

Atualizado em 5 de maio de 2021 às 15:01
Didier Raoult

Vale tudo por dinheiro? Erros metodológicos considerados pelos mais renomados cientistas da Europa como “grosseiros”. Um laboratório de pesquisa onde a regra é o autoritarismo, o medo e as ameaças. Tudo para ter o maior número possível de publicações e um financiamento anual de 10 milhões de euros?

Segundo reportagem veiculada nesta semana pelo canal de televisão francês M6 sobre “o mistério Didier Raoult”, por trás da defesa da cloroquina para tratar Covid-19, escondem-se métodos nada científicos, condições de trabalho “deploráveis” e conflitos de interesse. E sobretudo, muito dinheiro.

A investigação durou quatro meses e ouviu cientistas que trabalharam no laboratório IHU (Instituto Hospitalar Universitário) de Marselha (França), dirigido desde 2011 pelo defensor da cloroquina. Também foram ouvidos representantes da comunidade médica, que hoje o processa por considerar seu tratamento para a Covid-19 como charlatanismo.

A reportagem relembra como o médico desconhecido de uma maioria de franceses “entrou em cena” na defesa da cloroquina e desmonta a farsa.

“Uma figura contestada que apareceu durante a crise, o professor de Marselha Didier Raoult, gênio incompreendido para uns, um sábio louco para outros”, resume Bernard de la Villardière, apresentador do programa.

Deturpação de fonte

Em fevereiro de 2020, depois de minimizar a pandemia, Raoult vem a público numa coletiva de imprensa improvisada anunciar a “descoberta”: “os resultados de um estudo chinês acabam de sair: a cloroquina é eficaz contra o coronavírus”.

“Na época, o professor Didier Raoult minimiza a periculosidade do medicamento: ‘a infecção respiratória mais fácil de tratar’. Atenção, não haverá mais cloroquina nas farmácias em breve’”, brincava o professor.

Ele citava um estudo da China, que, segundo ele, provaria a eficácia do tratamento. “O estudo chinês citado por Raoult não é verdadeiramente um estudo científico”, afirma a reportagem.

“Quando Didier Raoult anuncia o efeito da cloroquina, ele explica que os chineses encontraram um medicamento. Todos fomos procurar a fonte. E a fonte era, na verdade, muito pobre. Era um relatório de uma reunião”, afirma Renaud Piarroux, professor de doenças infecciosas, e que trabalhou por muitos anos com Didier Raoult.

A referência é “Breakthrough: Chloroquine phosphate has shown apparent efficacy in treatment of COVID-19 associated pneumonia in clinical studies” (fosfato de cloroquina mostrou eficácia aparente no tratamento de Covid-19 associada à pneumonia em estudos clínicos), de Jianjun Gao, Zhenxue Tian e Xu Yang. “Na verdade, trata-se de um relatório que fala apenas em eficácia aparente”, diz a reportagem.

“Apesar da superficialidade da publicação chinesa, Didier Raoult aposta tudo na hidroxicloroquina, molécula próxima da cloroquina”.

“Eles diziam que a cloroquina funcionou em 400 pacientes, mas isso não é suficiente para fazer disso um resultado científico”, diz o professor Renaud Piarroux.


Um estudo rápido demais

Na entrevista à reportagem do Enquête Exclusive, Renaud Piarroux observa que o primeiro estudo sobre a Covid-19 publicado por Didier Raoult, em março do ano passado, não possuía número suficiente de pacientes para ser conclusivo.

“No momento em que ele propõe a hidroxicloroquina, na verdade não havia muitos doentes. Então ele propõe que o laboratório que ele dirige publique rapidamente uma solução em torno do medicamento que ele pensa ser eficaz, com base em 25 pacientes”.

“O primeiro estudo científico de Didier Raoult sobre a hidroxicloroquina é realizado em um tempo recorde. Ele submete o projeto de pesquisa, ele obtém a autorização e no dia 20 de março sai uma publicação”, afirma.

Dos ensaios clínicos à publicação do artigo de Raoult, apenas duas semanas se passaram. “Um delay de 14 dias entre os ensaios clínicos e a publicação de resultados é extremamente curto e suscita questionamentos”, diz a reportagem.

Segundo a investigação, questionável também é a escolha do meio. “Raoult decide fazer sua publicação numa revista confidencial (voltada para um público restrito de pessoas), a International Review of Microbial Agents, e não numa revista de referência como The Lancet ou The New England Journal of Medicine”, afirma o programa.

“Ele decide publicar o mais rápido possível e fazer uma comunicação em torno. Será que ele se disse que não funciona tão bem assim? Não é lógico”, afirma Piarroux.

Programa francês “Enquête Exclusive” investiga o “mistério Didier Raoult”. Foto: Le Figaro

“Estudo enganoso e perigoso”

O Enquête Exclusive foi à Holanda ouvir o primeiro autor encarregado de fazer uma leitura crítica do estudo de Raoult sobre o uso de hidroxicloroquina para tratar Covid-19.

“O editor da revista enviou uma primeira versão a Frits Rosendaal, epidemiologista vencedor do prêmio Spinoza – mais alto prêmio científico de seu país, que ficou espantado com as lacunas do estudo”.

“O editor me pediu para revisar porque suspeitou que havia erros. Tinha tantas imperfeições que eu escrevi que esse estudo não resultava em muita coisa, não diz se o tratamento funcciona ou não funciona, ele não diz nada”, afirma Rosendaal.

“Entre os 26 pacientes estudados, o estado de 4 se degradou, precisaram ir para a UTI, um morreu. Eles foram retirados do estudo. O estado deles piorava ou não melhorava. Então obviamente se você retirar do estudo todos que vão mal, o resto vai bem. É injusto, muito injusto”, critica.

“São pacientes que representam um verdadeiro problema ao estudo. Mas Didier Raoult diz ‘eu encontrei a molécula, então não é necessário ir além’”, explica Piarroux.

De acordo com a reportagem, Rosendaal descobriu que Didier Raoult não respeitou o protocolo da pesquisa submetido às autoridades sanitárias. “No pedido de autorização de ensaio clínico, é previsto testar os pacientes no sétimo dia, mas no estudo publicado os testes param no sexto dia”, explica.

“Para pessoas às vezes desconfiadas como eu, quando olho o estudo, me pergunto: por que ele olhou no dia 6 e não no dia 7? Talvez porque o resultado era melhor no dia 6 do que no dia 7. Não se deve mudar a regra durante o jogo, é um princípio básico. Se você escreve as regras, você deve segui-las e não é o que eles fizeram”, denuncia.

“Apesar das falhas de seu estudo, Didier Raoult declara a eficácia do medicamento com base no resultado dos 6 pacientes que se tornaram negativos no sexto dia, pacientes que tinham entre 20 e 60 anos, faixa etária na qual a taxa de mortalidade de Covid-19 é de apenas 0,2%”, afirma a reportagem.

Rosendaal aconselhou à revista a sinalizar o estudo como inválido. “Como o estudo não era informativo, eu aconselhei de não mantê-lo na revista. Além disso, ele era enganoso, até mesmo perigoso, pois dizia às pessoas, sem dados sólidos, que elas deveriam fazer esse tratamento. As lacunas metodológicas são grosseiras. Eu acho isso irresponsável”.

A reportagem aponta que três meses se passaram até que a análise crítica de Rosendaal fosse publicada. “Só publicaram no final de julho, o que é muito tempo comparado à velocidade com que publicaram o estudo de Raoult”, observa Rosendaal.

Ameaças

Documentos inéditos obtidos pela reportagem mostram que o editor da revista consultou Didier Raoult sobre os erros apontados por Rosendaal e que a resposta do defensor da cloroquina foi uma ameaça de processo.

“Nós consideramos que essa decisão é exclusivamente baseada em argumentos políticos e financeiros e isto lhe desonra. Envio este dossiê ao meu advogado por assédio e difamação”, disse Raoult em 30 de abril do ano passado.

A ameaça foi cumprida alguns dias depois. No dia 6 de maio, é o advogado de Raoult que contacta o jornal: “Nós sabemos que Elsevier não gostaria de ser percebido como o único jornal (científico) que censurou uma publicação de um medicamento genérico que seria eficaz contra a Covid-19”.

A reportagem procurou cientistas que trabalharam com Raoult no laboratório que dirige e a descoberta foi que as ameaças de Raoult são longe de serem pontuais. “Todos falaram anonimamente, por medo de represálias”.

“Ele (Raoult) é claramente capaz de interromper carreiras. Nós, estudantes, vivíamos em um clima de medo constante. Tínhamos medo de apresentar nossos resultados, com medo de que gritassem conosco e nos tratassem de incompetentes”, diz uma cientista, na época doutoranda em patologias humanas no IHU de Marselha, sob direção de Raoult.

“Para garantir que uma hipótese é válida, faz-se uma experiência três vezes, sob as mesmas condições. Isso é uma prática que não existe no laboratório de Raoult, onde se faz uma experiência uma vez só. Se ela ‘funcionar’, não a repetimos de jeito nenhum porque os resultados podem ser diferentes”, descreve.

“Eu nunca o vi se questionar sobre um resultado. Que a hidroxicloroquina seja eficaz contra o coronavírus, em última instância não importa, a única coisa que eu sei é que eu não tenho nenhuma confiança nos resultados e nos seus experimentos, eu jamais teria confiança num artigo que sai do seu laboratório, é impossível”.

Ela obteve seu doutorado, em função do laboratório dirigido por Raoult, experiência da qual ainda hoje se arrepende. “Não mereço esse diploma com uma pesquisa de quatro anos. É duro saber que o que fizemos não vale muita coisa”.

“Há uma gerência baseada no medo e no autoritarismo absoluto. O que importa é que ‘falem de mim (Raoult)’”, descreve um ex-colaborador.

“É Raoult que tem as ideias, é ele quem propõe um tema, é ele que diz o que tem que ser feito e qual deve ser o resultado. E se não chegamos a esse resultado, é porque ‘trabalhamos mal’, então tem que recomeçar até dar o resultado desejado, o que é evidentemente muito perigoso”, relata outro ex-colaborador.

Um relatório obtido pela reportagem, datado de 2017, da Universidade Aix-Marseille, ao qual pertence o laboratório dirigido por Raoult, aponta no IHU um ambiente de “agressões verbais, assédio, ameaças, chantagem e até mesmo falsificação de resultados de experiências”.

“Medicina da Idade Média”

Sabatinado pelo Senado francês, Raoult foi questionado pelo fato de não ter realizado o ensaio randomizado, quando um grupo de pessoas doentes selecionadas aleatoriamente são tratadas com um medicamento e outro recebe um placebo.

“(Estudo randomizado) é uma ferramenta. Dezenas de tratamentos que eu inventei estão em todos os livros de referência médicos e esse (à base de cloroquina) será também”, respondeu o diretor do IHU de Marselha na época.

O professor Raoult disse que a urgência sanitária impossibilitava a realização de um estudo randomizado.

Pierre Tattevin, presidente da Sociedade de Patologias Infecciosas de língua francesa (SPILF), afirma que “se tivéssemos adotado o método Raoult durante a pandemia da AIDS, pessoas ainda morreriam em grande quantidade, é um retrocesso terrível”.

“Se você ama demais suas hipóteses, você começa a ver na sua pesquisa os resultados que você quer quando eles não estão la, um problema que todos os cientistas famosos encontram”, afirma Rosendaal.

“Ainda mais grave: isso introduz no público a ideia de que pode haver um professor que decide o que tem que ser prescrito, que pode se livrar da demonstração de que funciona. Isso é medicina da Idade Média, quando as pessoas diziam ‘vamos tentar isso para ver se funciona’. A hidroxicloroquina está no mesmo nível de prova”, acusa Tattevin.

“Quando em abril, maio, junho, estudos bem feitos demonstravam que a hidroxicloroquina não funcionava, esperávamos de sua parte (de Raoult) que ele se retratasse”, diz Tattevin em referência às publicações do British Medical Journal e do The New England Journal of Medicine.

Dinheiro e conflito de interesses

“Toda a pressão sobre a equipe poderia ter um objetivo preciso: obter um número máximo de publicações de artigos. Desde o início de sua carreira, Didier Raoult fez mais de 3.500 publicações, um dos pesquisadores que mais publicam no mundo”, afirma a reportagem.

“Por que publicar tanto? Porque isso rende muito dinheiro”, responde a reportagem.

“É o que eu chamo, no jargão de revistas científicas, de pesquisador de mãos sujas, porque 3.500 artigos você faz em 30 anos, numa média de um artigo a cada 5 dias; isso é irrealista para um pesquisador. Um pesquisador infectologista de Harvard, publica 170 artigos em 30 anos de carreira”, diz Hervé Maisonneuve, consultor em redação científica.

“Na França, quanto mais um cientista publica, mais financiamento ele obtém para sua pesquisa. Cada artigo publicado gera um número de pontos, em função da notoriedade da revista. Cada ponto equivale a 500 euros por ano, multiplicado pela importância do autor no artigo. A soma obtida é distribuída por 4 anos seguidos. Assim os hospitais de Marselha, graças ao IHU, receberiam 10 milhões de euros por ano do Ministério da Saúde”, explica a reportagem.

“Vários colaboradores próximos de Raoult ocupam lugares-chave em revistas científicas, podendo facilitar publicações, por exemplo o editor-chefe da revista que publicou seu primeiro estudo sobre a hidroxicloroquina, o professor Jean-Marc Rolain, também chefe de pesquisa no IHU”, observa.

“Nessa revista, há verdadeiras conivências entre o comitê de redação e o IHU, é um total conflito de interesses”, acusa Maisonneuve.

Um relatório do Alto Conselho de Avaliação de Pesquisa e do Ensino Superior francês obtido pela reportagem criticava já em 2017 as práticas do laboratório dirigido por Raoult. “A ênfase deveria ser na qualidade das publicações e não no volume de publicações de má qualidade”, dizia.

Após a redação do relatório, a reportagem revela que o laboratório de Raoult perdeu o selo de excelência do Inserm (Instituto Francês de Saúde e de Pesquisa Médica) e do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica).

“Em 2006, a Sociedade Americana de Microbiologia proibiu Raoult de publicar por um ano, por fraude cientifica”, lembra a reportagem.

“Na revista, viu-se que as fotos usadas por Raoult tinham sido adulteradas. Isso é excepcional, poucas pessoas chegaram a esse ponto”, diz Maisonneuve.

Mortalidade

Em agosto de 2020, uma meta-análise, um estudo de 27 análises internacionais, avaliou o tratamento preconizado por Raoult.

Nathan Peiffer Smadja, um dos autores da análise, “mais alto grau de prova científica”, publicada na renomada revista Clinical Microbiology and Infection, aponta uma das conclusões do estudo à reportagem do canal M6: “Um dos resultados é que a associação de hidroxicloroquina e azitromicina aumentou significativamente a mortalidade dos pacientes”.

“Segundo este estudo, o tratamento do IHU aumenta o risco de morrer em 27%”, explica a reportagem.

A reportagem observa que em outubro de 2020 a Agência Nacional francesa de Segurança do Medicamento e de Produtos Sanitários recusou o pedido de Didier Raoult para tratar a Covid-19 com a hidroxicloroquina, julgando-a como ineficaz.

“No IHU, as equipes de Didier Raoult ignoraram a decisão e continuam prescrevendo a cloroquina”, aponta a reportagem.

Em outubro do ano passado, lembra a reportagem, o laboratório Sanofi recusou de lhe fornecer grandes quantidades da hidroxicloroquina, “outro grande golpe para Raoult”.

A Sociedade Francófona de Infectologistas o denunciou em novembro de 2020: “Didier Raoult desprezou o interesse geral, não foi prudente e adotou atitude que pode ser considerada como chartalanismo”.

“Detectamos graves atentados à deontologia médica”, diz Pierre Tattevin à reportagem.

Em dezembro, foi a vez do Conselho Nacional da Ordem dos Médicos processar Raoult, que processou o presidente da ordem por “assédio”.

“Ele descredibilizou a pesquisa. Agora, a nível internacional, quando cruzamos colegas, essa história permanecerá como uma mancha”, afirma Pierre Tattevin.

Durante os quatro meses da investigação, os pedidos de entrevista do Enquête Exclusive ao professor Didier Raoult foram recusados.

Depois de publicar uma carta em que dizia que seu estudo não apontou eficácia da cloroquina no tratamento da Covid-19, ele afirmou em tweet do dia 18 de janeiro: “Nunca mudamos de posição”.

“A eficácia da Hidroxicloroquina com azitromicina para reduzir a carga viral mostrada no nosso estudo foi confirmada pela demonstração de sua eficácia sobre a mortalidade. Não mudamos de posição”, diz Didier Raoult em sua conta no Twitter.