Ídolos de infância vivem para sempre

Atualizado em 2 de setembro de 2013 às 11:56

Especialmente se morrem fazendo o que gostam.

asa delta

A casa, vizinha à nossa, vivia lotada de carros chegando e partindo. Música alta, vários cabeludos, movimento intenso, e os dois irmãos: Lula e André.

Eles eram surfistas e, num determinado momento, passaram a voar de asa delta. Eram instrutores e tinham uma oficina na garagem para repará-las. Eram loiros, cabelos encaracolados, magros e felizes. Foram pioneiros desse esporte no Brasil. Nos anos 70 e início dos 80, uma tremenda novidade. Os caras voavam. Sim, voavam. André foi o primeiro piloto brasileiro a decolar de paraglider do Pico Agudo. Como competir com isso?

Eram oito irmãos. Zé, o caçula, meu amigo de infância. A casa era barulhenta. Vidal Laghi — espanhóis e italianos. Todos se amavam e brigavam em voz alta. O futebol era na rua, a bola de couro durava dois meses até ser destroçada pelo asfalto, o velho da frente não a devolvia, nós pulávamos o muro para apanhá-la. Eu tinha minha irmã mais nova e minha mãe. Meu pai.

Um dia André me chamou na sala para assistir ao vivo o vídeo de “Agora Só Falta Você”, de Rita Lee, no Fantástico. Um monte de gente, as namoradas dos voadores, os amigos, o cheiro da maconha. A pilha de LPs de Lula tinha um disco da Suzie Quatro. Outro do Made In Brazil. Outro do Humble Pie.

Lula jogava bola com os moleques, de Havaianas ou descalço. Palmeirense. André era mais quieto, reservado. Chegava com seu carro (uma Brasília, talvez?), a asa delta no rack, alguma coisa boa no toca-fitas, uma garota bonita ao lado. Vestia camisas coloridas, dava seu sorriso clássico, cumprimentava todo mundo. Estava a caminho de uma viagem incrível — ou voltando de alguma? Um lugar perfeito, na praia, onde André era rei.

O tempo se encarregou de distanciar-nos todos. A família Laghi se mudou e eu nunca mais vi André.

Soube na semana passada que ele morreu. Tinha 53 anos. Estava surfando em Maceió, onde morava. Passou mal, bateu a cabeça na prancha. Foi acudido, mas era tarde. Levado à areia, estava morto.

Lembrei de Dennis Wilson, o único dos Beach Boys que realmente surfava e andava nos carrões de que as músicas falavam. Dennis morreu cedo por causa de um estilo de vida acelerado. “Eu não vou desistir disso por nada desse mundo. Não vai durar para sempre. Mas as memórias vão”, ele disse certa vez.

Eu fiquei feliz de saber que André morreu fazendo o que gosta. Que não virou um barrigudo amargurado, no quinto casamento, empregado de alguma empresa estúpida, alcoólatra, contando dinheiro para sobreviver.

Agora, neste exato minuto, no meio desta tarde, eu o vejo subindo a nossa rua com a camisa colorida, cabeludo, voltando de alguma aventura indescritível, o sorriso largo, a vida correndo diante dos meus olhos a muitos quilômetros por hora, para sempre.

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