A inconcebível condenação de Lula e por um Ministério Público menos punitivista. Por Afrânio Silva Jardim

Atualizado em 23 de novembro de 2017 às 8:34
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Publicado no Empório do Direito

POR AFRÂNIO SILVA JARDIM, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente de Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J

1) A CONDENAÇÃO DO EX-PRESIDENTE LULA É TECNICAMENTE INSUSTENTÁVEL.

Não deixemos que o tempo nos faça esquecer. Não deixemos que o tempo nos torne resignados. Não deixemos que o tempo nos atropele.

Depois de diversas atividades acadêmicas e de algumas viagens pelo país, retornei à leitura dos trabalhos doutrinários e teóricos que compõem o excelente livro “Comentários a uma sentença anunciada. O processo Lula”.

Já estou no final e ainda não enfartei!!!

Bom, eu já tinha sobrevivido quando constatei, e demonstrei em várias oportunidades, a total e clara incompetência (no aspecto técnico e processual) do juízo da 13ª Vara Federal para processar e julgar o ex-presidente Lula pelos supostos crimes que lhe são imputados através da confusa e complexa denúncia do Ministério Público Federal (que está inaugurando uma nova forma de redigir esta peça acusatória: cuida-se da “denúncia dissertativa” ou “denúncia petição inicial do processo civil” …) Cuido da incompetência do juízo da 13ª.Vara Federal no texto que vai logo abaixo.

Na verdade, a cada texto que acabo de ler, eu fico indignado e revoltado, mormente como professor de Direito. Fico surpreso, também, como, neste interregno de outros afazeres, tinha até me esquecido um pouco deste deletério momento para a nossa vida jurídica, para o nosso Estado Democrático do Direito.

Por isso, este meu alerta: não vamos nos esquecer de nada, não podemos nos acomodar com nada. Não poderemos dizer, ao depois, que voltamos a ser surpreendidos por esta ou aquela decisão judicial. A crítica deve ser permanente, a crítica deve ser perene. A luta pela Justiça e pelo Direito não pode cessar nunca…

Por isso, não resisti à tentação e estou aqui fazendo este desabafo, mormente após a leitura do magnífico texto dos doutores Maurício Stegemann Dieter e Jacson Zilio, ambos professores de Direito Penal e Criminologia na USP e na UFP. O título do trabalho é: Breve análise de uma sentença “sui generis” e se encontra a fls.376/390 da supra citada obra.

Na verdade, se algum dos desembargadores federais, que irão julgar a apelação do ex-presidente Lula, proceder à leitura atenta deste texto, não terá a menor dúvida em absolver o referido réu, estando este magistrado de boa-fé, como é de se esperar.

Em resumo: como tantos outros textos constantes do aludido livro, este, que acabo de louvar, destrói totalmente a sentença prolatada pelo juiz Sérgio Moro, no aspecto estritamente jurídico.

Pode-se dizer que ele não deixa “pedra sobre pedra”, demonstrando todos os equívocos da sentença condenatória do ex-presidente Lula, mas tem um perigoso efeito colateral, pois aumentou a minha indignação e revolta, por isso que, antes de sentar aqui no computador para desabafar, tomei mais uma dose do meu costumeiro remédio para o coração, como “medida cautelar inominada”, pois, como diz o povo, “ninguém é de ferro”…

2) A INCOMPETÊNCIA DA 13ª VARA FEDERAL DE CURITIBA:  JUIZ SÉRGIO MORO.

Lanço aqui um DESAFIO!!!

Mesmo para os leigos em Direito.

DUVIDO QUE ALGUM PROCURADOR DA REPÚBLICA DEMONSTRE ESTA CONEXÃO. FICA AQUI O MEU DESAFIO TAMBÉM PARA ELES!!!

Que hipótese de conexão do artigo 76 do Cod. Proc. Penal existe entre o crime de lavagem de dinheiro, praticado pelo doleiro Alberto Youssef, através do Posto Lava Jato, sito no Paraná, e os crimes atribuídos ao ex-presidente Lula, que teriam sido praticados em São Paulo ???

Código de Processo Penal.

“Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.

Art. 76. A competência será determinada pela conexão:

I – se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;

II – se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;

III – quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.”

O juiz Sérgio Moro não diz, não explica, não demonstra. Ele apenas assevera que os processos contra o ex-presidente Lula são da sua competência, porque conexos com aquele processo originário e outros mais. Meras afirmações, genéricas e abstratas.

A Constituição da República dispõe expressamente, em seu artigo 5 que:
“Inciso LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.

Ressalto que a prevenção é critério de fixação da competência entre órgãos jurisdicionais que sejam todos já genuinamente competentes.

Como uma incompetência tão flagrante e acintosa pode perdurar em um país sério ???

Note-se que, aqui, sequer estamos pondo em questão a própria competência (ou incompetência) do juiz Sérgio Moro para aqueles processos originários, que teriam “atraído” os demais crimes para a 13a.Vara Federal de Curitiba.

De qualquer forma, é importante notar, tendo em vista o art.109 da Constituição Federal, que:

a) A Petrobrás é uma sociedade empresária de direito privado (economia mista);

b) A competência da justiça federal é prevista, taxativamente, na Constituição Federal, que leva em consideração o titular do bem jurídico violado pelo delito e não a qualidade do seu sujeito ativo;

c) A prevenção não é fator de modificação ou prorrogação de competência, mas sim de fixação entre foros ou juízos igualmente competentes.

Relevante salientar, ainda, que, no processo penal, a conexão ou continência se dá entre infrações penais e não entre processos.

3) O MINISTÉRIO PÚBLICO NÃO DEVE SE TRANSFORMAR EM UM ACUSADOR SISTEMÁTICO.

MENSAGEM PRINCIPAL DESTE NOSSO TEXTO: o ser humano não pode deixar de ser o centro de tudo. O valor justiça não pode ser abandonado. O humanismo não pode ser abandonado. A moderação não pode ser abandonada. Quando for preciso endurecer, não percamos a ternura, jamais, (parodiando Che).

A realidade é muito instigante e nos faz refletir. Ela desperta a nossa consciência e também, em uma perspectiva mais crítica, nos faz ver melhor a verdade que se oculta por trás dos fatos e atos do nosso cotidiano.

Recentemente, foram amplamente divulgadas, pela grande imprensa, algumas notícias que, se bem compreendidas, demonstram que o nosso “sistema de justiça penal” está ideologicamente assumindo “partido”. Vale dizer: “escola sem partido” e “justiça penal com partido” …

Como tenho constantemente salientado, a estratégia punitivista de se socorrer da grande mídia para lograr punições, previamente desejadas, está dando bastante “certo”. Tudo está virando um grande espetáculo …

O importante já não é mais a realização do valor justiça. Agora, o importante é “condenar corruptos”, colocando alguns em clausura e outros em “prisão” domiciliar, em suas belas mansões. Há muita hipocrisia nisto. A liberdade das pessoas está virando “mercadoria”, objeto de troca em negócios jurídicos processuais!

Aliás, esta estratégia perversa, encontra agora um “terreno fértil”, pois os nossos órgãos de persecução penal e do Poder Judiciário, com as costumeiras exceções, são compostos por pessoas de formação conservadora, acríticas e, por vezes, profundamente elitistas.

A falta de cultura geral torna polícias, membros do Ministério Público e do Poder Judiciário em “presas fáceis” do autoritarismo, de posturas simplistas e mais voltadas para o “senso comum”.

Na verdade, são raros os profissionais do Direito que, aprovados nos respectivos concursos públicos, continuam estudando e lendo sistematicamente. Os motivos desta “letargia” são vários e não cabe aqui elencá-los e comentá-los.

De qualquer forma, entendo que há um certo despreparo para o desempenho mais consequente destas relevantes funções, mormente quando se deflagra um ativismo judicial desmedido, quando se busca ampliar a discricionariedade no processo penal e quando somos dominados pelo poder econômico, que se utiliza da grande imprensa para padronizar comportamentos e pensamentos conservadores.

O pior é que as pessoas não se dão conta disso. Os próprios protagonistas desta grave situação não se dão conta disso. Muitos agem, ou se omitem, sem perceberem a quem estão servindo.

Aqui, afasto-me do academicismo, de enfoques herméticos e formas de escrita rebuscadas. Não me move qualquer pretensão de demonstrar erudição, aprofundando temas para exibir uma cultura que efetivamente não possuo.

Na verdade, o momento de crise social que estamos vivenciando exige que estejamos presentes “na luta” e não dela distantes com “elucubrações abstratas”, que não têm qualquer conexão com a vida das pessoas.

Nós, do Direito, também precisamos nos tornar ativistas e militantes em prol de uma sociedade verdadeiramente justa. Aposentado no Ministério Público, assumo o pretensioso cargo de promotor de justiça social …

Dentre outros, um dos aspectos mais negativos da atuação dos Procuradores da República de Curitiba, que fazem parte da “Força Tarefa da Lava Jato”, é que eles pensam que o Ministério Público deve assumir uma “obrigação de resultado” no processo penal.

Desta forma, atuam como se fossem “advogados de acusação”.

Por tudo isto, é imprescindível respeitar o princípio do “Promotor Natural”. Sem a necessária impessoalidade, o Ministério Público pode se transformar em promotor de injustiça.

Em meus 31 anos do Ministério Público no E.R.J., sempre tive compreensão distinta: a nossa “obrigação é de meio e não de resultado”. Vale dizer, devemos atuar com absoluta diligência, empenho, seriedade, ética e competência no processo penal. O resultado desta atuação fica por conta do Poder Judiciário.

Nunca persegui réus e nunca tive interesse em atuar neste ou naquele processo específico, mesmo em se tratando do Tribunal do Júri. A atuação dos membros do Ministério Público deve ser impessoal e desinteressada.

Acho que este é o grande equívoco do atual Ministério Público, que achou por bem “combater” isto ou aquilo. Fazendo o papel de polícia judiciária, passa a ver tudo com “olhos” de polícia.

Ademais, o Ministério Público, ao se envolver com a mídia e se preocupar com opinião pública, julga ter de alcançar resultados persecutórios determinados, para não se desmoralizar. Desta forma, perde o necessário equilíbrio.

Enfim, o Ministério Público está deixando de ser o verdadeiro Ministério Público, que deve se limitar a promover efetiva justiça, e não ser um “heroico e messiânico combatente” de crimes.

Polícia é polícia, Ministério Público é Ministério Público!