A Auditoria Cidadã da Dívida divulgou carta aberta para alertar para os riscos da independência do Banco Central, que está para ser aprovada pelo Congresso Nacional. “Verificamos que os referidos projetos de lei pretendem tornar o Banco Central (BC) um ente autônomo, sem vinculação ou subordinação a qualquer ministério, e aparentemente acima de tudo e de todos. Pelo visto, o BC continuará subordinado somente ao BIS (banco central dos bancos centrais), organização privada que comanda as finanças mundiais, com sede na Suíça”, diz a entidade, que é coordenada por Maria Lúcia Fattorelli.
“Segundo os projetos, o BC terá autonomia para produzir suas próprias normas operacionais, sem necessidade de lei votada no Congresso; ficará também acima do poder Executivo (que sequer poderá demitir diretores do BC, independentemente dos danos que as políticas adotadas provoquem à economia do país); e até acima da lei penal, pois os atos de diretores, atuais e todos os anteriores, ‘não serão passíveis de responsabilização por atos praticados no exercício de suas atribuições'”, acrescentou.
Segue a carta na íntegra:
CARTA ABERTA SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BANCO CENTRAL
Diante das últimas notícias sobre o acordo costurado entre os presidentes da Câmara e do Senado, no sentido de priorizar a votação da “Independência do Banco Central” para este mês de março/2020, apensando-se os projetos que correm nas duas casas legislativas (PLP 112/2019 e PLP 19/2019), a Auditoria Cidadã da Dívida, associação sem fins lucrativos que há 20 anos investiga os mecanismos responsáveis pela geração de dívida pública sem contrapartida alguma em investimentos de interesse da sociedade ou do país, e por seu contínuo crescimento, apesar dos volumosos pagamentos que nos últimos anos superaram a casa do trilhão de reais, manifesta-se por meio da presente CARTA ABERTA, tendo em vista a estreita relação entre o crescimento da dívida pública brasileira e a atuação do Banco Central.
Verificamos que os referidos projetos de lei pretendem tornar o Banco Central (BC) um ente autônomo, sem vinculação ou subordinação a qualquer ministério, e aparentemente acima de tudo e de todos. Pelo visto, o BC continuará subordinado somente ao BIS (banco central dos bancos centrais), organização privada que comanda as finanças mundiais, com sede na Suíça.
Segundo os projetos, o BC terá autonomia para produzir suas próprias normas operacionais, sem necessidade de lei votada no Congresso; ficará também acima do poder Executivo (que sequer poderá demitir diretores do BC, independentemente dos danos que as políticas adotadas provoquem à economia do país); e até acima da lei penal, pois os atos de diretores, atuais e todos os anteriores, “não serão passíveis de responsabilização por atos praticados no exercício de suas atribuições.”
A atribuição do BC nos projetos fica resumida apenas à busca da “estabilidade de preços”, ou seja, o controle inflacionário. Esse aspecto nos parece extremamente preocupante, tendo em vista que dados oficiais comprovam que a inflação brasileira tem decorrido do aumento dos preços administrados (energia elétrica, água, combustíveis, transporte, plano de saúde etc.) e dos preços de alimentos (devido à sazonalidade e erros de política agrícola). Assim, as ferramentas usadas pelo BC, em especial o aumento (ou redução) da taxa de juros Selic, não interfere no tipo de inflação verificado no Brasil. Apesar do atual patamar reduzido da Selic (4,25% a.a.), decorrente da grave recessão fabricada principalmente pela política monetária do BC, a taxa média dos juros da dívida federal interna foi mais que o dobro; ficou em cerca de 9% a.a. em 2019; as taxas de juros de mercado chegaram a ultrapassar 100% a.a.; os juros sobre cartões de crédito alcançaram percentuais superiores a 300%a.a., enquanto na maioria dos demais países do mundo, desde 2008 as taxas de juros têm ficado próximas de zero ou até negativas! Os projetos de independência do BC garantem completa autonomia operacional ao BC para seguir ou até aprofundar esses erros, sem que nenhum outro poder possa interferir.
O PLP 112/2019 acrescenta competências às atribuições do BC, dentre as quais se destaca o acatamento de “depósitos voluntários”, cuja remuneração o próprio BC irá determinar. Na prática, tais depósitos voluntários já estão ocorrendo há anos, e vêm sendo remunerados diariamente aos bancos, por meio do uso abusivo das chamadas ”Operações Compromissadas” em volumes que já chegaram a ultrapassar R$1,3 Trilhão, o que não encontra paralelo em nenhum outro país. Essa benesse aos bancos custou cerca de 1 TRILHÃO DE REAIS aos cofres públicos no período de 2009 a 2018, segundo dados do próprio balanço contábil do BC!
Enquanto R$ 1 trilhão foi consumido para remunerar bancos sem previsão legal, recursos vitais deixaram de chegar às necessidades urgentes da população. Milhares de brasileiros e brasileiras estão morrendo à espera de uma cirurgia ou de um simples atendimento médico, que não acontecem por falta de recursos para a Saúde Pública. Milhões de crianças e jovens não têm tido a oportunidade de desenvolver suas potencialidades, tendo o seu futuro comprometido, ou estão sendo empurrados para o mundo das drogas e perdição, justamente por falta de recursos para a Educação Pública Integral e de qualidade.
Não podemos nos omitir diante da tentativa de “legalização” dessa remuneração injustificável aos bancos. Essa tentativa já foi feita pelo BC em 2017, quando enviou ao Congresso o PL 9.248/2017, projeto de um único artigo que cria a figura do “depósito voluntário remunerado”. Tal projeto está parado, por pressão de diversas entidades da sociedade civil, inclusive a Confederação Nacional das Indústrias (CNI), que manifestou-se em defesa da indústria nacional, setor que tem encolhido de forma preocupante, aprofundando o desemprego no país, principalmente por causa das exorbitantes taxas de juros de mercado praticadas no Brasil, as quais decorrem justamente da escassez de moeda gerada pela esterilização de recursos, que ficam depositados no BC, sendo diariamente remunerados, em vez de serem disponibilizados para empréstimos a juros acessíveis.
Sob a propaganda da “Independência do BC”, se tenta novamente “legalizar” o mecanismo de remuneração diária da sobra de caixa dos bancos. Pretende-se “legalizar” também a utilização de derivativos (swap) como instrumento de política cambial. Tais contratos sigilosos já foram repudiados até em representação do TCU, conforme TC-012.015/2003-0, e têm provocado prejuízos de dezenas de bilhões de reais, que são pagos por toda a sociedade.
Tais mecanismos transferem recursos públicos em montantes exorbitantes aos bancos, aumentam a dívida pública e provocam recessão econômica para a economia real, tal como ocorrido nessa grave crise que enfrentamos desde 2015. Tudo isso restará impune e inalcançável pelas leis do país, caso venham a ser aprovados os projetos em questão.
O funcionamento distorcido do BC por meio desses mecanismos citados tem afrontado o art. 192 da Constituição Federal, segundo o qual “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.”
O que precisamos é de um Banco Central conectado à nação e a serviço dos interesses da coletividade, como diz a Constituição, atuando de forma transparente e ética, e não de forma opaca, sigilosa e independente, acima de tudo e de todos, como pretendem os projetos que estão para ser votados no Congresso Nacional.
Diante do exposto, inspirados nas diversas manifestações do Papa Francisco por um funcionamento ético e humanizado da economia e suas instituições, manifestamos publicamente a nossa posição contrária aos projetos PLP 112/2019 e PLP 19/2019, e apelamos à consciência dos senhores e senhoras parlamentares para que rejeitem tais projetos de “independência do BC”, tendo em vista os imensos riscos que tais projetos representam para o país, e abram franco e aberto debate sobre o tema.
Brasília, 2 de março de 2020
Maria Lúcia Fattorelli