Publicado originalmente no Brasil de Fato:
A mineradora canadense Belo Sun quer explorar o solo da Volta Grande do Xingu, no sudoeste do Pará. Esta é a história dos conflitos entre os interesses da empresa com os dos moradores da região, e com a preservação do meio ambiente.
Em maio de 2012, a multinacional comprou terras, que agora estão sendo questionadas pela Justiça, na Vila da Ressaca, uma localidade da região.
Desde então, a multinacional vem atuando no local e impactando na vida dos povos da floresta. A Belo Sun se instalou na Vila Ressaca, construiu escritório, ampliou as vias de acesso e fixou placas declarando sua propriedade.
Em 2016, chegou a assinar um acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), já prevendo a retirada das famílias do Programa de Assentamento (PA) Ressaca, limítrofe à Vila da Ressaca.
Junto a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas), a Belo Sun obteve, em 2017, a licença de instalação de duas minas de ouro às margens do rio Xingu, criando o maior projeto de extração a céu aberto do minério na América Latina.
O problema é que uma parte do lugar onde a empresa quer minerar é dentro da área do PA Ressaca. Dessa forma, se estabelece a primeira barreira para a multinacional, que só pode ser destravada pelo Incra, órgão responsável por promover a reforma agrária no Brasil.
Após interesse da Belo Sun, PA Ressaca “diminuiu”
Criado no dia 3 de setembro de 1999, o PA Ressaca ocupa parte de Altamira e de Senador José Porfírio, e é circundado por outros projetos de reforma agrária como o Assurini, situado na Volta Grande; o Itapuama; o Itatá; e o Laranjal.
O assentamento resultou da destinação de uma parte da Gleba Ituna, arrecadada e matriculada pela união, em 1982. No documento de criação a área do PA foi estimada em 30,2 mil hectares e com capacidade de assentar 340 famílias.
Atualmente após a adequação do local ao Cadastro Ambiental Rural (CAR), a área do PA registrada pelo Incra passou a ser de 26,1 hectares, 4,1 mil hectares menor.
Elielson Pereira da Silva, pesquisador do projeto “Nova Cartografia Social da Amazônia”, da Universidade Federal do Pará (UFPA), explica que essa discrepância de medidas nos documentos acende um alerta quanto aos interesses da mineradora.
Segundo ele, a estranha redução não encontra nenhum amparo em atos administrativos do Incra, pois no decorrer dos 20 anos de existência da unidade não foi realizada nenhuma alteração legal do perímetro do assentamento. Em paralelo, o projeto Volta Grande, da Belo Sun, está em cima da área do PA.
“Foi feita uma etnografia desses atos administrativos, no âmbito dos processos do PA Ressaca desde antes da sua criação. Então, nos últimos 20 anos a gente fez esse levantamento todo e não há um ato administrativo que tenha reduzido a área do PA Ressaca. O que teria justificado esse registro de 26 mil hectares ao invés dos 30 mil hectares? Essa é uma pergunta a se fazer”, questiona.
De acordo com o pesquisador, o PA Ressaca nasce em 1999, mas pode morrer a qualquer momento. O lugar simplesmente deixará de existir com a mineração de Belo Sun. As pessoas seriam retiradas e seria dado, então, início a mineração no local. Atualmente, o projeto “Volta Grande”, da mineradora Belo Sun, incide em 2,05 mil hectares do PA Ressaca.
Silva lembra ainda que a Belo Sun comprou os direitos de outra empresa, que já tinha um histórico de violações aos povos amazônidas.
“A Belo Sun comprou direitos minerários que pertenciam à Oca Mineração. Essa empresa deu entrada em pedidos de exploração mineral por volta de 1976. Depois, nos anos posteriores, a Oca mineração, que tem que todo um histórico de violências praticadas contra os pequenos garimpeiros e os povos tradicionais, mudou de nome e passou a se chama Verena Mineração. Em 2010, a Verena foi comprada por Belo Sun e passou a se chamar Belo Sun Mineração”, detalha.
Para Valdomiro Lima, 55, garimpeiro, pescador e agricultor que mora na comunidade da Vila da Ressaca desde 2013, o lugar era tranquilo e foi a empresa Belo Sun que roubou a paz dos moradores. De pele queimada do sol, o homem conta que o lugar tinha suas dificuldades, mas era bom de se viver. Em 1995, ele recorda que pessoas com máquinas estranhas passaram a transitar na vila, sempre sem pedir permissão aos moradores.
Segundo ele, com a chegada da Belo Sun começam as ameaças. “Fizeram emplacamento em todas as entradas da Vila: proibido entrar estranho; proibido garimpar; pescar. Quer dizer, estavam se apoderando de uma coisa que não era deles. E sem dar a mínima para ninguém. Ninguém nunca conversou com ninguém nessa época.
Em 2006, a comunidade cria uma cooperativa que passa a encabeçar a luta contra a instalação da mineração multinacional no local. “Tenho que confessar, somos poucos aqui, porque os outros estão super enganados do que vai acontecer. Tenho certeza que tem gente que vai sair daqui chorando depois de ver o tamanho da miséria que vai acontecer. Se acontecer, porque eu até hoje não acredito e não quero”, almeja Lima.
Para poder minerar no local onde hoje é o PA Ressaca, a Belo Sun precisa primeiro que o Incra promova a desafetação das terras hoje destinadas para reforma agrária. Esse processo implicaria no despejo de quem vive hoje na comunidade.
Em 2016, a Belo Sun e o Incra, com a assinatura de um diretor de desenvolvimento e projeto de assentamento de Brasília, firmaram um protocolo de intenções. O documento previa, entre outras coisas, a retirada e a indenização das famílias área do PA Ressaca, onde vivem atualmente cerca de 500 famílias.
A defensora pública do Estado do Pará, Andreia Barreto, explica que o protocolo de intenções não tem validade, e que a manobra faz parte de uma prática da Belo Sun de tentar burlar a legislação para começar a minerar.
“Quem assina o documento é um diretor de um órgão de dentro do Incra, e o Incra é uma autarquia federal, portanto, ele não representa a instituição. Para isso, o documento deveria ser assinado pelo presidente, o que não aconteceu. Sem contar que ele traz informações que são condições que a Belo Sun deve cumprir dentro do licenciamento ambiental, mas isso em uma segunda fase, na licença de instalação. E se ele não cumpriu a desafetação, ele não pode ter a licença de instalação”, explica.
A compra e as ilegalidades
O Cadastro ambiental rural (CAR) é uma das formas de se conquistar o direito sobre uma terra e também outra incongruência no caso de Belo Sun. O cadastramento, obrigatório, concentra informações referentes à situação das áreas de preservação permanente, reserva legal, florestas e áreas consolidadas de propriedades e posses rurais de todo o Brasil.
A defensora Andreia Barreto relata que o CAR que a Belo Sun possui é referente a uma área maior do que a prevista na licença de instalação – suspensa pela justiça. A licença prevê uma área 2,3 mil hectares e o CAR é de 2,7 mil hectares.
Ela explica que o CAR da empresa tem irregularidades porque a área de licença é menor que a área do CAR. Ou seja, essa diferença de medidas, segundo entende a defensora já visa uma área de ampliação por parte da empresa que tem dezessete direitos de pesquisa registrados no DNPM.
Barreto aponta que só há registro de compra pela mineradora de uma área menor. Em maio de 2012, a Belo Sun comprou a terra de três fazendeiros na Volta Grande do Xingu – Willian; Geisel e Henrique –, e por elas pagou R$ 8,2 milhões.
De acordo com a defensoria, a área total das fazendas adquiridas soma 1,7 mil hectares.
“No CAR da Belo Sun, de 2,7 mil hectares, tem várias fazendas que ele simplesmente incorporou. A área de licença de instalação que está suspensa hoje é de 2,3 mil hectares. O nosso entendimento é de que essa aquisição de áreas do CAR tem relação direta com a área de pretensão de ampliação do licenciamento. Na verdade é um passo inicial para as áreas que eles pretendem ampliar de forma fragmentada dentro da pretensão deles”, conclui.
Compra de terra ilegal, expulsão de pessoas arbitrária
A Vila da Ressaca, no município de Senador José Porfírio, é um lugar aparentemente tranquilo. Os moradores se orgulham em dizer que desde que foi criada o local registou, apenas, um homicídio. As ruas são de piçarra com um pouco de cimento. Os comércios pequenos e sempre com quatro, cinco pessoas no máximo dentro. Tem barbearia, tem açougue, tem mercadinho e bar. Tem crianças na rua e uma escola municipal.
As pessoas vivem da caça, da pesca e da garimpagem. Com mais ou menos 500 famílias, o local tem muitas casas abandonadas. Umas com placas de vende-se, outras deterioradas pela ação do tempo. A vila, onde se concentra o comércio da cidade, tem, no máximo, 150 casas.
Mas a eminência de Belo Sun faz com que o lugar tenha construtoras dispostas a construir benfeitorias mirando receber uma possível indenização. O tempo que a pessoa viveu no local, as histórias que cultivou naquele pedaço de chão, nada disso é levado em conta na hora da indenização das famílias.
Seu Valdomiro Lima, 67 anos, diz que há anos sofre pressão por parte da empresa. Ele conta que o local tinha dificuldades, mas piorou com a chegada da multinacional e mais ainda quando Belo Sun comprou as terras do Willian; do Geisel e do Henrique – três grandes garimpeiros que movimentavam a econômica do local.
Eu fico pensando como é que faz uma negociação com uma empresa em uma comunidade desse tamanho e só três pessoas podem fazer essa negociação? Sem reunião, sem comunicar ninguém. Ninguém dá a mínima para ninguém”, indaga.
Dos abusos cometidos contra os moradores surgiu a necessidade de fundar uma cooperativa. Assim, nasceu a Cooperativa dos Garimpeiros da Região da Ressaca e Ilha da Fazenda (Coogrrif), no ano de 2006.
Em 2008, os membros conseguiram junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral , a permissão de lavra garimpeira, documento que os permite minerar. Já a licença de operação, emitida pela Semas, tinha validade até o dia 18 de novembro de 2013, mas não foi renovada.
Segundo José Pereira Cunha, 55, presidente da cooperativa de garimpeiro da Volta Grande do Xingu, também conhecido como Seu Pirulito e que garimpa desde os 17 anos, a não renovação já atendia aos interesses de Belo Sun. Afinal, sem a licença, eles podem ser chamados de garimpeiros ilegais.
“Em setembro de 2013, a gente entrou no DNPM para pedir a nova LO, a renovação. Daí, eles pediram 15 dias de prazo. Voltamos com 15 dias e depois eles pediram 30. Aí voltamos com 30 dias e quando voltamos lá, o Bosco pediu 90 dias, aí já entramos com um processo e fomos procurar nossos direitos, porque eles não deram o número do processo, copia, nada justificativa de nada”, afirma.
A defensora pública do Estado, Andreia Barreto, reforça que a justiça está em curso para coibir os atos considerados ilegais pela empresa.
“O que a gente tem são duas ações judiciais envolvendo a Belo Sun. Uma delas está, inclusive, vigente, que são as compras dessas antigas fazendas, que eram as antigas áreas de garimpo em que os supostos proprietários venderam para Belo Sun. A gente questiona a legalidade dessa compra. Tem outra ação também que envolve a retirada de placas proibitivas de caça, pesca e garimpagem, porque a Belo Sun adquiriu as áreas e começou a fixar essas placas na beira do rio, nas estradas como se fosse dona das terras toda sem antes passar por um processo de destinação do poder público federal”, afirma.
Sobre o protocolo assinado com a Belo Sun e o andamento do uso da terra, o Incra, disse em nota, que em sua atual gestão, está avaliando a questão sob os parâmetros de viabilidade jurídica e de conveniência seguindo os marcos institucionais e legais.