Investigada por fake news, Kicis contratou serviços de mídias sociais de apoiadores do governo

Atualizado em 2 de junho de 2020 às 17:38
Bia Kicis. Foto: Reprodução/YouTube

PUBLICADO NA AGÊNCIA PÚBLICA

POR ALICE MACIEL E ETHEL RUDNITZKI

Em março e abril, três empresas recém-fundadas foram contratadas pela deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), em Brasília, para cuidar de suas redes sociais. As três foram abertas tendo como primeira cliente a deputada federal, alvo do inquérito sobre as fake news no Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse período, como apurou a reportagem, Kicis disseminou, em suas redes sociais, notícias comprovadamente falsas e/ou distorcidas sobre o combate ao coronavírus e contra adversários políticos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), participando ainda da convocação de pessoas para as manifestações antidemocráticas e anti-isolamento social, investigadas pelo STF desde abril. Os serviços dessas empresas são pagos com verba parlamentar, ou seja, com dinheiro público.

Uma delas é a Inclutech Tecnologia, que, conforme mostrou reportagem da Agência Pública, pertence a Sérgio Lima, marqueteiro do Aliança pelo Brasil – partido de Bolsonaro, ainda em formação. Até fevereiro, a Inclutech era uma empresa de cosméticos, mas sua atividade econômica foi alterada para prestar serviços publicitários e, segundo afirmou Lima à Pública naquela reportagem, Bia Kicis foi sua primeira cliente depois da mudança de ramo da empresa.

A parlamentar bolsonarista também foi a primeira e única cliente da Produtora Futuro e da BM Gestão de Mídia Sociais, criadas em janeiro e março, respectivamente. As duas são de Cornélio Procópio, um município do interior do Paraná com 47,8 mil habitantes – segundo estimativa do IBGE de 2019. A deputada, que nasceu no Rio, foi eleita pelo Distrito Federal.

A BM Gestão de Mídia Sociais foi registrada em nome de Lindara da Silva, que, segundo ela, é sogra do verdadeiro dono do negócio, Humberto Bernardino da Silva, conhecido como Beto Morato, filiado ao MDB desde 1985 e militante do movimento Nas Ruas. “É meu genro, né? Eu só abri a conta pra ele, mas eu não trabalho não [na empresa], ele que faz o serviço pra ela [Bia Kicis]”, contou Lindara. “Para ele ter uma conta para receber, eu tive que abrir [uma] no meu nome, porque no momento ele não está tendo condições de ser no nome dele”, disse.

De acordo com Lindara, Morato não poderia abrir empresa em seu nome por questões financeiras. No entanto, a Pública apurou que ele tem um negócio de produção musical desde 2012 – a Beto Morato Produções – em sociedade com sua esposa, Jane Teodoro da Silva.

A Pública tentou diversas vezes contato com Beto Morato, por meio de Lindara, que disse que pediria para ele ligar para a reportagem, mas não houve retorno. Também enviamos e-mails e mensagem no Facebook dele, sem resposta. No seu perfil na rede social constava que ele passou a cuidar das redes sociais de Bia Kicis em 10 de junho de 2018, mas só em março deste ano foi oficialmente contratado pelo gabinete da deputada por meio da recém-criada BM Gestão de Mídia Sociais.

A deputada Bia Kicis (PSL) é alvo do inquérito das fake news, que investiga a participação de organizações e pessoas na produção e divulgação em massa de notícias falsas
Bia Kicis afirmou por meio de sua assessoria que Morato trabalhava voluntariamente para ela, “em continuidade ao apoio à atuação anterior” à sua eleição. “No início de 2020, após comprovada excelência do trabalho realizado pelo profissional – o que se comprova pelo reconhecimento do desempenho da parlamentar, que ocupa o 3º lugar do FSB Influência Congresso – nada mais natural e necessário do que a contratação formal dos serviços”, justificou. Ela confirmou que os serviços são feitos remotamente e não nas dependências do seu gabinete. Sobre a Inclutech Tecnologia, a ex-empresa de cosméticos, a deputada disse que ela foi contratada por um mês – por R$ 6,4 mil – “para realização de trabalho específico de marketing”, sem fornecer mais detalhes.

A deputada contou ainda que foi Beto Morato quem lhe indicou os serviços de Izael Tomaz, dono da Produtora Futuro. Ele também abriu novo CNPJ para a prestação de serviços à deputada. Antes teve uma empresa de mesmo nome – Produtora Futuro – baixada na Receita Federal que fazia ensaios fotográficos.

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Tomaz é suplente de vereador em Cornélio Procópio pelo PSDC. O partido, no município, fez coligação com o PSL e elegeu o prefeito Amin Hannouche (PSDB-PR), que está atuando na coleta de assinaturas para a criação do Aliança pelo Brasil no Paraná. Em 19 de fevereiro, foi organizado um “mutirão” de assinaturas para a fundação do partido em Cornélio Procópio. Um ônibus com a foto do presidente Jair Bolsonaro e do deputado federal pelo Paraná Filipe Barros (PSL-Aliança) foi estacionado no calçadão central da cidade. Um mês antes, o parlamentar, acompanhado do prefeito Hannouche, esteve em cidades próximas para a coleta de assinaturas para o partido em formação.

Banner de evento para coleta de assinaturas do Aliança Pelo Brasil em Cornélio Procópio
Questionado pelo Facebook e procurado por telefone, Tomaz não respondeu à reportagem a respeito dos serviços prestados para a deputada Bia Kicis nem sobre suas relações políticas com o Aliança pelo Brasil. Assim como Morato, ele fechou suas redes sociais após o contato da Pública.

A descrição dos serviços prestados pelas duas empresas de Cornélio Procópio está nas notas fiscais – números 01, 02 e 03 – apresentadas na prestação de contas da Câmara dos Deputados. A numeração revela ser a parlamentar a primeira e única cliente dessas empresas. De acordo com as notas, a empresa de Beto Morato recebeu R$ 12 mil durante março e abril para a gestão das mídias sociais da deputada federal e criação, produção, edição, montagem e publicação de vídeos e banners no Facebook, Twitter, Instagram e no canal de Bia Kicis no YouTube. Os mesmos serviços foram prestados pela Produtora Futuro por R$ 6 mil, ou R$ 2 mil por mês, de fevereiro a abril deste ano – as notas de maio ainda não foram lançadas pela deputada no site da Câmara.

De acordo com Bia Kicis, a empresa de Beto Morato é responsável pela criação de conteúdo audiovisual e consultoria de marketing, enquanto a Produtora Futuro auxilia no gerenciamento da rede social, mantém e organiza as informações específicas do canal, interage com os leitores, dando retornos predefinidos por ela a possíveis perguntas dos usuários da página, monitora o engajamento do público e produz relatórios simples mensais baseados nos resultados apresentados pela própria plataforma.

Antes de prestar serviços para Bia Kicis, Beto Morato trabalhou para a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), também investigada pelo mesmo inquérito do STF. Morato trabalhou com Zambelli antes de ela se eleger deputada, de 3 agosto de 2015 a 5 de junho de 2018. Nesse período ela liderava o movimento Nas Ruas. Foi creditado a ele, pelo próprio movimento, a edição de um vídeo apócrifo contra a deputada federal Gleisi Hoffmann postado na página do Nas Ruas em setembro de 2016.

No vídeo com título “Gleisi Pepa Pig Hoffmann é trollada hoje por Carla Zambelli de novo”, aparece esta dizendo que a deputada federal do PT iria para a cadeia. “A gente vai te colocar na cadeia tá, Gleisi. Logo, logo você vai virar ré”, diz a militante no vídeo. A edição foi compartilhada por Bia Kicis no Twitter.

As deputadas Bia Kicis (PSL) e Carla Zambelli (PSL) contrataram os serviços de marketing de Beto Morato, militante do movimento Nas Ruas
Kicis conheceu Zambelli em 2011, depois que esta fundou o movimento Nas Ruas, com a bandeira de combate à corrupção. Bia Kicis, então presidente do Instituto Resgata Brasil, foi advogada de Zambelli em ações contra atos organizados pelo movimento.

O Nas Ruas se tornou popular durante as manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff e atualmente apoia as manifestações contra o Congresso e o STF – das quais o presidente Bolsonaro participou – e contra o isolamento social no combate à pandemia. Foi o movimento que fez a divulgação de atos a favor do pacote anticrime de Sergio Moro e da reforma da Previdência do governo em 2019, que ocorreram depois em mais de 150 cidades pelo Brasil, incluindo Cornélio Procópio.

Um dos líderes do Nas Ruas, Marcos Bellizia, foi alvo, na terça-feira, de busca e apreensão no âmbito do mesmo inquérito do STF que investiga Bia Kicis e a deputada Carla Zambelli sobre as fake news. Questionado pela Pública a respeito da participação e divulgação de manifestações antidemocráticas, ele afirmou que o movimento não organizou nenhum dos eventos. “As carreatas foram espontâneas em todo Brasil! Nós, como movimento apartidário, apenas divulgamos nas nossas redes”, disse.

O movimento não respondeu sobre a atuação no município de Cornélio Procópio nem sobre as relações com o dono da BM Gestão de Mídia Sociais, Beto Morato.

As fake news e ataques de Bia Kicis

De acordo com o levantamento do Radar Aos Fatos – um monitor de desinformação em tempo real –, Bia Kicis é a terceira congressista que mais disseminou notícias falsas sobre o novo coronavírus, atrás apenas dos deputados Osmar Terra (MDB-RS) e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). A pesquisa trata justamente do período no qual as empresas de Beto Morato, Izael Tomaz e Sérgio Lima foram contratadas pela deputada: de 20 de fevereiro a 8 de abril de 2020.

“Não houve qualquer postagem da deputada Bia Kicis, relacionada ao coronavírus, que pudesse ser considerada fake news”, se defendeu a parlamentar por meio da sua assessoria de imprensa.

Em 4 de abril, no entanto, Bia Kicis publicou um banner informando que a Food and Drug Administration (FDA), órgão regulador de medicamentos nos Estados Unidos, liberou a hidroxicloroquina para ser usada em pacientes com coronavírus, chamado na peça de divulgação de “vírus chinês”. A Agência Lupa mostrou que o órgão aprovou apenas o uso emergencial de alguns produtos com sulfato de hidroxicloroquina e fosfato de cloroquina no tratamento de pacientes com Covid-19. A FDA ainda não emitiu parecer final sobre o assunto: a autorização é temporária e para situações específicas.

A deputada publicou ainda uma notícia falsa favorável ao presidente Jair Bolsonaro nas suas redes sociais, no dia 31 de março. A postagem, que também vem acompanhada de um banner, diz que o procurador-geral da República, Augusto Aras, arquivou a notícia-crime apresentada pelo deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG) contra o presidente Jair Bolsonaro. A Procuradoria Geral da República (PGR), porém, publicou uma nota em seguida dizendo que ainda “não houve manifestação do órgão ministerial”.

Nos meses de março e abril, a deputada publicou críticas aos ministros do STF. Em 9 de abril, por exemplo, ela fez um post dizendo que o ministro Alexandre de Moraes colocou a Constituição Federal de quarentena. “Cada um decide o que bem entende. É o caos Jurídico.” A mensagem é seguida de um banner com a imagem do ministro e críticas ao fato de ele ter acolhido o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para assegurar aos governadores e prefeitos o poder de adotar medidas de isolamento.

A Pública mostrou que a deputada participou de manifestações antidemocráticas e falou em reformar o Congresso e o Supremo em meio ao acampamento “300 pelo Brasil”, que, liderado por Sara Winter e inspirado em movimentos fascistas europeus, foi alvo de busca e apreensão no inquérito das fake news.

Os adversários políticos também foram alvo de ataque de Bia Kicis. Em 27 de abril, ela postou um banner em suas redes sociais com a informação de que uma testemunha revelou que Adélio Bispo esteve com Jean Wyllys na Câmara dos Deputados mais de uma vez. Conforme mostrou o blog de checagem de fatos do Estadão, o depoimento na Polícia Federal não liga o ex-deputado federal a Adélio, que confessou ter sido autor da facada contra o então candidato à Presidência Jair Bolsonaro. Ontem, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) decidiu que os deputados Beatriz Kicis e Bibo Nunes, além do empresário Otávio Fakhouri, de um youtuber e um blogueiro, terão que retirar esses posts do ar.