Isolamento dos EUA mostra estabilidade no sistema internacional. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 10 de janeiro de 2020 às 10:46
Presidente dos EUA, Donald Trump, durante discurso na Casa Branca Foto: BRENDAN SMIALOWSKI / AFP/12-12/-2019

Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor

ISOLAMENTO DOS EUA MOSTRA ESTABILIDADE NO SISTEMA INTERNACIONAL

Se há uma direção no imbróglio provocado pelo assassinato do general iraniano Qasem Soleimani, ordenado por Donald Trump, pode-se dizer que ela aponta para uma surpreendente estabilidade do sistema internacional de Estados. Não há risco de III guerra mundial e nem esteve em jogo o enfrentamento entre grandes potências. Tudo indica que voltamos ao período de “paz impossível, guerra improvável”, definição de Raymon Aron para a Guerra Fria. Parece o fim dos tempos, mas é um cenário melhor do que o vivido pelo mundo entre as décadas de 1990-2000. Vigorou naqueles tempos a pax americana, sem roteiro pré-definido e no qual o mundo dependia de decisões unilaterais.

O DRONE QUE DISPAROU meia dúzia de mísseis contra Soleimani teve o efeito contrário ao pretendido pela Casa Branca. Diferentemente dos ataques ao Afeganistão e ao Iraque, em 2001-03, na esteira da Guerra ao Terror pós-11 de setembro, a ação não provocou cumplicidade entre os principais membros da OTAN. Tampouco o presidente norteamericano obteve unanimidade em casa.

UMA PESQUISA realizada pelo jornal USA Today constata que 55% dos norteamericanos consideram que seu país está menos seguro depois do ato brutal da sexta (3). E a maioria democrata na Câmara colocou-se abertamente contrária à ação, enquanto prossegue o processo de impeachment contra o chefe do Executivo. França, Alemanha e Inglaterra evitaram fazer coro com o rito imperial. A frase “Hoje, vou pedir à OTAN que se envolva muito mais no processo do Oriente Médio”, proferida por Trump na manhã da quarta (8), é uma confissão desse revés. Mesmo com o bombardeio iraniano às bases de Ain Al-Asad e Erbil, o mandatário não se sentiu à vontade para promover retaliações. Expica-se; além de as bases estarem em processo de esvaziamento, a ação foi previamente anunciada, o que levou os EUA a retirarem seu pessoal dos dois locais. Ninguém morreu ou se feriu.

É BEM POSSÍVEL que os ataques tenham visado mais responder a um vasto clamor de vingança que se disseminou pela sociedade iraniana do que fustigar o poder imperial. As autoridades de Teerã sabem que uma agressão frontal aos Estados Unidos representa quase um suicídio, diante da total assimetria de forças. A possível morte de centenas de jovens militares americanos, de outra parte, teria o condão de inverter a bússola sobre quem seria o agressor nessa história. Trump parece ter deixado o assunto de lado.

POR INCRÍVEL QUE PAREÇA, o Irã é, até agora, o vencedor político do episódio. Além do isolamento do inimigo, Teerã atraiu para si a simpatia de grande parte do Oriente Médio – à exceção dos previsíveis Israel e Arábia Saudita – e criou um efeito teflon contra as denúncias de autoritarismo fundamentalista que com razão volta e meia lhe são dirigidas. Não bastasse isso, parecem ter ficado para trás os enormes protestos de massa que acomenteram o país nos dois últimos meses do ano passado, motivados por aumentos nos preços de combustíveis. Eles resultaram na morte de quase 150 pessoas.

APÓS O ATAQUE ESTADUNIDENSE, passou a valer a máxima de “união nacional contra o agressor externo”. O governo de Hassan Rouhani parece ter conseguido realizar uma versão árabe da Guerra das Malvinas, com sucesso. Como se sabe, em abril de 1982, a ditadura militar argentina, em seus estertores, ocupou militarmente o arquipélago tomado pela Grã Bretanha um século e meio antes. O decadente regime tentou ali sua última cartada, uma guerra patriótica que revertesse o crescente descontentamento popular. A derrota abreviou o fim da tirania militar, que cairia no ano seguinte.

O GESTO DE TRUMP foi além e conquistou outro tento. O sentimento de vítima acabou por passar o pano nas seguidas denúncias de corrupção do governo de Adil Abdul-Mahdi, no Iraque, e também apagar as mais de 400 mortes ocorridas também nos últimos meses em protestos maciços nas grandes cidades.

A PARTIR DA QUARTA (8), os principais atores em cena parecem querer encerrar a parte mais quente do espetáculo, passando a uma fase de acirramento do cerco econômico (Trump) e escalada verbal (Irã). As chances de Teerã fechar o estreito de Ormuz são mínimas e até agora a disparada dos preços do petróleo não ocorreu na escala anunciada pelos alarmistas.

HEDLEY BULL, examinando a cena internacional há mais de quatro décadas no seu “Sociedade anárquica”, destacou que a estabilidade do sistema é obtida num quadro de equilíbrio de poder planetário. Pensando em termos globais, é o que aparentemente está acontecendo. China e Rússia não entrarão diretamente na disputa. Bull sublinha que:

“CONSIDERE-SE (…) a função exercida na manutenção da ordem internacional pela posição especial das grandes potências. Elas contribuem para a ordem internacional mantendo os sistemas locais de hegemonia dentro dos quais a ordem é imposta a partir de cima, colaborando para administrar o equilíbrio global de poder e, de tempos em tempos, impondo sua vontade coletiva a outros Estados”.

ASSIM, SE HÁ UMA ESTABILIDADE geral no sistema global, isso não quer dizer que no subsistema regional a situação esteja controlada. Se para os atores envolvidos, o melhor negócio é parar por aqui, é possível que grupos extremistas – com ou sem ligação diretas com os Estados – tomem iniciativas que possam tensionar a região. A até agora misteriosa queda do jato ucraniano pouco depois da decolagem em Teerã coloca ainda pontos de tensão no quadro geral. Só a absoluta irresponsabilidade e falta de percepção das autoridades iranianas poderia levá-las a alvejar um alvo civil de um terceiro país sem relação direta com os fatos. Monta-se aqui uma guerra de informações que ainda pode crescer muito.

O ASSASSINATO DE SOLEIMANI não deve ser subestimado. Tratava-se de figura de proa do regime iraniano. De outra parte, há que se pensar com frieza. Sem desprezar o papel dos indivíduos da História, é preciso atentar para o fato de que forças armadas são dirigidas coletivamente. É possível que a liderança política e militar de Soleimani seja inigualável. Mas o aparato bélico não padecerá de falta de comando e haverá a manutenção da tática atual com sua substituição.

O EQUILÍBRIO DO TERROR, conceito também saído da Guerra Fria, é assustador. Mas é equilíbrio, é estável e previsivel.

UMA NOTA FINAL: Além de Israel e Arábia saudita, por motivos óbvios, quem deu apoio irrestrito ao tresloucado gesto de Donald Trump foi Jair Bolsonaro, a essa altura elevado á condição de pária global. Ao contrário de ganhar destaque, o brasileiro desponta firme para levar o país à total irrelevância na cena planetária. Além de prejudicar seriamente o comércio brasileiro com o exterior.