Isto não é um de golpe de Estado! Ce n’est pas une coup d’etat! Por Lenio Streck

Atualizado em 29 de fevereiro de 2024 às 9:52
Manifestantes bolsonaristas em 8/1 invadindo os prédios da Praça dos 3 poderes. Reprodução

Sim, o que aconteceu em 8 de janeiro e nos dias anteriores não é uma tentativa de golpe, assim como “isto não é um cachimbo…”. Eis um bom mote — com boas pitadas de ironia e sarcasmo — para levar para as salas de aula dos cursos jurídicos. Os limites dos sentidos e o sentido dos limites.

Claro que a discussão sobre o famoso quadro de René Magritte trata da relação “objeto e sua representação”. Mas aqui estou trazendo o quadro para outra dimensão: os limites da interpretação. E a interpretação desses limites. Há fatos? Ou até mesmo posso dizer, olhando para uma bicicleta, “isto é um ônibus”? Posso nominar as coisas conforme “meu olhar”? Tudo é relativo?

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A Traição das Imagens de René Magritte. Reprodução

Umberto Eco tem um capítulo que trata disso no belo livro Nos Ombros dos Gigantes, quando fala do niilismo e do relativismo. Se eu interpreto uma porta pintada em uma parede como sendo uma “porta verdadeira” e, tentando atravessá-la, quebro meu nariz, essa circunstância factual não é uma boa prova de que não há uma porta?

Há fatos? Ou só existem interpretações? O próprio Eco pergunta, com ironia, se o autor da famosa frase (Nietzsche, Sobre a Verdade e Mentira, de 1873) seria apenas uma interpretação. E ironiza: Deus pode estar morto, mas Nietzsche, não.

Com que base justificamos a presença de Nietzsche? Dizendo que é apenas uma metáfora? E se isso é, quem o enuncia? Não posso chamar o apoio da mesa de “perna” se não tiver uma noção não metafórica da perna humana e conheço a sua forma e função.

E acrescento: quando alguém diz que “embora o artigo 1022 do CPC diga que cabem embargos de declaração de qualquer decisão, estes não são cabíveis nos casos de decisões que inadmitem RESp e RE” (AgRg no AREsp 1.913.610/SC e AgRg no AREsp 1.411.482/SP), não se estaria tentando atravessar uma porta pintada em um “trampantojo” como se fosse verdadeira? Eis o problema do relativismo. Algo como “isto não são embargos”. Ou “isto não é um cachimbo”.

Com as ironias de Umberto Eco e o quadro de Magritte estacionamos na discussão acerca dos episódios que culminaram no dia 8 de janeiro. Há advogados e professores que sustentam que não houve tentativa de golpe, porque esse conjunto de atos e fatos não passaram de atos e fatos preparatórios… Ou meras cogitações… Ou seja, isto não é um cachimbo.

Há outros que, como eu, dizem que exatamente pelas características do crime de tentativa de golpe é que estamos diante de um cachimbo. Aliás, não existe o crime de golpe de Estado. Só existe o crime de tentar dar o golpe.

Tentativa de golpe é um delito de empreendimento. A reunião gravada é apenas um elemento. Vejamos o empreendimento no todo: fake news desmoralizando as urnas eletrônicas; reunião com embaixadores “denunciando” essa fraude; sabotagem da eleição feita pela PRF; instrumentalização da Abin; minuta de golpe (agora confessada por Bolsonaro em cima de um caminhão); reunião com comandantes militares discutindo o golpe; nota dos comandantes militares em 11 de novembro que vitaminaram o ânimo dos golpistas; a carta de 28 de outubro escrita por dois generais incitando ao golpe; a grande reunião gravada no palácio do governo; o golpe em marcha por meio de troca de mensagens; bomba no aeroporto; invasão da Polícia Federal; queima de ônibus nas ruas de Brasília; invasão violenta dos prédios dos três Poderes no dia 8 de janeiro e o general obstaculizando ordem de desmanche dos acampamentos na frente dos quarteis no dia da tentativa do golpe…

São essas as partes que compõem o cachimbo. O cachimbo não é um cachimbo “em si”. Não há uma “essência”. Mas o cachimbo é um produto de um “grande empreendimento”.

O que é isto — um golpe? O que é isto — um cachimbo? Mesmo que o cachimbo seja apenas uma representação de um cachimbo (Foucault escreve um livro sobre o tema), continua sendo a representação de uma dada coisa chamada “cachimbo”.

A pintura de um cachimbo não é um cachimbo, mas sim uma pintura — de um cachimbo. Não é uma bicicleta. Portanto, podemos falar sobre o cachimbo de vários modos, inclusive apenas no seu plano simbólico. Ou só de sua pintura. Mas, continuará sendo uma pintura de um cachimbo. Esse é o seu “mínimo é”. Ao menos em uma leitura não-relativista.

Isso ou quebraremos nossos narizes. E na democracia isso é muito perigoso. Corre-se o risco de termos uma multidão “desnarinizada”. Por achar que a porta… bom, isso não é auto evidente?

Publicado originalmente em ConJur

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