Jacqueline Muniz, a PM e a cloroquina. Por Valter Pomar

Atualizado em 4 de junho de 2021 às 21:23

 

Professora Jacqueline Muniz. Foto: Reprodução/Twitter

Recomendo a entrevista concedida por Jacqueline Muniz ao DCM, disponível aqui.

Jacqueline, segundo ela mesma explica na entrevista, tem vasto currículo como acadêmica e pesquisadora, tendo contribuido direta ou indiretamente em inúmeras iniciativas governamentais relacionadas a segurança pública. Este vasto currículo talvez explique a absoluta segurança com que ela trata de todos os temas abordados na entrevista.

Aliás, sua entrevista ao DCM é literalmente “de tirar o fôlego” e tem muitas passagens interessantes, seja pelo conteúdo propriamente dito, seja pelas referências Marvel-Atari-Power Ranger, sem falar nas “carteiradas” que Jacqueline Muniz distribui a torto e a direito. São tantas as carteiradas, que começa irritante mas termina sendo engraçado, embora me pareça totalmente desnecessário e, pelo menos no que me diz respeito, produza o efeito oposto ao desejado.

Entre as afirmações interessantes pelo conteúdo, destaco aquela segundo a qual os governantes são responsáveis pela ação das polícias, que as decisões policiais são em última análise políticas, que a técnica está no limite submetida à política. Sem falar na correta crítica às operações de GLO – inclusive nos governos Lula e Dilma – bem como a crítica ao que ocorreu na repressão cometida contra os manifestantes em Recife dia 29 de maio.

Isto posto, sou de opinião que Jacqueline Muniz acredita demais no poder taumatúrgico dos protocolos escritos e dos mecanismos de controle; e subestima demais certas limitações estruturais, que ela parece tratar como se fossem desculpas dadas por governantes que não querem gastar a “tinta de suas canetas”.

Não tenho dúvida que a maioria dos governantes – a começar pelos de esquerda – não usam os instrumentos que têm para controlar as polícias. Em palavras de Jacqueline Muniz, é gente que “abriu mão de governar”.

Mas a fixação de Jacqueline Muniz contra as “cloroquinas” – ou seja, contra um “mundo emancipado das evidências” – vai até um certo limite. Isto fica claro quando ela afirma que “a direita odeia a polícia” – típica afirmação “emancipada de evidência” histórica.

Outro exemplo: “se a esquerda encara a polícia como inimiga é porque ela gosta de milícia”. Esta frase – além de ser um bom exemplo do estilo retórico de Jacqueline Muniz – também vai contra as evidências. Não conheço ninguém de esquerda que goste de milícia. E boa parte da esquerda acredita que – para acabar com as milícias – é preciso outra polícia. A polícia que está aí não é nem será capaz de fazê-lo.

Por outro lado, parte da esquerda não “gosta” de polícia (militar ou qualquer outra) pelo motivo citado na entrevista ao DCM pela própria Jacqueline: “toda polícia defende o status quo, é a razão de sua existência, produzir, preservar, manter”. Por este mesmíssimo motivo, a maior parte da direita gosta de polícia.

Tenho a impressão que Jacqueline Muniz comete estas e outras violências retóricas contra as evidências empíricas, porque ela se deixa empolgar pelos seus próprios argumentos. Ela parece achar tão óbvio (e tão brilhante…) o que ela fala e defende, por exemplo sobre a necessidade do poder civil controlar a polícia, que fica parecendo mesmo que as coisas não vão bem porque os governantes “faltaram na aula sobre Maquiavel e de Hobbes” e por isso estariam “brincando de política”. Sendo assim, a solução passaria pelos políticos reconhecerem o “acervo de 40 anos de reflexão” acadêmica, científica, sobre o tema.

Toda vez que escorrega para este jeito “iluminista” (alguém mais irritado talvez escreveria também “professoral-normativo-tecnocrático-positivista”) de pensar – de que é exemplo a frase “se é para ser ideologizante eu não precisaria ter feito um doutorado” – Jacqueline Muniz na prática passa a contrariar tudo o que ela mesmo falou ao DCM sobre a relação entre política e técnica, entre política e polícia.

Pois um dos fatos empíricos é: a “técnica” adotada pelas polícias está à serviço de uma determinada política. Não se trata, portanto, propriamente de um “equívoco” técnico, se trata principalmente de uma “técnica” que deriva de opções políticas. Acontece ademais que não se trata de opções políticas tomadas – hoje – por este ou aquele governante. Se trata de um acumulado de décadas, as vezes secular. Portanto, embora os atuais governantes não precisem ser e não devam ser marionetes das polícias, é preciso saber que se eles decidirem mudar determinadas “técnicas”, eles vão rapidamente descobrir que – como diria Jacqueline Muniz – “o buraco é mais embaixo”: no caso em tela, vão descobrir que a polícia militar foi criada para ser um braço das forças armadas, numa lógica de tutela sobre o poder civil e que trata o povo como inimigo em uma guerra. É por isso que não basta cumprir as leis, não basta cumprir o manual, não basta treinamento, não basta governar, é preciso ir além. É preciso inclusive acabar com a PM.

Jacqueline Muniz considera que isto é “gargalhante”. E afirma o seguinte: “Entendo que se fale isso no palanque, mas é literalmente uma cloroquina, porque quem grita pelo fim da PM também grita pela unificação”.

Diferente de Jacqueline Muniz, eu não “entendo” que se fale – nem em palanque, nem em lugar nenhum – algo que não se pretenda cumprir. Portanto, penso que ou bem a palavra de ordem “acabar com a PM” é correta ou bem não é correta. Se não é correta, não deve ser defendida em lugar nenhum.

No mérito, Jacqueline Muniz considera esta palavra de ordem “literalmente uma cloroquina”, porque “quem grita pelo fim da PM também grita pela unificação”. Penso diferente.

Comecemos pelo começo: a PM não existiu sempre. Portanto, pode deixar de existir. E a PM não é uma abstração, a PM é como ela é: uma força auxiliar das forças armadas, uma corporação militar que não está de fato submetida aos governantes civis, uma polícia que trata o povo como se trata inimigos durante uma guerra e – em decorrência de todo o anterior – uma importante base de apoio do bolsonarismo.

Não considero possível, para nós de esquerda, conviver com a PM como ela é; e não considero possível “reformar” a PM. Resta, na minha opinião, uma alternativa: acabar com a PM. E modificar totalmente a política de segurança pública.

Isto exige a “unificação”? Em certo sentido, sim, por exemplo no que diz respeito ao caráter civil e, também, no sentido de que todo “órgão policial deverá se organizar em ciclo completo, responsabilizando-se cumulativamente pelas tarefas ostensivas, preventivas, investigativas e de persecução criminal”. [A esse último respeito, aliás, recomendo ouvir os comentários críticos de Jacqueline Muniz a respeito, pois sua opinião sobre o “ciclo” é muito reveladora.]

Acabar com a PM exigiria a unificação, no sentido de criar uma só corporação? Não necessariamente, como se pode ver em parte, por exemplo, na proposta Proposta de Emenda à Constituição n° 51, de 2013, que pode ser lida aqui:

https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/114516

Novamente, Jacqueline Muniz desconhece as evidências, atribuindo a todos os defensores do fim da PM uma posição que não é de todos. Eu por exemplo sou a favor do fim da PM e sou a favor da “pulverização” nos marcos de um modelo civil. Possibilidade que a própria Jacqueline conhece e cita.

Ainda a respeito da “unificação”, ela dá um exemplo assaz curioso, mais apropriado para um discurso de palanque. Diz que em São Paulo tem 100 mil na PM e 30 mil na Polícia Civil; e pergunta qual seria o modelo de gestão capaz de dar conta de 130 mil policiais. E lacra: “quem é que manda?”

Obviamente, a pergunta sobre “quem manda” é tão difícil de responder no caso de 100 mil quanto no caso de 130 mil policiais. Aliás, tudo o que Jacqueline Muniz fala sobre as dificuldades decorrentes da escala valem para o tamanho gigantesco da PM atualmente existente, ou para as forças armadas. Minha impressão, portanto, é que no fundo ela considera a militarização meio que insuperável porque só a disciplina militar estrito senso seria capaz de manter a ordem em corpos policiais tão numerosos.

Talvez seja por isso que ela – contra a aparente falta de lógica numérica de seu exemplo – acredite que criar uma única polícia alteraria qualitativamente o problema do “quem manda”. O problema não seria controlar 130 mil no lugar de 100 mil, o problema seria controlar 130 mil pessoas abrindo mão dos métodos utilizados por quem consegue “controlar” 100 mil: disciplina militar. Claro que este tipo de unificação atenderia aos interesses de uma parcela dos conservadores. Mas Jacqueline deveria levar em consideração que outro tipo de unificação é possível – e não é preciso desenhar, pois ela própria fala disso em sua entrevista.

Não sou contra a disciplina militar, muito antes pelo contrário. Mas disciplina militar é necessária no lugar certo e na hora certa. Trazer a lógica militar para o terreno da segurança pública – seja aqui, nos EUA, no México, na Espanha ou na França – dá no que sabemos. Mas no caso do Brasil há um plus: segundo “nossa” Constituição as PMs são forças auxiliares das forças armadas e estas agem como “poder moderador” sobre os governos civis. Não dá para discutir o tema das PMs sem discutir este “detalhe”, que – contra todas as evidências – não é levado em conta por Jacqueline Muniz na entrevista ao DCM.

Na minha opinião, o problema principal está em outro lugar. Não se trata principalmente de um problema técnico, de gestão, de número. O principal problema do “quem manda” é político e está ligado a natureza da instituição, de como ela se formou, para o que ela existe, a que poderes fáticos ela se subordina.

O problema estritamente técnico pode e deve ser resolvido com cadeias de comando, treinamento e protocolos. E essa maneira de resolver o problema técnico deveria valer tanto para as forças armadas, quanto para as polícias atualmente existentes, assim como para uma eventual polícia unificada, bem como para uma multiplicação de polícias civis. Mas nosso problema não é principalmente este; nosso problema é principalmente político, e este – repito – não deriva principalmente do tamanho da instituição, e sim de sua natureza: a militarização da ação policial tende a converter a segurança pública em uma ação de guerra contra a maioria do povo, o que é especialmente verdadeiro no caso do Brasil, em particular nestes tempos de Bolsonaro.

Jacqueline diz que o tamanho da “autonomia decisória” da polícia é decidido pela “sociedade”: quem autorizou o fuzil, a metralhadora, diz Jacqueline Muniz, “fomos nós os eleitores”. A frase é tão exata e precisa – conforme as evidências – quanto seria dizer que “fomos nós os eleitores” que elegemos o cavernícola. Ademais, na prática este tipo de raciocínio – atribuir este tipo de responsabilidade a “nós, os eleitores” – serve para legitimar como supostamente “democrática” as cadeias reais de subordinação das PMs (e outras polícias) aos interesses de uma parte da sociedade, que deseja e usa esta capacidade coercitiva contra a outra parte da sociedade. Acontece que Jacqueline acha que “o que o aqui e agora é resolvido pela polícia”, que só depois os processos sociais produzem efeitos de médio e longo prazo”, mas se você “não tiver o administrador de conflitos em tempo real, o forte ganha sempre do fraco”, com as “razões” de cor, classe, gênero e orientação sexual vencendo em prejuízo “dos mais vulneráveis”. Ou seja: nesta “narrativa”, a polícia seria um instrumento não para garantir o status quo, como dito antes por ela mesma, mas sim um instrumento para garantir certa justiça social! No que tem de verdadeira, este argumento me lembra o que ouvi certa vez de um dirigente do PT, recusando enfrentar o tema da dívida pública e usando como argumentando que isso prejudicaria os pequenos investidores.

Jacqueline diz que se “acabar com a PM vai ter que por outro troço no lugar”. É um raciocínio revelador, pois ele pressupõe que existe um “lugar” que não se altera, que precisa ser preenchido. Óbvio que quem raciocina assim não consegue acreditar em alternativa.

Mas Jacqueline vai além: ela afirma que a PM seria “mais transparente do que a polícia civil”, que seria uma polícia burocrática, de gabinete. E acrescenta: “sabemos imaginar o que um PM faz”, enquanto não saberíamos o que um cara da “inteligência” faz. Já ouvi muito elogio às polícias militares, mas “transparência” é a primeira vez. Claro, a depender da comparação, qualquer conclusão é possível.

Enfim, recomendo assistir a entrevista inteira de Jacqueline Muniz. Resumindo, minha principal diferença com o que ela diz respeito ao argumento segundo o qual “o fim da PM é um grito bonito”, um grito que vem “desde 1988”, que “não vai acontecer”, “não vai passar no congresso”, porque duvido que “algum governante abra mão de poder”. Este tipo de raciocínio é profundamente conservador: sempre foi assim, assim sempre será. Aceito como verdadeiro, nos conduzirá a conclusão de que não podemos mudar nada. Não por acaso o raciocínio vem acompanhado da seguinte frase: “quem vai fazer o policiamento, milícia, PCC, Família do Norte?” Este tipo de frase seria normal ouvir de alguém que não é progressista, nem de esquerda. Mas é compreensível: nos tempos que vivemos, certas concepções conservadoras e um estilo polêmico “lacrador” têm ganho espaço dentro da esquerda. Isso ficou claro no debate travado no Diretório Nacional do PT, acerca do programa de reconstrução e transformação, especificamente no debate sobre as polícias e sobre as forças armadas. Debate no qual as posições de Jacqueline mostraram ser muito influentes.

Talvez seja por isso que nesta entrevista ao DCM, motivada pela ação da PM em Recife, Jacqueline Muniz tenha gasto tanto tempo atacando algumas posições minoritárias que existem na esquerda acerca da PM. No fundo, no fundo, a entrevista de Jacqueline Muniz funcionou como uma vacina em defesa da PM tal-como-deveria-ser-segundo-as-aulas-que-eu-dou, no exato momento em que a PM realmente existente cometeu mais uma das suas.

Ou não é estranho que seu alvo principal, na entrevista ao DCM, tenham sido os que – segundo ela – defendem o “devir que nunca vai acontecer”, este “delírio cloroquinado” que seria acabar com a PM, estas “frases de efeito que não se colocam em pé” vindas de pessoas que “faltaram nas aulas”.

Não tenho dúvida nenhuma de que a esquerda precisa estudar e pesquisar muito mais os temas da segurança e da Defesa, entre outros. Mas ter frequentado muitas “aulas” e ter formação especializada não quer dizer tanta coisa como nós professores acreditamos. As vezes muito antes pelo contrário. FHC e Lula que o digam.

Também não tenho dúvida nenhuma acerca da importância do imenso conhecimento acumulado pelos especialistas, mas como a guerra, as grandes decisões políticas acerca da segurança pública não são nem podem ser monopólio dos especialistas. Até porque boa parte destes especialistas – mesmo quando não se dão conta disto – só faz embalar em papel-de-presente-brilhante certos lugares comuns do pensamento dominante, tipo: as posições da esquerda seriam “superficiais”, adeptas da “terra arrasada”, do “8 ou 80”.

Com todo o respeito devido à “arte da negociação com coercitividade”, o meu ponto é bem simples: se a esquerda não estiver disposta a “arrasar” com algumas instituições (na defesa, na segurança, na comunicação, no sistema judicial, no setor financeiro), vamos terminar sendo (novamente) arrasados. Claro que isto não é simples nem fácil de fazer. Mas, por sorte, não é preciso frequentar “aulas” para descobrir o porquê nem o como se faz. Basta olhar as evidências: a PM tem que acabar.