O grande Jair Rodrigues foi maior do que ele mesmo em “Disparada”

Atualizado em 9 de maio de 2014 às 0:15

 

Jair Rodrigues era tido como o precursor do rap nacional por “Deixa Isso Pra Lá”, de 1964. Parte da letra era declamada (“Deixa que digam, que pensem, que falem, deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é tem? Eu não tô fazendo nada, você também”). Muitos rappers o reverenciavam como mestre. O gestual, com as palmas das mãos para cima e para baixo, marcou época.

Era um sambista notável, dono de um enorme carisma no palco. Entre 1965 e 1967, apresentou o programa “O Fino da Bossa” com Elis Regina. Os dois eram acompanhados pela orquestra do maestro Ciro Pereira e pelos monstros do Zimbo Trio. Sua versatilidade — e o fato de vir do interior de São Paulo — faria dele, também, um grande cantor de música sertaneja. Antes da infestação de duplas, gravou “O Menino da Porteira” e “Majestade o Sabiá”.

Mas nada superará sua interpretação de “Disparada”. Se tivesse feito só isso, se fosse o chamado one hit wonder, já seria suficiente para inscrevê-lo na história da MPB.

A toada caipira de Geraldo Vandré e Théo de Barros foi o ponto mais alto de sua trajetória e ele sabia disso. Há artistas que se ressentem da obra que os projetou (Bob Dylan, para ficar num caso, propositadamente tornava “Blowin’ In The Wind” indecifrável ao vivo).

Jair nunca teve esse problema. “É a música da minha vida. Quando ela surgiu, e eu venci o festival, liberou geral. Eu pude gravar de tudo”, disse à revista Rolling Stone.

“Disparada” concorreu ao Festival da Record de 1966. Tinha um forte conteúdo político (“agora sou cavaleiro, laço firme, braço forte, num reino que não tem rei), fruto da militância de Vandré nos meios estudantis.

Coube ao apolítico Jair uma apresentação antológica. A canção certa, no lugar certo, na época certa, pelo homem certo. Sua energia, o estilo arrebatador, o vozeirão, enlouquecem a plateia. Graças ao YouTube, você não precisa mais confiar na memória de Nelson Motta para atestar isso.

A grande disputa se deu com “A Banda”, a marchinha que Chico Buarque defendeu com Nara Leão. Se esta tinha referências sutis à ditadura (“Mas para meu desencanto, o que era doce acabou”), “Disparada” mandava o lirismo, como diria Aloysio Nunes Ferreira, para a pqp.

O resultado foi empate. O crítico Zuza Homem de Mello contaria, anos depois, que, na verdade, “A Banda” ganhou por sete votos a cinco dos jurados. Nos bastidores, porém, Chico avisou que, se “A Banda” fosse a campeã, ele devolveria o prêmio em público. Chico, acertadamente, achava “Disparada” melhor. Não só ele, claro.

Jair Rodrigues se apropriou da música naquela noite. É impossível imaginar outra pessoa cantando aqueles versos. Zé Ramalho, Zizi Possi, Sérgio Reis, Daniel, o próprio Vandré — todos eles tentaram e todos ficaram minúsculos diante de Jair Rodrigues.

Jair ainda faria uma bela carreira, formando um público fiel que lotava seus shows. Naquele dia em 66 ele foi maior do que ele mesmo, mas isso nunca o incomodou. Morreu na sauna de sua casa em Cotia, de infarto. Como disse Fagner, numa definição simples, mas precisa, ele foi “uma lição de alegria”.