‘Jamais mostre Montaigne para sua mulher’ (Ou: Era uma vez na Rainbow Road)

Atualizado em 21 de novembro de 2012 às 20:45

 

Thunder e Pedro estavam disputando corridas de Mario Kart no Wii. Eram velhos amigos, e estavam no apartamento de Pedro. Entre todos os circuitos do Mario Kart aquele de que mais gostavam era a Rainbow Road, pela beleza extraordinária da paisagem e pela habilidade necessária para percorrer o caminho. A amizade entre os dois lembrava a definição clássica e sublime de Montaigne para os amigos: uma costura entre almas tão forte que não se vê a linha. Montaigne escreveu suas palavras eternas sobre a amizade nos seus Ensaios, e a razão era homenagear um amigo morto, Lá Boètie, autor de uma pequena grande obra chamada Tratato sobre a Servidão Voluntária.

Tão forte nas adversidades, com tamanho preparo para enfrentar “o perpétuo vai-e-vém das elevações e quedas”, para usar uma expressão de Sêneca, Montaigne admitiu com pungência que a morte de seu amigo o atirou numa noite longa, fria e escura.

Thunder e Pedro eram devotos de Montaigne e seus Ensaios, bem como de A Mulher do Lado de Truffaut, Os Maias de Eça, O Beijo de Klimt, In My Life dos Beatles e o cheeseburger do Hamburguinho. Também eram devotos de Rivelino e do Corinthians. Achavam que Rivelino tinha sido melhor que Pelé, e eram capazes de passar horas na defesa apaixonada dessa tese contra todas as estatísticas.

Pedro em breve partiria para uma demorada viagem.

“Pedro”, disse Thunder em sua voz estentórea de Fred Flintstone depois de bater mais uma vez o amigo na Rainbow Road.

“Hmmm.”

“Estou feliz mas estou triste”, disse Thunder.

Lol. Pedro riu. Tirou um caderninho de anotações do bolso e escreveu a frase de Thunder.

“Um dia vou usar essa frase em alguma coisa que escrever”, disse Pedro. “Para que não pareça imitação, vou inverter as coisas. Vou dizer: estou triste, mas estou feliz.”

Iam correr agora na Moonview Highway, outra prova exigente do Mario Kart. E outra paisagem deslumbrante: uma corrida noturna, cheia de luzes na escuridão desafiadora, e uma lua que parecia ao mesmo tempo zombar dos pilotos desastrados e saudar os hábeis.

“Thunder.”

“Hmmm.”

“Sua frase. Me lembrou aquele ensaio do Montaigne. Como uma mesma coisa nos faz rir e chorar. É o capítulo 38, se não me engano.”

“38. Acertou. É um dos meus prediletos.”

Terminada a prova na Moonview, com mais uma vitória de Thunder, Pedro se levantou e foi apanhar seu exemplar dos Ensaios. Queria rever uma passagem específica do capítulo 38. Mas antes fez uma reflexão sobre Montaigne e as mulheres.

“Thunder.”

“Hmmm.”

“Você já deu Montaigne para alguma namorada ler?”

“Nem me fale”, disse Thunder. “Foi péssimo. Ela abominou as coisas que o Montaigne escreveu sobre as mulheres. Um machista idiota e arrogante. Foi como ela chamou o Montaigne.”

“Eu ia dizer exatamente isso. Nunca mostre Montaigne para sua mulher.”

Pedro abriu na página cujo trecho queria ler.

“Aqui, Thunder”, apontou com os dedos para o parágrafo que buscara e encontrara. Pediu a Thunder que lesse em voz alta em seu vozeirão.

“Nenhum de nós pode vangloriar-se de não ter, não obstante o prazer que auferir de uma bela viagem, sentido faltar-lhe a coragem de deixar família e amigos”, escreveu Montaigne. “E, se não chegou a derramar lágrimas de verdade, não foi sem um aperto no coração que pôs o pé no estribo.”

“É exatamente como me sinto diante da viagem que eu vou fazer”, disse Pedro. “Pé no estribo. É uma imagem e tanto, não é?”

“Pedro”, disse Thunder. “Um amigo ausente. Isso dói. Não temos tantos amigos assim de verdade.”

Thunder estava com os olhos úmidos. Passou por sua mente uma canção de Ed Harcourt. We’ll meet again, don’t know when, don’t know where, but I know we’ll meet again some sunny day.

“Vou sentir sua falta”, disse Thunder em seu vozeirão momentaneamente enfraquecido.

“Thunder”, disse Pedro. “Uma coisa eu te garanto. Vou treinar Mario Kart direto enquanto estiver fora. Não agüento mais perder para você.”

E então partiram para mais uma prova na Rainbow Road.