Jesse Souza e Leandro Karnal no Jornal da Cultura: um duelo da honestidade contra esperteza. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 10 de maio de 2018 às 10:49
Karnal e Jessé

O comentário de Jessé Souza no Jornal da Cultura sobre a Lava Jato é um alento para quem já tinha perdido a esperança de ver na TV aberta — e mesmo a fechada — algum lampejo de pensamento original — 99% dos programas são feitos de obviedades, senso comum. Como escreveu Paulo Henrique Amorim, no Conversa Afiada, Renata Lo Prete, por exemplo, no Jornal da Globo e no programa Painel da Globonews, se especializou em dar complexidade ao óbvio.

É uma escola, que contaminou jornalistas, sociólogos e entrevistados que se apresentam como especialistas de qualquer coisa. Em matéria de falta de originalidade, ninguém supera os chamados cientistas políticos. Quem diz isso são dois cientistas políticos, desses que quase não se vê na televisão. Céli Regina Jardim Pinto, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, considera que cientista político de TV “virou genérico de estultice”.

“Dava vergonha”, disse ela a respeito da participação do cientista político Rubens Figueiredo como entrevistador do pré-candidato a presidente pelo PSOL Guilherme Boulos, no programa Roda Viva. Luís Felipe Miguel, da Universidade de Brasília, o pioneiro na criação de disciplinas acadêmicas sobre o golpe, foi além:

“Você conta para alguém que é cientista político e a pessoa já te olha esperando que você comece a soltar um monte de cretinices”, afirmou. “Tinha um tempo em que a especialidade do cientista político na TV era desfiar obviedades como quem está descobrindo a América. Já vi  muita análise de eleição que, no final das contas, dizia mesmo era que o candidato com mais votos ganhava do candidato com menos votos. Hoje, eles continuam dizendo a mesma coisa, só que virou ficção científica. No nosso país, hoje, o candidato com mais votos não ganha, é posto na cadeia”, acrescentou.

Referências como estas a Lula muito raramente se verá na TV. Para Celi Pinto, falta preparado aos profissionais — tanto entrevistadores quanto entrevistados. “Não se trata nem de posição política ideológica, mas de ignorância, burrice, falta de condições mínimas”, disse Céli Pinto.

Pode ser em alguns casos, mas, no geral, não é ignorância, mas oportunismo. Quem está na TV, seja como entrevistador, entrevistado ou comentarista, tem medo de se arriscar porque, ao contrariar a linha editorial da casa, pode ir para a geladeira ou não ser nunca mais convidado para participar dos programas.

Conheço uma jurista que participou duas vezes do Jornal da Cultura como comentarista. Na segunda vez, ao analisar uma reportagem sobre bancos, disse que as cobrança de tarifas eram extorsivas e defendeu maior tributação sobre os lucros dos banqueiros. Foi riscada da agenda de convidados do jornal, que era patrocinado por um banco.

Ser original tem um custo não só na TV. Jessé Souza, por exemplo, ao analisar a formação cultural e, por consequência, econômica do Brasil, desmontou as teorias de dois ícones do pensamento acadêmico brasileiro: Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Em síntese, ele concluiu, não é a cultura portuguesa a matriz da formação cultural do Brasil, como dizem os pensadores clássicos, mas a herança escravocrata.

Quando eu o entrevistei, antes do lançamento de “A Elite do Atraso”, perguntei se ele não era retaliado na universidade por confrontar duas pessoas da “Santíssima Trindade” da sociologia brasileira — o outro é Caio Prado. “Tenho problemas”, disse. “Mas  não posso abandonar o compromisso com a pesquisa científica”, afirmou.

Foi essa mesma coragem que levou Jessé a dizer, em horário nobre da TV aberta, que a Lava Jato é “o maior engodo da história do Brasil”. A apresentadora do Jornal da Cultura perguntou: “Engodo por quê?”

“Porque é uma mentira”, disse o sociólogo. “É uma justiça seletiva. Quando as pessoas quiseram denunciar os crimes do mercado financeiro, ninguém quis ouvir. Que Justiça é esta?”.

Teve mais:

“Emílio Odebrecht falou na sua delação sobre a Rede Globo, ninguém quis investigar. E Por que a Petrobras e por que a Odebrecht? Porque essas duas empresas são extremamente importantes para o ataque o capitalismo financeiro americano, que destruiu os Brics e o processo de inserção autônoma do Brasil, junto com Rússia, China, etc. Quer dizer: Destruir empresas de vanguarda como a Petrobras e a Odebrecht — que nenhum americano faz. Nenhum americano é idiota de acabar com milhões de empregos de suas grandes empresas. Isso não é feito. Isso só é feito aqui.

A apresentadora pediu socorro a Leandro Karnal, um comentarista antigo na casa. Ele disse o óbvio: defendeu a Lava Jato e falou em propinoduto na Petrobras.

Karnal continuará com sua cadeira cativa no Jornal da Cultura e em outros programas de TV.

Jessé corre o risco de nunca mais ser convidado — talvez seja convidado mais algum tempo, para não parecer à TV Cultura que censura os comentaristas –, mas o risco, levando em consideração o histórico das TVs, efetivamente existe.

Assim são os veículos de comunicação. Karnal e os demais não são ignorantes. São apenas espertos que entenderam que o negócio da mídia clássica, a velha imprensa, é manter o público na ignorância. Assim se ganha mais dinheiro. Todos eles, inclusive os especialistas do engodo.