“Jesus Cristo da Mangueira” agita Carnaval antes mesmo do desfile. Por Sidney Rezende

Atualizado em 19 de janeiro de 2020 às 19:29

 

Do blog de Sidney Rezende.

A arte por essência tem a obrigação de ultrapassar limites e estimular a imaginação ao extremo. Caso contrário, corre-se o risco de nem ser arte e, o que pior, algo de segunda, pastiche transformado em “mais do mesmo”.

Como seria se Jesus Cristo retornasse aos dias de hoje, e o seu berço fosse o morro da Mangueira? A resposta a esta pergunta é o centro de uma polêmica que se libertou dos bastidores e parece ser o furacão mais virulento deste início de 2020.

A temperatura pré-carnavalesca cresceu velozmente nos últimos dias. O clima está tenso. Uma nota curta de Ancelmo Góis sintetizou o que anda acontecendo:

“Depois do especial de Natal do Porta dos Fundos que mostrou um Cristo gay, setores obscurantistas espalharam pelas redes que a Mangueira iria fazer o mesmo no desfile deste ano, já que o enredo “A verdade vos fará livre” é sobre o filho de Deus. Diante da “onda de notícias falsas”, o carnavalesco Leandro Vieira denunciou “essas maldades”, em suas redes:
— Minhas tintas são plurais, diversas, dotadas de responsabilidade, beleza e respeito”.

O pesquisador João Gustavo Melo foi um dos que saíram em defesa da liberdade de criação. Ele alerta para o risco do movimento conservador que agora move suas baterias contra a Mangueira:

O carnavalesco Mauro Quintaes defendeu a liberdade de criação e a importância de Leandro Vieira para o Carnaval brasileiro, embora não fosse direto quanto ao que motiva a agitação:

Além do talento e excelência de Leandro Vieira existe um outro fator importante para que ele prossiga sua carreira de sucesso: a chancela da direção da Estação Primeira.

Na época de renovação do seu contrato de 2018 para 2019, o presidente da agremiação Chiquinho da Mangueira demonstrou sua confiança publicamente: “Minha relação com o Leandro sempre foi de diálogo e de palavra e por isso hoje tenho o prazer de informar a toda nação mangueirense que ele estará com a Mangueira nos brindando com mais um belíssimo Carnaval. Ele se comprometeu a estar comigo até quando eu estiver presidente e nossa contrapartida é dar as melhores condições possíveis de liberdade de criação ao artista que ele é”, disse Chiquinho.

A união que liga o artista e a direção será testada neste Carnaval com a polêmica que parece crescer como enchente rua abaixo. O que mais incomoda aos conservadores é o enredo e a letra do samba que a Mangueira pretende apresentar neste Carnaval 2020. Se você ainda não conhece, clique abaixo:

Religiosos e pessoas ligadas à igrejas de diferentes denominações falam que a Mangueira está de braços dados com a blasfêmia. O que eles temem que é Cristo seja ridicularizado.

Já surgiu nas redes até pedido de abaixo-assinado contra a letra do samba da Mangueira:

O que diz Leandro Vieira?

O carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, publicou em suas redes sociais um texto contestando “inverdades” sobre o enredo da Mangueira. Ele disse que há desconhecimento total sobre o projeto que realiza de forma sigilosa para a Mangueira.

O carnavalesco destacou que a “verdade é que, como previsto, na tentativa de ‘inventar mil pecados’, está refletida a frustração de uma gente que teme que o desfile de uma escola de samba comunique de forma mais vigorosa, popular e potente a face – ou melhor, as faces – de Cristo, do que aqueles que o domesticaram para lhe colocar na condição de fiador de interesses econômicos e políticos.”

Tô vendo uma onda de notícias falsas sobre as minhas propostas para o Carnaval de 2020 sendo espalhadas pelas pelos grupos de ZAP e redes sociais. Fazer da biografia de Cristo a matéria artística para a realização do meu Carnaval tá sendo uma experiência incrível porque as tintas escolhidas são as melhores. Minhas tintas são plurais, diversas, dotadas de responsabilidade, beleza e respeito.

As inverdades propagadas são muitas. Todas, baseadas no mesmo princípio: o desconhecimento total do que é o projeto que realizo de forma sigilosa e a incapacidade de vislumbrar o que apenas a minha cabeça guarda na totalidade.

Tô com muito trabalho e não tô com tempo para estar nas redes sociais nesse pré Carnaval. Gostaria de dizer de forma breve que apenas o que é dito por mim em entrevistas com falas públicas ou divulgado nas minhas redes – ou nas redes sociais da @mangueira_oficial – pode ser considerado verdade. Qualquer declaração que não seja oficial que especule o conteúdo do meu trabalho só encontra respaldo na maldade de gente limitada que, além de desconhecimento, não suporta a potência estética, histórica, cultural e social que o Carnaval e o desfile de uma instituição do tamanho da Mangueira pode alcançar. A verdade é que, como previsto, na tentativa de “inventar mil pecados”, está refletida a frustração de uma gente que teme que o desfile de uma ESCOLA DE SAMBA comunique de forma mais vigorosa, popular e potente a face – ou melhor, as faces – de Cristo, do que aqueles que o domesticaram para lhe colocar na condição de fiador de interesses econômicos e políticos.

O enredo oficial

O enredo divulgado pela escola em 2019, traz pistas de como será o Carnaval deste ano:

“Nasceu pobre e sua pele nunca foi tão branca quanto sugere sua imagem mais popular. Sem posses e mais retinto do que lhe foi apresentado, andou ao lado daqueles que a sociedade virou as costas oferecendo-lhes sua face mais amorosa e desprovida de intolerância. Sábio, separou o joio do trigo, semeou terrenos férteis e jamais deixou uma ovelha sequer para trás.

Exaltou os humildes e condenou o acúmulo de riqueza. Insurgiu-se contra o comércio da fé e desafiou a hipocrisia dos líderes religiosos de seu tempo. Questionou o poder do império romano e condenou a opressão. Seu comportamento pacifista e suas ideias revolucionárias inflamaram o discurso dos algozes que passaram a excitar o estado a decretar sua sentença. O fim todos sabemos: Foi torturado, padeceu e morreu.

Séculos depois, sua trajetória ainda anda na boca dos homens e em seu nome, para o mal dito “de bem” – e com rígido contorno de moralidade – muito já foi realizado de forma estanque ao  sentido mais completo do AMOR por ele difundido. O amor incondicional, irrestrito e ágape.

Por isso, quando preso à cruz, ele não pode ser apresentado como um. Ser um, exclui os demais. Preso à cruz, ele é a extensão de tantos, inclusive daqueles que a escolha pelo modelo “oficial” quis esconder.  Sendo assim, sua imagem humana não pode ser apenas branca e masculina. Na cruz, ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que professa a fé apedrejada e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você teme no momento em que ele lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a extensão de seu corpo.

Sem anunciar o inferno, ele prometeu que voltaria. Acredito que, se ele voltasse à terra por uma encosta que toca o céu – para nascer da mesma forma: pobre e mais retinto, criado por pai e mãe humilde, para viver ao lado dos oprimidos e dar-lhes acolhimento – ele desceria pela parte mais íngreme de uma  favela qualquer dessa cidade. Talvez na Vila Miséria*, região mais alta e habitada do Morro de Mangueira. Ali, uma estrela iluminaria a sala sem emboço onde ele nasceria menino outra vez. Então, ele cresceria entre os becos da Travessa Saião Lobato*, correria junto das crianças da Candelária*, espalharia suas palavras no Chalé* e no “Pindura” Saia*. Impediria que atirassem pedras contra os que vivem nas quebradas e nos becos do Buraco Quente*. Estaria do lado dos sem eira e nem beira estranhando ver sua imagem erguida para a foto postal tão distante, dando as costas para aqueles onde seu abraço é tão necessário.

Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. Teria a morte incentivada pelas velhas ideias que ainda habitam os homens. O amor irrestrito ainda assusta. A diferença jamais foi entendida. Estender a mão ao oprimido ainda causa estranheza. Seria torturado com base nas mesmas ideias.

Morto, ressuscitaria mais uma vez e, por ter voltado em Mangueira, saudaríamos a possibilidade de vermos seu sorriso amoroso novamente com o que aqui fazemos de melhor. Louvaríamos sua presença afetuosa com samba e batucada. Vestiríamos todos nossa roupa mais cara. Aquela de paetês e purpurina. De cetim com joias falsas. Desfilaríamos diante dele e, em seu louvor, instauraríamos a lei que rege nossos três dias de folia. Sem pecado, irmanados e em pleno estado de graça.

Explicaríamos nessa ocasião que a cruz pesada que carregamos como fardo ao longo do ano nos é tirada das costas no Carnaval. Por ter vencido a morte e sem ter o peso de sua cruz nas costas, ele sorri para a baiana que desce para se apresentar. Ele acena com a mão direita para a passista que amarra a sandália, enquanto a mão esquerda dá a benção para o ritmista que rompe o silencio com a levada de seu tamborim.

Fitando o céu, ele parece ver algo ou alguém acima da linha do horizonte . Sorri, como se pego em meio a brincadeira e se soubesse humano também.  Entendendo que ali ele é rebento e que todos, sem exceção, são seu rebanho; ciente de que o pecado, por vezes, é invenção para garantir medo e servidão, ele pede para que toda essa gente que brinca anuncie enquanto canta sorrindo: A VERDADE VOS FARÁ LIVRE.

Vila Miséria* Travessa Saião Lobato* Candelária* Chalé* Pindura Saia* Buraco Quente* – Todos os nomes referem-se a localidades ocupadas pela comunidade do Morro da Mangueira.