O dia em que John morreu

Atualizado em 15 de novembro de 2012 às 10:11

Ainda hoje lembro como nós que o amávamos tanto tentávamos nos consolar uns aos outros

John Lennon

Long, long time ago, but I still can remember.

O verso inicial de American Pie, de Don McLean, sempre me ocorre quando penso em John Lennon.

Muito tempo atrás, mas ainda lembro o dia em que ele morreu.

Eu morava ainda na casa de meus pais, no Previdência, em São Paulo. Tinha 24 anos. Era manhã. Papai saíra com meu irmão temporão Kiko, de 12 anos. Eles ouviram a notícia no rádio, como era comum naqueles dias. Kiko me contou.

Os beatlemaníacos criaram instantaneamente uma corrente de solidariedade. Ligávamos uns para os outros, em busca de conforto. Tocava John no rádio o tempo todo. Pouco depois, começaram a aparecer as homenagens musicais a ele, em várias línguas. “Naquele dia em que ficamos tristes com Yoko” foi a música mais bonita que fizeram para ele no Brasil. Simone gravou. George primeiro, depois Paul também compuseram para John. “Here Today”, de Paul, é dos tributos o mais bonito, compreensivelmente. Paul canta “Here Today” na atual turnê, que passará pelo Brasil e recomendo vivamente.

Ouço John com frequência, sobretudo o John dos Beatles, jovem, sardônico, revoltado, a voz anasalada que é para mim a maior da história do rock, e talvez não só do rock. Entre todas as músicas que já ouvi na vida, “In My Life” é minha favorita. Gosto não apenas de ouvi-la mas de cantá-la, desajeitadamente, ao violão.

Fui quatro vezes a Liverpool, desde que vim para a Europa, e em todas elas passei pela casa em que John viveu mais que em qualquer outra na vida, a da Tia Mimi, e por Strawberry Fields. Meus três filhos, em diferentes ocasiões, acompanharam o pai na peregrinação a Liverpool. Na casa de John está a placa redonda azul que distingue alguém notável, e que os ingleses só colocam 20 anos depois da morte, para que o morto enfrente a última prova, a do tempo.

Sempre bato os olhos no lugar, ali pertinho, em que Julia, a mãe de John, morreu atropelada. Eles tinham se reaproximado, depois que John foi entregue à tia para que o criasse porque o pai era um aventureiro e a mãe irresponsável. Julia ainda teve tempo de ensinar banjo a John antes de ser atropelada.

O sentimento de rejeição tornou John infeliz e atormentado, mas ao mesmo tempo fez dele o gênio que foi. John é um daqueles casos que comprovam amplamente a vinculação entre a grande arte e a dor. Tivesse sido criado convencionalmente e tido uma vida normal entre pais de classe média, talvez estivesse agora aposentado jogando baralho em Liverpool.

Paul foi o moderador dos Beatles, George foi o menino prodígio que deu suporte musical a seus companheiros antes que estes virassem os bons músicos que seriam. Mas foi o tormento pessoal, intransferível, cruel de John que fez os Beatles romperem barreiras e destruírem limites até a última faixa do último disco.

Este texto foi publicado no Diário do Centro do Mundo em 10 de outubro de 2010.