Jornalista pode ter amigo?

Atualizado em 29 de maio de 2014 às 6:36
Amizade com o companheiro Roberto Marinho renderia frutos pöstumos a Conti
Amizade com o companheiro Roberto Marinho renderia frutos pöstumos a Conti

Encontro por acaso, na internet, um texto que escrevi na Exame quando a dirigia. É um texto do final dos anos 1990. Vi que a discussão central — jornalista pode ter amigo? — continua atual. Por isso, decidi republicá-lo no DCM. Repare que a amizade que cito então — Mario Conti e Roberto Marinho — acabaria muitos anos depois a levar o primeiro para a Globonews, num programa de entrevistas.

Notícias do Planalto — a imprensa e Fernando Collor, de Mario Sergio Conti, traz, involuntariamente, uma questão de extrema atualidade para o jornalismo brasileiro: o jornalista pode ter amigo? Conti, ex-diretor de redação da Veja, declara, no livro, a amizade que o une a Roberto Marinho, o dono da Globo. Ele parece respeitar tanto esse amigo que se refere a ele, quando fala ou quando escreve, como “Doutor Roberto”. Até os passeios proporcionados em Angra dos Reis por Roberto Marinho estão registrados por Conti.

Essa amizade teria nascido nos tempos em que Conti supervisionava a cobertura de televisão da revista. É admissível a um só tempo você editar noticiário de televisão e ser amigo de Roberto Marinho? Conti colocaria em risco uma amizade tão especial – e as vantagens vindas dela como os passeios em Angra e as oportunidades (jornalista também é gente) de alardear a intimidade com o “Doutor Roberto” – publicando notícias ou fazendo comentários que desagradassem Roberto Marinho? É possível que sim. Nesse caso, ele seria um mau amigo, e provavelmente seria suprimido da lista de amizades de Roberto Marinho. E também é possível que não. Nesse outro caso, ele seria um mau jornalista.

O fato é que o jornalismo moderno não admite essa dúvida. Cada vez que um jornalista sela uma amizade com alguém que faça parte do universo que ele cobre, a vítima é o leitor. É uma prova inescapável do atraso do jornalismo brasileiro que tantas figuras ilustres tenham amigos importantes nas áreas sobre as quais escrevem ou que editam. É um alpinismo social – feito sob vários pretextos hipocritamente grandiosos – cuja conta é sempre entregue ao leitor.

Nos Estados Unidos, esse é um assunto velho. Não, jornalista não pode ter amigo. Grandes jornalistas do passado, como James Reston, são vistos em retrospectiva reserva por causa das amizades com poderosos. Era chique, para um jornalista americano, ser amigo de presidente e freqüentar, socialmente, a Casa Branca. Hoje é um impeditivo para o exercício do jornalismo.

O editor de política do New York Times, por exemplo, simplesmente não pode ser amigo de Bill Clinton. Os leitores não tolerariam. Eles suspeitariam da isenção do noticiário e a credibilidade do NYT se transformaria rapidamente em ruínas. O suposto ganho editorial – eventuais notícias exclusivas do poder – é insignificante comparado aos danos de imagem e à suspeita da informação viciada e interessada. A frase definitiva é de Joe Pulitzer, o grande jornalista americano do começo do século: “Jornalista não tem amigo”.

A cobertura generosa e entusiasmada (pelo menos no princípio) que Notícias do Planalto recebeu expõe um outro aspecto desprezível da questão que envolve os jornalistas e suas amizades. Trata-se de outro crime comum contra os leitores no Brasil: as chamadas ações entre amigos jornalistas. Muitos jornalistas brasileiros usam um espaço que deveria ser do interesse do leitor para promover seus amigos jornalistas.

Leviandades e vilanias

Já é um clássico: livros de jornalistas recebem aplausos imediatos de amigos jornalistas oportunamente vestidos de “críticos”. O leitor, – esse consumidor de notícias tão desrespeitado ainda no Brasil – não sabe que os aplausos são de amigo para amigo. Para citar outra vez os Estados Unidos: em revistas como a Newsweek, o leitor imediatamente é informado quando se resenha um livro escrito por alguém da casa. Sobre o texto, há a inscrição: “from our staff”, da nossa equipe. Transparência, integridade.

Notícias do Planalto foi recebido com rojões pelos amigos de Mario Sergio Conti. O jornalista Elio Gaspari, por exemplo, escreveu um texto elogioso em sua coluna sobre o livro. Só não disse a seus leitores que, além de ser amigo de Conti, é tratado como um semideus no livro. (Como os donos das empresas jornalísticas, à exceção das quebradas.)

A revista Época dedicou várias páginas de entusiasmado apoio ao livro. O que também não está dito é que o diretor de redação da Época, Augusto Nunes, é amigo de Conti. (Nunes foi tratado com benevolência e camaradagem no livro. Uma denúncia estrepitosa de suposta tentativa de suborno de que Nunes teria sido vítima é narrada –– absurdo dos absurdos até para um foca –– como verdade absoluta no livro de Conti.)

Os jornalistas podem usar seu espaço para promover seus amigos jornalistas? Isso é eticamente aceitável?

O jornalismo brasileiro terá avançado muito quando se cristalizar entre os jornalistas a convicção de que o único amigo que podem ter é o leitor. A despeito de suas leviandades, vilanias e incontáveis demonstrações de mau jornalismo, Notícias do Planalto pode ter prestado uma contribuição milionária à imprensa brasileira ao trazer à cena – mesmo que involuntariamente, repito – a discussão vital sobre os jornalistas e suas amizades.