Jovens cantam em louvor à tortura em escola da FAB. Por Leandro Fortes

Atualizado em 10 de abril de 2015 às 20:20
Epcar
Epcar

Eu fui aluno da Escola Preparatória de Cadetes do Ar (Epcar), entre 1982 e 1984, nos últimos anos da ditadura militar.

A Epcar fica em Barbacena (MG). A escola era, como ainda é, um internato para rapazes e um centro de excelência de ensino médio (na época, segundo grau), por onde se entrava por meio de um vestibular dificílimo, disputado por jovens de todo o Brasil.

Explica-se a procura: ensino gratuito, soldo mensal, alimentação (ruim), livros (ótimos) e, para 99% dos meninos que por lá se aventuram, quase todos oriundos de classes sociais baixas, uma chance real de ascensão social.

A Epcar é apelidada de “nascente do poder aéreo”, uma dessas expressões pomposas bem ao gosto dos militares brasileiros, porque é a porta de entrada para a Academia da Força Aérea (AFA), situada em Pirassununga (SP) – esta, por sua vez, chamada de “ninho das águias”, onde se formam os oficiais da Força Aérea Brasileira.

Quando passei por lá, nos estertores da ditadura, havia uma esquizofrenia doutrinária em curso, porque Leonel Brizola havia sido eleito governador do Rio, em 1982.

Os oficiais, suboficiais e sargentos que cuidavam de nossa instrução militar, perdidos nos acontecimentos, vociferavam anticomunismo nas nossas orelhas – particularmente nas minhas, que eram (ainda são) enormes.

Em 1983, no segundo ano da escola, fomos apresentados ao tenente Fagundes, talvez a figura anticomunista mais caricata que conheci na vida – e olha que, como jornalista, conheci muita gente apaixonada pela “revolução” de 1964. Mas igual a “Fagundão”, como o chamávamos, nunca houve.

Baixinho, loiro, branco como uma cera e com as bochechas sempre rosadas pelo frio glacial de Barbacena, Fagundão virava um gigante quando o assunto era comunismo. Uma vez, em uma reunião no alojamento, quando ele nos falava de como os comunistas eram cruéis e desumanos, caí na besteira de usar a palavra “revolta” para expressar minha decepção com algumas medidas que haviam sido tomadas em relação à rotina da escola.

Vermelho como uma pimenta, Fagundão, com o sotaque curitibano que gostava de ostentar, disparou: “Olhaê, Fortes (meu nome de guerra), o militar não fala ‘revolta’”. E me deixou preso o fim de semana, na escola.

O autor, no centro
O autor, no centro

Até deixar a Epcar, em fins de 1984, foi o histrionismo anticomunista de Fagundão que dominou a formação da minha turma, dali para pior, como se veria a seguir.

Contei tudo isso só para dizer uma coisa: mesmo naquele clima, com aulas de anticomunismo e guerra revolucionária, nunca ouvi de um único oficial, naquela época, qualquer apologia à tortura. Nunca.

Não que muitos não fossem coniventes e até apoiadores do método. Mas havia a consciência entre eles de que não era certo falar de choque elétrico, empalação, estupro, espancamento e assassinato para meninos entre 15 e 18 anos.

Agora, vejo, estarrecido (mas não surpreso), esse vídeo divulgado pela CartaCapital no qual alunos da Epcar, enquanto se exercitam, entoam cânticos de apologia à tortura.

Digo que não estou surpreso porque, nas últimas duas décadas, acompanhei razoavelmente de perto o processo de recrudescimento da doutrina fascista no discurso e na formação dos militares da FAB, sobretudo depois de reencontrar velhos camaradas de farda nas redes sociais.

Recentemente, deixei um grupo de WhatsApp de ex-alunos da turma de 1982 onde o nível aterrador de ódio anticomunista (travestido, agora, em antipetismo) só se comparava aos índices gerais de analfabetismo político. E estou falando de gente muito bem formada, coronéis da ativa e da reserva, muitos em cargos de relevância dentro e fora das Forças Armadas.

Minha impressão é que, finda a ditadura, os militares brasileiros, execrados genérica e injustamente como assassinos e torturadores, voltaram-se para um mundo particular, um gueto de quartéis, vilas e escolas de formação.

Esquecidos, ficaram remoendo mágoas sem interferência real de nenhum dos governos do período pós-1985, reverenciando seus heróis de 1964 e se comportando, até hoje, como se ainda fossem soldados da Guerra Fria.

Para não incomodá-los, nem serem incomodados por eles, os sucessivos governos, de lá para cá, foram totalmente omissos em relação à formação doutrinária dos militares. Não por outra razão, é possível encontrar tenentes de 23 anos com a mesma cabeça conservadora, reacionária e golpista desses velhos generais de pijama que ficam ruminando mágoas e demência no Clube Militar do Rio de Janeiro.

Quando ministro da Defesa, Nelson Jobim foi obrigado a abortar, mais de uma vez, comemorações pelo golpe de 31 de março de 1964 promovidos por generais, dentro dos quartéis. Também uma vez foi surpreendido ao saber que jovens oficiais do Exército, na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), haviam escolhido como patrono da turma o general Emílio Garrastazu Médici, o mais sanguinário dos ditadores de 1964.

Jobim como, aliás, até hoje, nenhum ministro da Defesa, desde que a pasta foi criada, em 1999, nunca atacou a origem do problema: as escolas de formação militar, inclusive os colégios militares, onde meninos e meninas ainda aprendem que o golpe foi uma “revolução”, e que a tortura e o assassinato de opositores foram excessos naturais a uma guerra onde estavam em jogo Deus, a família e a propriedade.

O fato é que, como nada foi feito, uma geração de militares envenena a outra com essa doutrina obsoleta – e patética – de anticomunismo roubada a velhas apostilas da Escola Superior de Guerra (esta, por si só, um anacronismo absurdo).

É preciso estancar esse processo cruel de envenenamento ideológico a partir de uma intervenção direta nos currículos escolares dessas escolas, acompanhado de uma revisão geral sobre a instrução militar. É uma missão importante e fundamental, hoje, nas mãos do ministro Jaques Wagner.

Isso porque não é possível que, na segunda década do século XXI, o Brasil ainda tenha que conviver o ranço fascista deixado de herança por uma ditadura de torturadores e assassinos.

Muito menos em escolas federais sustentadas pelo contribuinte.