“Juiz deve declarar impedimento se houver dúvida de sua imparcialidade”, disse assessor de Moro que o acompanha na Câmara

Atualizado em 2 de julho de 2019 às 16:05
Moro é ouvido na CCJ da Câmara

Vladimir Passos de Freitas, desembargador aposentado do TRF-4, o qual presidiu, é assessor do ministério da Justiça.

Acompanha o chefe, Sergio Moro, na audiência na CCJ da Câmara nesta terça, dia 2.

“O Brasil era pobre, preto e prostituta antes de Sérgio Moro”, fulminou Freitas recentemente. “O equilíbrio psicológico de uma pessoa dessa merecia uma tese de doutorado”.

Freitas é coordenador de um livro chamado “Direito e Administração da Justiça”.

Capítulo de sua autoria intitulado “Perspectivas de um código de ética judicial no Brasil”, que reproduzo abaixo, trata de princípios complicados para Moro.

Alguns trechos:

  • O juiz deve declarar seu impedimento (artigo 134) quando tiver qualquer interesse no desfecho da ação (v.g. parentesco com a parte) ou estiver suspeito (artigo 135) em razão de qualquer motivo que ponha em dúvida sua imparcialidade (v.g. amigo íntimo ou inimigo da parte). Normalmente, o próprio juiz declara seu impedimento ou suspeição. Mas se ele se omitir, a parte poderá impugnar sua participação no processo e, se o incidente for julgado procedente, ele será afastado (artigo 138, parágrafo 1°)
  • A inexistência de um código de ética ou de conduta judicial leva a inúmeras dúvidas, que acabam dificultando a avaliação de determinadas situações. Há um prejuízo ao Poder Judiciário, que deixa de dar aos casos a melhor solução, aos juízes porque não sabem, por vezes, quais os limites de sua ação, e às pessoas envolvidas com o juiz, que desconhecem, da mesma forma, até onde podem agir e quais as conseqüências de seus atos. Vejamos alguns exemplos práticos: a. O juiz é procurado pela parte envolvida no processo em sua residência. Se recebê-la, poderá ser acusado de parcialidade. Se não recebê-la, poderá ser-lhe imputada descortesia;

Abaixo, a íntegra:

O Brasil é uma república federal com 26 estados e o Distrito Federal. Na cúpula do Poder Judiciário está o Supremo Tribunal Federal, com 11 ministros. Em seguida está o Conselho Nacional de Justiça, composto de 15 membros com mandato de dois anos, oriundos da magistratura e de órgãos externos, com a missão de controle da atuação administrativa e financeira dos Tribunais.

Em seguida, estão quatro Tribunais Superiores do Trabalho, com jurisdição sobre todo o país: Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral e Superior Tribunal Militar. Em seguida, no âmbito federal, estão os Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais Regionais Eleitorais.

No âmbito dos estados da federação e do Distrito Federal, cada um tem o seu Poder Judiciário, sendo o Tribunal de Justiça o órgão de cúpula. Na base estão milhares de juizados de primeira instância espalhados por todo o território nacional. Ao todo estão em atividade cerca de 14 mil juízes. O ingresso na magistratura de carreira é por concurso público e os juízes gozam das garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos.

Código judicial de conduta

O Brasil não possui código judicial de conduta em nenhum tribunal federal ou estadual ou em qualquer de suas associações de magistrados. Existem, todavia, restrições à atuação dos juízes na Constituição Federal, na Lei Orgânica da Magistratura, nos Códigos de Processo e nas leis federais e estaduais de organização judiciárias.

A Constituição Federal de 1988, no capítulo III, artigos 92 a 126, trata do Poder Judiciário. Ela determina que o juiz deve morar na cidade onde trabalha (artigo 93, VI), não pode exercer outro cargo ou função pública exceto uma de professor, não pode receber custas ou participação em processo ou dedicar-se a atividade político-partidária (artigo 95, parágrafo único, I a III) e quando aposentar-se não pode exercer por três anos a advocacia no tribunal ou juizado onde exercia as suas funções.

A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar 35/79) aplica-se a todos os juízes do Brasil. Ela contém regras de conduta. Determina aos juízes tratar com cortesia as partes, advogados, testemunhas e os demais que participem dos processos (artigo 35, IV); manter conduta pública ou privada irrepreensível (artigo 35, VIII); não exercer ou a participar de comércio ou sociedades comerciais ou industriais, inclusive em cargo técnico ou de direção (artigo 36, I e II); e manifestar-se sobre processos pendentes de julgamentos ou fazer juízos depreciativos sobre decisões judiciais de outros órgãos.

As leis que regulam especificamente cada ramo do Poder Judiciário também possuem regras de conduta. Em geral, os dispositivos são os mesmos que já constam da Constituição ou da Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Por exemplo, a Lei 5.010/66, proíbe os juízes federais de exercer atividade político-partidária, praticar atos de comércio ou atuar como juiz fora dos casos previstos em lei (artigo 28).

Os Códigos de Processo possuem referência expressa aos casos de impedimento ou suspeição do juiz. Por exemplo, o Código de Processo Civil (Lei 5.869/73). O juiz deve declarar seu impedimento (artigo 134) quando tiver qualquer interesse no desfecho da ação (v.g. parentesco com a parte) ou estiver suspeito (artigo 135) em razão de qualquer motivo que ponha em dúvida sua imparcialidade (v.g. amigo íntimo ou inimigo da parte). Normalmente, o próprio juiz declara seu impedimento ou suspeição. Mas se ele se omitir, a parte poderá impugnar sua participação no processo e, se o incidente for julgado procedente, ele será afastado (artigo 138, parágrafo 1°).

Vladimir Passos de Freitas

Código de ética dos funcionários públicos

Os servidores públicos federais são obrigados a seguir um código de ética profissional, aprovado pelo Decreto 1.171/94. Com relação ao recebimento de presentes, a matéria foi regulamentada especificamente pela Resolução 3/00. Por exemplo, só é admitido receber presentes no valor unitário de R$ 100, cerca de U$ 40. Há regras especiais (Código de Conduta) para os servidores da alta administração federal, como, por exemplo, o presidente do Banco Central não poderá prestar consultoria a corporações ou sindicatos sobre políticas de governo antes de quatro meses do dia em que deixar a função pública (artigo 15).

Todavia, os juízes não se sujeitam aos decretos destinados a funcionários públicos, porque no Brasil eles são considerados representantes de um poder do Estado, e não funcionários. Também não é comum utilizar-se o código de conduta ética dos funcionários aos juízes, por analogia. Nem mesmo invocar-se o código de ética profissional para os funcionários do Poder Judiciário. Não existe qualquer estudo ou decisão judicial afirmando que estas regras só se aplicam aos funcionários do Poder Executivo, mas na realidade é assim que se procede.

Por oportuno, ressalte-se que na esfera das empresas existem códigos ou princípios éticos que impõe limites à atuação de seus funcionários. Tal qual no serviço público, eles carregam consigo a imagem da corporação a que pertencem e, se transgridem normas de conduta, podem afetar os negócios do seu empregador. As situações vão desde medidas simples, como limitar a utilização da internet em serviço, até casos graves, como a demissão de um alto executivo de uma multinacional que, apesar de casado, se envolveu em um caso amoroso com uma funcionária. Muitas vezes as soluções dadas no mundo corporativo podem servir de orientação, por analogia, ao serviço público.

Situações mal esclarecidas

A inexistência de um código de ética ou de conduta judicial leva a inúmeras dúvidas, que acabam dificultando a avaliação de determinadas situações. Há um prejuízo ao Poder Judiciário, que deixa de dar aos casos a melhor solução, aos juízes porque não sabem, por vezes, quais os limites de sua ação, e às pessoas envolvidas com o juiz, que desconhecem, da mesma forma, até onde podem agir e quais as conseqüências de seus atos. Vejamos alguns exemplos práticos:

a. O juiz é procurado pela parte envolvida no processo em sua residência. Se recebê-la, poderá ser acusado de parcialidade. Se não recebê-la, poderá ser-lhe imputada descortesia;

b. O juiz recebe um pequeno presente no Natal. Se o recebe, pode estar se comprometendo ou dando mau exemplo aos funcionários. Se não o recebe, pode ser acusado de descortesia ou de inseguro;

c. O juiz é convidado a ser professor de um curso ministrado por uma entidade particular destinada a preparar pessoas para concursos públicos. O pagamento supera em muito o das faculdades de Direito. Não se sabe exatamente se pode ou não, porque a Constituição refere-se a uma atividade de magistério, sem fazer qualquer distinção entre cursinhos ou faculdades de Direito;

d. Não fica bem claro se um juiz pode participar de grupos ou organizações que, embora legais, possam de alguma forma atingir a sua independência em razão das relações pessoas que venha a fazer, como, por exemplo, os clubes de servir;

e. Não fica bem claro se um juiz pode participar de uma sociedade beneficente e, nesta condição, fazer campanha para angariar fundos;

f. O juiz no Brasil deve, por obrigação legal, receber os advogados que o procurem para falar sobre um processo. Não existe esclarecimento, todavia, se ele deve receber o advogado sozinho ou acompanhado do advogado da outra parte;

g. Não são claras as regras sobre a motivação das sentenças. Por vezes, os juízes, ao justificar uma decisão, fazem críticas a outros juízes ou representantes de outros Poderes do Estado. Seria oportuna a definição dos limites;

h. Os juízes, quando representando a categoria, têm limites na sua atuação? Podem atuar com veemência que alcance situações limite, com o argumento de que estão agindo em defesa da classe e não como juízes propriamente?;

i. O atraso nos julgamentos, em razão do elevado número de processos, gera pedidos de preferência nos julgamentos. Quais os limites desses pedidos? Em que medida devem ser atendidos? Como separar um simples pedido de julgamento de um pedido de intercessão a favor de uma das partes?

A tentativa de criação de um código internacional

Há um consenso internacional sobre a necessidade de regras de conduta ética para os juízes. Evidentemente, a situação é diferente entre os países. Sem dúvida, elas serão mínimas em países com um coeficiente mínimo de corrupção, como a Finlândia, e mais detalhadas naqueles que figurem com os índices mais elevados nas estatísticas feitas regularmente,

Assim é que vários países já se adiantaram na elaboração de códigos ou princípios éticos ou de conduta judicial. Por exemplo, a Tanzânia tem um código de conduta para juízes desde 1984. As Filipinas, desde 1989. Nos Estados Unidos, há um código de conduta para a Justiça Federal com apenas 10 princípios e códigos na Justiça de alguns estados, como a Virgínia e Iowa. Na Argentina, há um código judicial para os juízes da província de Santa Fé.

Sob a orientação da Organização das Nações Unidas, vários estudos e encontros de juízes vêm sendo promovidos para a criação de um código de conduta judicial (The Bangalore Principles). Em abril de 2000, em Viena, o denominado Grupo de Fortalecimento da Integridade Judicial reconheceu a necessidade de um código com o qual pudesse ser medida a conduta dos juízes, tudo com o objetivo de tornar o Poder Judiciário mais forte e independente.

Nos dias 25 e 26 de novembro de 2002, na Corte Internacional de Justiça, em Haia, reuniram-se líderes da magistratura e presidentes de tribunais, parte deles de supremas cortes, para a elaboração de um código internacional de conduta judicial. Foram tiradas várias conclusões, a serem divulgadas em outros países, sob a denominação de Princípios de Conduta Judicial de Haia (The Hague Principles of Judicial Conduct). Nos dias 16 e 17 de outubro próximo, em Lima, a Comissão Andina de Juristas e outras entidades promoverão o Encontro Regional “Ética e Independência Judicial”.

Todavia, em que pese os esforços dos membros da comissão organizadora na elaboração de um código internacional, a iniciativa não se concretizou até o presente momento. Talvez pela diversidade de países envolvidos. A solução, quiçá, seja a de elaboração de códigos regionais, ou seja, entre países de características comuns. Assim, é possível falar-se em um código para a América Latina, para a Europa Central ou para a Oceania.

Conclusão

No Brasil, os juízes são respeitados pela população e se conduzem de forma muito ética. Todavia, o permanente crescimento do número de magistrados e as dificuldades para saber exatamente os limites na conduta pública e privada recomendam a criação de um Código de Ética. Tal providência traria benefícios à sociedade e aos próprios juízes, que muitas vezes não sabem exatamente os limites de sua ação. Esta proposta não é simpática à maioria dos agentes da magistratura brasileira, que vêem nela a possibilidade de maiores restrições à sua atuação. É razoável concluir que ela, provavelmente, teria pouca receptividade porque se suporia que objetiva cercear a atividade do juiz. Todavia, se houver um prévio trabalho de esclarecimento dos objetivos, poderá haver interesse.

É preciso que se diga, ainda, que poderá haver dificuldade na implantação por ser o Brasil um Estado federal. Isso significa que um código de ética do Poder Judiciário Federal poderá não vincular o Poder Judiciário dos estados da federação. Assim, o ideal seria a criação de um código de ética pelo Conselho Nacional de Justiça. Ao referido conselho cabe o controle da atuação administrativa do Poder Judiciário, inclusive podendo expedir atos regulamentares ou recomendar providências (Constituição Federal, artigo 103, parágrafo 4º e inciso I).

Por outro lado, encarada a questão sob o ponto de vista regional, uma solução interessante seria a criação de códigos de conduta destinados a países com identidade cultural e econômica. Para os mesmos problemas, as mesmas soluções. Certamente, princípios éticos viriam a fortalecer o Poder Judiciário, tornando-o mais respeitado e independente.

Vladimir Passos de Freitas, Thompson Flores e Moro