Juíza censura em “segredo” e imprensa se cala. Por Marcelo Auler

Atualizado em 25 de fevereiro de 2019 às 20:39

Pois é definitiva a lição da História que, em matéria de imprensa, não há espaço para o meio-termo ou a contemporização. Ou ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica”.

(…) “Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário”.  (Ministro Carlos Aires Brito , no histórico voto na ADPF 130, em 30/04/2009)

A liberdade de imprensa – que Carlos Aires Brito, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF), já classificou como “irmã siamesa da democracia” – costuma ser um dos primeiros direitos constitucionais combatidos e renegados em ditaduras e/ou governos autoritários.

Desfraldar a bandeira em sua defesa é ponto fundamental de qualquer cidadão que preze o estado democrático de direitos. Mais ainda por parte de jornalistas, órgão de comunicação e suas entidades representativas. Não apenas por se tratar da defesa do direito de a população ser informada livremente. Mas também pela liberdade do exercício profissional.

A decretação de censura – prévia ou não – hoje, mais do que nunca, soa como excrescência jurídica. Afinal, em diversos julgados o Supremo Tribunal tem reafirmado que a Constituição de 1988 não admite qualquer espécie de cerceamento da liberdade de informação. A começar pelo histórico voto de Aires Brito, em abril de 2009, na já famosa Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPF) 130, na qual a corte considerou que a Carta Magna não acatou a lei de imprensa existente desde a ditadura.

Mais ainda, seus ministros defendem o papel crítico da

imprensa, como no voto da ministra Rosa Weber ao julgar a Reclamação 16.434/ES, na qual a revista eletrônica Século Diário, de Vitória (ES), se queixava de uma censura judicial:

É sinal de saúde da democracia – e não o contrário -, que os agentes políticos e públicos sejam alvo de críticas – descabidas ou não – oriundas tanto da imprensa como de indivíduos particulares, no uso das amplamente disseminadas ferramentas tecnológicas de comunicação em rede”,

Por tais posicionamentos do Judiciário, é preocupante quando se percebe que órgãos de comunicação e também entidades representativas da imprensa se submetem calados a decisões judiciais que, atropelando a Constituição e menosprezando as decisões do STF, impedem a livre circulação de informações.

Na sexta-feira (22/01), o jornalista Fernando Brito, editor do site Tijolaço, em atitude digna, ao ser obrigado judicialmente a retirar do Blog uma informação, acatou – contrariado – a ordem da juíza Genevieve Paim Paganella, da 10ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná.

Sem quebrar o segredo de justiça imposto pela decisão – não identificou o assunto e sequer a autora da ação, outra magistrada do Paraná – deu ciência a seus leitores da censura que lhe foi imposta liminarmente, ou seja, antes mesmo de ter direito a se defender. Em outras palavras: denunciou-a.

A ordem judicial foi além da determinação de censurar a matéria veiculada. Não satisfeita em determinar ao Tijolaço a retirada do acesso público à postagem, a juíza Genevieve promoveu a chamada censura prévia. Como denunciou o site, proibiu-o “de efetuar novas postagens relativas aos mesmos fatos, em qualquer publicação ou postagem, por quaisquer meios de divulgação, mormente em virtude do caráter sigiloso do processo judicial sub judice (sic)”.

Ou seja, no processo em que desrespeitou as decisões do Supremo, por motivos inexplicáveis, determinou o segredo de justiça. Apenas para lembrar, este Blog foi censurado por dois juízes – de Curitiba e Belo Horizonte – e responde a cinco processos. Nenhum em segredo de justiça.

Pela postagem de Brito, apesar dele não explicitar do que se trata, constata-se que seu comentário, de julho de 2018, girava em torno da decisão da juíza Márcia Regina Hernández de Lima, da Vara da Infância e Adolescência do município de Pinhais (PR), de deportar dois menores haitianos que viviam no Brasil na condição de refugiados. Na época, a juíza determinou a separação dos menores de seus pais, contrariando tratados que o Brasil assinou e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Ela tentou repetir o que o presidente Ronald Trump fazia nos Estados Unidos – sob protestos mundiais – com crianças de famílias presas por ingressarem ilegalmente naquele país.

O assunto, como lembra Brito, foi divulgado em diversos meios de comunicação. O primeiro a noticiá-lo foi o  Jornal do Brasil em reportagem compartilhada por este Blog – Juíza do PR imita Trump e separa haitianos. Em seguida, repercutiu em O Globo, no jornal paranaense A Gazeta do Povo, e até no site do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, no qual ainda se encontra a crítica à decisão da juíza Márcia Regina – Crianças são separadas de pais haitianos e pedido de deportação é contestado. Na ação contra Brito há outros réus. Ele não nomeia todos, mas cita as Organizações Globo.

Censurados silenciosamente

No site de O Globo, já não se encontra mais a notícia veiculada em 3 de julho de 2018, sobre o caso de Pinhais: “Juíza determina que crianças haitianas sejam separadas dos pais em Curitiba”. No endereço da antiga matéria hoje aparece a informação “Página não encontrada”, como mostra a ilustração ao lado com o print antigo da reportagem e a página atual.

Naquela mesma segunda-feira, o jornal impresso publicava a mesma reportagem na página seis do primeiro caderno (veja reprodução em foto) intitulada “Em Curitiba, Justiça retira haitiano dos pais”.

Porém, ao contrário de Brito, nem no site de O Globo, tampouco nas suas edições impressas se identificou qualquer nota explicando aos seus leitores a retirada da matéria do on line. Menos ainda qualquer reportagem denunciando mais uma censura judicial, contrária a tudo o que o Supremo tem reafirmado. Aparentemente, as Organizações Globo acataram silenciosamente esta ordem que, por tudo o que falaram os ministros do STF, é inconstitucional. Deverá brigar nos tribunais com o seu departamento jurídico.

Decisões judiciais – por mais esdrúxulas e inconstitucionais que soem – se cumpre. Principalmente quando, como informou Brito na postagem – O Tijolaço está sob censura prévia – há a ameaça de o descumprimento dela gerar “multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), com limite de R$ 100.000,00 (cem mil reais) em relação à cada pessoa jurídica e/ou física indicada no polo passivo”.

Mas decisões judiciais podem ser questionadas. Não apenas judicialmente, no processo e através de recursos. Também abertamente, para que a sociedade – à qual os magistrados servem – tenha conhecimento do que vem sendo feito por agentes públicos e políticos. Ou seja, transforma-se tais decisões em debate público

Uma contestação que deve ser ainda maior quando está em jogo um direito constitucional – como a liberdade de informação e de ser informado – que, como explicitou o então ministro Aires Brito, é “irmã siamesa da democracia”.

Censura é uma ameaça à democracia. Logo, precisa ser denunciada e combatida. De todas as formas e fórmulas. Por todos que respeitam o estado democrático de direito e desejam preservá-lo.

Foi o que aconteceu durante a ditadura militar. Relembre-se, por exemplo, que os conservadores jornais paulistas O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde, ambos então da família Mesquita, quando submetidos ao crivo de censores, publicavam no espaço das matérias cortadas versos de Os Lusíadas (o Estadão) ou receitas (o JT). Ou seja, acatavam a decisão, porém denunciavam a censura. Corajosamente, como fez Brito.

Ocorreu, porém, em uma época em que os jornais, depois de terem em quase a sua totalidade defendido o golpe militar de 1964 que levou o país a uma ditadura de 21 anos, já lutavam pelo retorno ao estado democrático de direito. Contavam com o apoio de entidades representativas fortes. No caso dos jornais e jornalistas, com a saudosa Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Remavam contra a maré, sem o apoio atual da constituição e do próprio Supremo Tribunal Federal.

Uma ABI que teve papel fundamental na redemocratização do país, abraçando causas que não se limitavam à defesa da Liberdade de Imprensa. Amparou ainda a luta pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita, a volta do estado democrático de direito e das eleições diretas para a presidência da República, entre outras. Não por outro motivo, foi vitima de um atentado à bomba pelos grupos paramilitares da extrema direita.

Luta que se estendeu após a redemocratização do Brasil. Relembre-se que foram os presidentes da ABI, Barbosa Lima Sobrinho, e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcello Lavenere, que apresentaram à Câmara Federal o pedido de impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1 de setembro de 1992.

Hoje, porém, a ABI se encontra prostrada. Mesmo sabendo que o Supremo Tribunal condena a censura e defende abertamente o direito da crítica a agentes públicos. Nem se sabe se tomará alguma posição diante desta nova censura judicial que, conforme relatou o Tijolaço, abrange outros jornalistas e órgãos de imprensa.

Afinal, a outrora briosa e democrática ABI, calou-se perante os ataques que o hoje presidente Jair Bolsonaro, bem como seus três filhos, promovem – desde a época da campanha eleitoral – contra jornalistas e jornais.

Na posse desse governo que trouxe de volta ao poder os militares, quando os jornalistas foram mal tratados e tiveram o ir e vir cerceado, a ABI se limitou a protestar por uma nota. Nela, creditou o cerceamento do livre exercício profissional dos jornalista aos servidores subalternos do cerimonial. Como se fosse possível aos mesmos decidirem isso sozinhos.

Silenciou-se também quando o novo ministro da Educação, o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, acusou o jornalista Ancelmo Góis, de O Globo – um dos mais antigos sócios da ABI -, de agente da KGB.

Deixou ainda de se manifestar diante do decreto assinado pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, que tendia a aumentar o sigilo de documentos do governo, provocando uma nova barreira às informações. Destaque-se que, sendo uma entidade nacional de representação de uma categoria, a ABI poderia sim arguir a inconstitucionalidade do decreto junto ao Supremo. Mas calou-se.

ABI refém do governo?

O silêncio da ABI, na explicação de um dos seus conselheiros ao Blog, resulta do fato de a entidade estar, nas justificativas dadas ao Conselho Deliberativo pelo seu presidente, Domingos Meireles, refém do governo.

Aos conselheiros, assim como a este Blog, Meireles alegou que a Associação trava uma briga judicial em torno da Lei Nº 13.353, de 3 de novembro de 2016.

Sancionada por Michel Temer em novembro de 2016, esta lei concedeu isenções tributárias à ABI, à Academia Brasileira de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Por ela, a remissão e anistia de débitos fiscais livrou a entidade dos jornalistas, segundo ainda Meireles, de dívidas de R$ 4 milhões.

Pelo que o presidente da ABI espalha, a Fazenda Nacional, por dever de ofício, questiona a legalidade da lei aprovada no Congresso e sancionada pelo presidente da República. Só não deixa claro onde ocorre tal disputa jurídica.

Quando questionado sobre a necessidade deste debate ser público, o presidente da ABI defendeu a negociação nos bastidores: “o melhor, segundo nosso advogado, é deixar que o processo siga o seu curso normal. Qualquer interferência, por mais bem intencionada que seja, poderá produzir um resultado diametralmente oposto”. Não explicou, porém, como a lei poderá ser desrespeitada se ela sequer é questionada onde deveria: no STF.

Fica a dúvida de como a Associação – que teve coragem de enfrentar o governo ditatorial dos militares – pretende agora defender a liberdade de imprensa que vem sendo colocada em risco por decisões de juízes de primeira e segunda instância, bem como os ataques do presidente, de seus filhos e de seus aliados.

Lembre-se que ela tem condições legais de ir ao Supremo reclamar dos juízes que não respeitarem as decisões tomadas pelos seus ministros. Afinal, se pode questionar a constitucionalidade das leis, pode – independentemente de pedidos ou representações dos atingidos – pedir ao STF que faça valer seus julgados. Agiria em nome da categoria, incluindo os proprietários dos meios de comunicação. Sem falar em recorrer à própria juíza que decretou a censura inconstitucional.

Mas, ao que parece, não lhe interessa afrontar governos e autoridades. Mesmo quando está em risco algo mais caro à sociedade e, consequentemente, aos associados da entidade e demais jornalistas: a Liberdade de Imprensa. Logo, também a sua irmã siamesa, a democracia. Bandeiras que, no passado, a ABI desfraldou com apoio da categoria e aplauso geral da sociedade.

Enquanto isso, juízes espalhados pelo país, permanecem afrontando decisões do Supremo Tribunal e atacando diretamente a liberdade da população de receber, livremente, informações. Como denunciou, corajosamente, o Tijolaço. Até agora, sem qualquer apoio.