Juízes erram, desembargadores erram, como mostra o caso do Porta dos Fundos. E vamos abrir mão do presunção de inocência?

Atualizado em 10 de janeiro de 2020 às 12:12
Cena do especial de Natal do Porta dos Fundos

A decisão de Dias Toffoli de cassar a censura imposta pelo desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, reforça a convicção de juristas e advogados de que as cortes superiores são fundamentais no Brasil para rever decisões equivocadas de segunda instância.

“A decisão do ministro Dias Toffoli que derrubou a censura ao especial do Porta dos Fundos também mostra a importância das Cortes Superiores na reparação de violações à Constituição e às leis do país, reforçando que os Tribunais de Apelação podem cometer erros nas mais diversas áreas”, disse, através do Twitter, Cristiano Zanin Martins, um dos advogados de Lula.

Bnedicto Abicair havia determinado à Netflix a retirada do especial de Natal do Porta dos Fundos, que retratava Jesus como homossexual e em um relacionamento amoroso com o diabo.

Naturalmente, é uma peça de humor, mas, fazendo eco a manifestações como o do terrorista Eduardo Fauzi, Benedicto Abicair acatou o pedido da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, uma entidade de orientação católica.

Na primeira instância, a juíza Adriana Moura negou o pedido. “O Judiciário só pode proibir a publicação, circulação e exibição de manifestações artísticas quando houver a prática de ilícito, incitação à violência, discriminação e violação de direitos humanos nos chamados discursos de ódio”, escreveu. “E o ‘Especial de Natal Porta dos Fundos: a primeira tentação de Cristo’ não tem nada disso”, acrescentou.

Nesse processo, chama a atenção a manifestação de uma promotora, que defendeu abertamente a censura.

“O que é sagrado para um, pode não ser sagrado para o outro, e o respeito deve, portanto, imperar”, escreveu a promotora Barbara Salomão Spier no recurso ao Tribunal de Justiça.

“Fazer troça aos fundamentos da fé cristã, tão cara a grande parte da população brasileira, às vésperas de uma das principais datas do cristianismo, não se sustenta ao argumento da liberdade de expressão”, acrescentou.

O desembargador Abicair não apenas censurou a obra como tentou ensinar os humoristas e fazer piada. Para ele, o Porta dos Fundos “não foi centrado e comedido”.

Ele disse que, para justificar sua posição, os humoristas deveriam usar “dados técnicos”, e não agir com “agressividade e deboche”.

Não é necessário ser jurista para entender que a decisão do desembargador não se sustenta tecnicamente. Se Benedicto Abicair atuasse na área criminal, ele poderia mandar um inocente para a cadeia, ainda que houvesse a possibilidade de recursos a cortes superiores.

A convicção falaria mais alto que as leis e as provas.

É por isso que Zanin se manifestou, já que ele está no centro de um debate sobre a prisão antes do trânsito em julgado. Lula foi condenado por Sergio Moro, pelo TRF-4 e pelo STJ.

A condenação teve, no entanto, origem na decisão de um juiz flagrantemente parcial, que o tribunal de apelação, o TRF-4, não corrigiu.

A anulação da condenação está pendente da conclusão do julgamento do HC sobre a parcialidade de Moro. A indicação é de que a condenação será anulada, com votos de Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello.

Mas, se o STF não tivesse restabelecido a validade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que proíbe prisão antes do trânsito em julgado, o ex-presidente talvez ainda estivesse preso — havia a possibilidade de progressão de regime.

Nesse caso, uma prisão injusta, já que com origem na sentença de um juiz que já fazia política.

Desembargadores também erram e julgam com base em suas convicções, como mostra o caso do Porta dos Fundos, e é também por isso que a sociedade brasileira não deve abrir do direito fundamental à presunção de inocência.

 

 

 

 

Joaquim de Carvalho
Jornalista, com passagem pela Veja, Jornal Nacional, entre outros. joaquimgilfilho@gmail.com