Justiça censura entrevista da Ponte com irmãos presos após ‘reconhecimento pelos olhos’. Por Fausto Salvadori

Atualizado em 1 de junho de 2019 às 11:29

PUBLICADO NA PONTE JORNALISMO

POR FAUSTO SALVADORI

O que você vai ler agora não deveria lhe interessar, segundo a Justiça de SP.

Imagine que a palavra de três vítimas de um assalto, entre elas uma juíza, que nunca viram o rosto dos ladrões que as roubaram, pudesse convencer a Polícia Civil, o Ministério Público e o Judiciário a mandar dois irmãos para a prisão. Imagine que um dos irmãos tivesse como provar que, no horário do crime, estava a 83 quilômetros dali, mas que mesmo assim seu álibi fosse ignorado por policiais, promotores e juízes. Imagine que a indignação por essa prisão levasse uma comunidade pobre a protestar e fechar uma rodovia.

Não precisa imaginar muito mais. Isso aconteceu com os irmãos Victor Hugo, 20 anos, e Tiago Campos Terkeli, 33, que foram presos em 12 de junho do ano passado, em Taboão da Serra, Grande SP. Revoltados, parentes e amigos dos jovens fecharam a rodovia Régis Bittencourt para protestar contra a prisão dos jovens, em setembro, enfrentando as ameaças e armas de choque de policiais rodoviários federais. Apesar dos protestos e da falta de provas, os irmãos Terkeli continuam presos, prestes a completar um ano no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Jundiaí.

Nada disso tem qualquer interesse público. Não passa de um assunto particular. Pelo menos, é o que pensa a juíza Jovanessa Ribeiro Silva Azevedo Pinto, do Departamento Estadual de Execuções Criminais da 4ª Região Administrativa Judiciária, que negou autorização para a Ponte Jornalismo realizar uma entrevista com os dois irmãos na unidade onde estão aprisionados. Em seu despacho, assinado nesta quarta-feira (29/5), Pinto afirma:

“…verifica-se que o interesse na concessão da entrevista é unicamente particular, e não público, na medida em que a pauta refere-se a processo criminal em andamento e, portanto, ainda não julgado”

A Ponte fez o pedido de entrevista em 8 de maio. Em despacho assinado no dia seguinte, a mesma juíza inicialmente concordou com o pedido, autorizando a reportagem a falar com os dois irmãos. A reportagem, então, encaminhou a autorização judicial para a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) do governo João Doria (PSDB), a quem caberia confirmar com os presos se aceitavam conversar com a reportagem.

Antes que a entrevista fosse acertada, porém, a juíza Pinto mudou de ideia. No despacho de quarta-feira, em que proibiu a entrevista, a magistrada dá a entender que modificou seu entendimento “diante do ofício remetido pela direção do unidade prisional em questão”. A SAP se recusou a dizer o que havia nesse documento. Segundo a assessoria de imprensa da pasta, o ofício havia sido pedido pela juíza, que teria perguntado ao CDP de Jundiaí de qual crime os réus eram acusados. As assessorias de imprensa da SAP e do Tribunal de Justiça de São Paulo não explicaram por que uma juíza precisaria solicitar a um diretor de presídio uma informação que ela poderia obter apenas consultando os autos do processo.

Em seu despacho, a juíza afirma que o direito à liberdade de expressão do preso é algo “que a lei não prevê claramente” e que, “por razões de cautela e prudência, não se pode aceitar, sem critério algum, que todo e qualquer preso, sempre que desejar”, possa ser entrevistado. Caberia ao Judiciário, na visão de Pinto, fazer “uma análise conjunta do interesse particular do preso em prestar entrevista e do interesse público” e autorizar apenas “entrevistas relacionadas a pautas de segurança pública, do combate à criminalidade e do adequado funcionamento do sistema prisional”.

Segundo a magistrada, a entrevista com os Terkeli não se enquadraria nesses quesitos: “não se tem notícia de qualquer reflexo que pudesse ir ao encontro do interesse público com referida entrevista”. Pinto ainda acrescentou que fazia isso para proteger os presos, já que “é temerário autorizar entrevista para que ele se manifeste sobre processo ao qual responde e que ainda não foi julgado”.

Declaração de escola não fez diferença para Justiça.

Como foram presos — e os erros que a polícia cometeu

Victor Hugo e Tiago são acusados de fazer parte de um grupo de quatro homens que invadiu e roubou duas casas no bairro do Caxambu, em Jundiaí, na noite de 1º de março do ano passado, por volta das 20h30. Uma das vítimas era uma juíza.

No horário do crime, Victor estava na escola estadual Professora Neusa Demétrio, na cidade de Taboão da Serra, onde cursa o terceiro ano do ensino médio, segundo o diretor da escola, que confirmou a informação por escrito e em depoimento à Justiça. O álibi dele, contudo, foi ignorado pela polícia, pelo Ministério Público e pela Justiça.

Os policiais civis da DIG (Delegacia de Investigações Gerais) de Jundiaí percorreram um caminho tortuoso para chegar aos suspeitos, analisando as chamadas telefônicas feitas à torre de celular mais próxima da casa da juíza, entre 19h e 22h da noite do crime. Dentre todas as chamadas, selecionaram sete linhas telefônicas cadastradas em outros municípios. Uma dessas linhas estava registrada em nome de Miguel Terkeli, pai de Victor e Tiago. Como Tiago já tinha passagem pela polícia, os policiais suspeitaram dele.

A partir dessa informação, mostraram fotos dos irmãos para as vítimas. Ninguém tinha visto os rostos dos ladrões, que usaram toucas ninjas, roupas pretas e luvas durante todo o tempo, mas mesmo assim as vítimas disseram que podiam reconhecer os Terkeli “pelos olhos”.

Ao fazer isso, os policiais erraram duas vezes, conforme os procedimentos corretos para o reconhecimento descritos por Gustavo Noronha de Ávila, doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e um dos principais especialistas brasileiros em psicologia do testemunho. Para começar, segundo Ávila, “jamais deve ser feito o reconhecimento com apenas uma pessoa ou foto, em função de sua intolerável carga de sugestionabilidade”.

Além disso, o reconhecimento de alguém que viu apenas os olhos de um criminoso deve ser considerado suspeito, já que vítimas de roubo têm dificuldade de memorizar detalhes até quando os ladrões estão de cara limpa, porque costumam olhar apenas para a arma, um comportamento conhecido como gun weapon effect (efeito da arma de fogo).

Os irmãos Terkeli e os outros dois suspeitos, Miguel Azevedo Ramos e Alex Sandro Ferreira da Silva Catuaba, foram presos em 12 de junho e passaram por um reconhecimento pessoal diante das vítimas, cheio de irregularidades. Os quatro foram apresentados para o reconhecimento juntos. Apenas um quinto homem, que não era suspeito, foi colocado entre eles. O Código de Processo Penal determina que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.

Após o reconhecimento pessoal, a juíza Jane Rute Nalini Anderson, da 3ª Vara Criminal de Jundiaí, converteu a prisão temporária dos réus em preventiva. Em 21 de junho, o promotor Jocimar Guimarães, do Ministério Público Estadual, denunciou os quatro réus por roubo qualificado.

A defesa contesta a prisão dos irmãos Terkeli. Para o advogado da família, Wilson Brito da Luz Junior, manter os irmãos detidos é um “ato de constrangimento ilegal somado ao abuso de autoridade”, já que não havia motivo para a prisão cautelar (sem condenação), considerando que ambos foram identificados e possuem moradia fixa.

Em 1º de setembro, familiares e amigos dos Terkeli fizeram um protesto em Taboão da Serra (Grande SP), que bloqueou parcialmente a rodovia Régis Bittencourt, pedindo “a libertação dos inocentes”. Nesse dia, policiais rodoviários federais ameaçaram os manifestantes com armas de choque e ainda zombaram dos que lutavam pela libertação dos jovens: “Tá preso, já era”.

Outro lado

Procurada pela Ponte, a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não respondeu.

A assessoria de imprensa da Secretaria da Administração Penitenciária afirmou:

A Secretaria da Administração Penitenciária esclarece que o ofício tão somente informou à Meritíssima Sra. Juíza sobre o crime pelos quais os dois são acusados, sem entrar no mérito da entrevista. Salientamos ainda que a Pasta somente cumpre decisão judicial.