Justiça da França reconhece motorista de Uber como funcionário. Por Maria Paula Carvalho

Atualizado em 5 de março de 2020 às 22:15
Uber. Foto: Divulgação

Publicado originalmente no RFI:

Por Maria Paula Carvalho

Em decisão publicada nesta quarta-feira (4), a Corte de Cassação entendeu que a relação entre a empresa Uber e um motorista do aplicativo é considerada como um contrato de trabalho. Depois da divulgação da sentença, a ministra do trabalho francesa, Muriel Pénicaud, destacou nesta quinta-feira (5) a necessidade de encontrar um novo quadro jurídico que proteja os trabalhadores, assalariados ou não.

“Até hoje estávamos numa situação um pouco confusa, já que os trabalhadores da plataforma, em sua grande maioria, querem ser independentes e ter liberdade, mas eles também querem, com razão, proteções”, disse a ministra.

Segundo a decisão da Justiça francesa, “ao conectar-se à plataforma digital Uber, há uma relação de subordinação entre o motorista e a empresa. Consequentemente, o motorista não realiza seu serviço como trabalhador autônomo, mas como empregado”.

O caso envolveu um motorista que, após ter sua conta fechada pelo Uber, pediu na Justiça trabalhista que a sua relação com a empresa fosse revista como um contrato de trabalho. O tribunal aceitou o pedido.

A decisão põe em risco o modelo econômico colaborativo de inúmeras start-ups que se baseiam na utilização de trabalhadores com estatuto de autônomos e pode ter reflexos na atividade de outros aplicativos de entregas a domicílio, por exemplo, que deverão repensar seus modelos de negócios.

O que foi levado em conta na decisão

Conforme a decisão judicial, “os critérios para o trabalho independente dizem respeito, em particular, à possibilidade de constituir uma clientela própria e à liberdade de fixar seus preços e de definir as condições para a execução de sua prestação de serviços”.

Por outro lado, “no contexto de um contrato de trabalho, a relação de subordinação baseia-se no poder do empregador de dar instruções, monitorar sua execução e penalizar o não cumprimento das instruções fornecidas”.

Adaptando as regras para a situação do motorista que usa o aplicativo Uber, este “não constitui sua própria clientela, não define livremente seus preços e não determina as condições de desempenho de seu serviço de transporte. A rota é imposta pela empresa e, se ele não a seguir, são aplicadas correções de preços”. Ou seja, o motorista não pode escolher livremente o trajeto que mais lhe convém.

Além disso, após três recusas de corridas, o Uber pode desconectar temporariamente o motorista de seu aplicativo. Caso a taxa de cancelamento seja excedida, ele poderá até ser descredenciado do aplicativo.

Assim, “todos esses elementos caracterizam a existência de uma relação de subordinação entre o motorista e a empresa Uber, ao se conectar à plataforma digital, sendo apenas fictício o status de freelancer”, escreveram os magistrados na sentença.

Tudo começou em Paris

A decisão em Paris é emblemática, pois acontece na mesma cidade que inspirou a criação do Uber. Como muitas start-ups, o conceito veio de uma necessidade. Os americanos Travis Kalanick e Garret Camp participavam de um evento de tecnologia e empreendedorismo na capital francesa e como não conseguiam encontrar um táxi, pensaram em criar um serviço para chamar um carro com motorista particular, apenas com um toque no celular. Os amigos então voltaram para São Francisco, nos Estados Unidos, onde amadureceram a ideia.

O aplicativo Uber para Android e Iphone foi criado em 2009. Pouco mais de uma década depois, a empresa é avaliada em US$ 60 bilhões.

O Uber criticou a decisão da justiça francesa. “Ela não corresponde ao desejo de independência e de flexibilização que buscam os motoristas” disse Steve Salom, diretor geral do aplicativo na França.

A empresa californiana acabou dando nome a um modelo social da nova economia. Hoje em dia fala-se em “uberização” para descrever um mercado que consiste em captar serviços graças ao uso de um algoritmo, com o emprego de prestadores e fornecedores independentes.

Outros casos

Decisões semelhantes já foram deferidas na Califórnia, em Londres e mesmo no Brasil.

Em outubro de 2019, o juiz de primeira instância Raimundo Neto, da Justiça do Trabalho do Ceará, reconheceu o vínculo empregatício entre um motorista do Uber e a contratante. O magistrado identificou que estavam presentes todos os elementos que caracterizam a relação contratual.

“O usuário do transporte não é cliente do motorista, mas da empresa. Não é o motorista quem oferece o serviço, mas a própria empresa. O motorista, portanto, não é cliente do aplicativo de transporte, mas prestador de serviços na qualidade de trabalhador”, escreveu o juiz na sentença.

Governo francês vai estudar o caso

Um dia depois da decisão judicial, os Ministérios do Trabalho e da Economia da França anunciaram a criação de um grupo de estudos para apresentar novas propostas sobre o status dos trabalhadores nas plataformas de serviços digitais até o meio do ano.

“Já discutimos com os sindicatos e com as plataformas. Agora precisamos encontrar uma estrutura que permita a proteção dos trabalhadores”, afirmou Muriel Pénicaud. “Enquanto isso, a decisão do Tribunal de Cassação estabelece precedentes”, acrescentou a ministra.

O Observatório Independente do Trabalho (OTI), que reúne personalidades do mundo dos negócios, convocou o governo a “criar as condições para uma ampla reflexão sobre o trabalho independente, reunindo atores econômicos, sindicais, jurídicos e acadêmicos “.

“Existe agora um risco real” para “o setor de plataformas digitais e a atividade direta dos trabalhadores independentes”, lamentou a OTI.

Já a Força Sindical, um dos maiores sindicatos de trabalhadores da França denunciou a “pseudo-independência” dos profissionais de aplicativos. Em um comunicado, a entidade afirmou que essa situação “permite que plataformas como o Uber tirem proveito de um vácuo legal”. Um vazio que, segundo o sindicato, “o Tribunal de Cassação acabou de preencher”.