Justiça, lawfare, fascismo e inegibilidade. Por Mauro Santayana

Atualizado em 2 de setembro de 2018 às 13:17
Lula no Circo Voador. Foto: Instituto Lula/Flickr/Divulgação

Publicado originalmente no blog do autor

POR MAURO SANTAYANA

Não há nada mais falso, depois de um assassino que mata crianças dizendo que estava cumprindo ordens, que um juiz que, com a desculpa de se ater ao estrito cumprimento da lei, finge que as consequências de seus atos e decisões não irão ultrapassar os umbrais da sala de tribunal de que toma parte.

A justiça brasileira quis dar ao mundo, no último dia de agosto, a impressão de que o que estava em jogo no TSE era o julgamento isolado da elegibilidade ou não do ex-presidente Lula.

Quando tratou-se apenas de mais um passo, talvez o definitivo, de um longo processo de combate político ao ex-presidente da República e ao seu partido que começou bem antes, quando se permitiu que fosse montada contra o PT a farsa do mensalão – urdida por pilantras que agora estão sendo investigados por outros crimes – com a inauguração da criminalização da política pela justiça brasileira e o recurso a uma retorcida, dopada e mal importada teoria do Domínio do Fato.

Logo, a justiça brasileira não pecou ontem.

Continuou a fazê-lo quando, ciega pero no mucho, aceitou, sem impedimentos, que se montasse contra Lula um processo espúrio, extremamente frágil e polêmico em provas e cheio de ilações forçadas.

Baseado em casuísmos variados e delações de conveniência, com inegáveis motivações e drásticas consequências políticas.

Que desaguou em uma condenação de segundo grau igualmente espúria, caracterizada por inéditas pressa e parcialidade, que está sendo denunciada e repudiada em todo o mundo.

Nunca é demais lembrar que, escritura por escritura – e a do triplex do Guarujá não existe nem nunca existiu com relação a Lula – há outros candidatos que foram extremamente mais bem sucedidos que o Sr. Luiz Inácio Lula da Silva em seus negócios imobiliários nos últimos anos.

E ainda outros que, apesar de afirmar que irão pagar do próprio bolso sua campanha, irão fazê-lo com milhões de reais recebidos, também nos últimos anos, por serviços de consultoria prestados a empresas estrangeiras e aos seus interesses.

Tivesse o Judiciário controlado a tempo e coibido exemplar e firmemente os arroubos onipotentes e egocêntricos da Operação Lavajato e seus inúmeros atentados contra o Estado de Direito, entre eles o da ampla divulgação do conteúdo do grampo telefônico de um Presidente da República, resistindo à chantagem de uma pseudo opinião pública fascista e à pressão de uma parcela da mídia, militante e partidária, a nação não teria chegado ao julgamento de ontem, em que a justiça brasileira teve de ser confrontada com o sistema internacional de defesa dos direitos humanos.

É incrível, tragicamente irônico, cristalinamente hipócrita, que um sistema de justiça totalmente incapaz de controlar e coibir a violência policial e o abuso de autoridade – lembre-se a proporção de 36 mortos pela polícia para cada policial morto no Rio de Janeiro, o aumento de quase 40% no número de mortes pela polícia, o maior dos últimos 15 anos, e de 128% no número de chacinas no último ano – aja da forma mais empostada, prepotente, intransigente, arrogante e impiedosamente implacável contra um homem já preso e controlado fisicamente, com sua sentença ainda não transitada em julgado, impedindo-o de exercer seus direitos políticos, quando ele não foi condenado a isso e sim à pena de perda de liberdade, em um país no qual, como bem demonstrou a defesa de Lula, o mesmo Tribunal agiu de forma diferente com relação a 1500 candidatos a prefeito envolvidos com a lei da ficha limpa.

Ao impedir Lula de ser candidato, a justiça brasileira precisa ter plena consciência de que será responsabilizada pela História por assumir o risco, diríamos, quase a certeza, de levar ao poder, com a sua decisão, nesta República, o policialismo, o armamento seletivo da direita e a apologia da violência repressiva do estado.

Que levarão à criação e implementação de leis eximindo a polícia que já é a que mais mata no mundo de qualquer punição ou controle, já que quem pode mais – matar sem ser punido – também poderá menos, torturando, extorquindo, abusando de todas as formas de quem quiser – em uma sociedade em que membros das forças policiais e de eventualmente outras áreas de segurança se transformarão em cidadãos de uma casta superior e especial, com poder de vida ou morte sobre a população que paga com seus impostos seus salários, suas armas e suas balas, sem nenhum tipo de controle social ou institucional, efetivando como lei o que já ocorre de fato, vide a intenção do Comando da Intervenção no Rio de Janeiro de isentar de responsabilidade os policiais envolvidos em mortes durante as operações e a ausência de qualquer punição prática por massacres cometidos pela polícia brasileira, que impactaram historicamente o mundo inteiro, como o do Carandiru e o de Eldorado do Carajás, por exemplo.

Todo sistema autoritário procura isentar seus soldados da morte de indesejáveis ou adversários.

Muitos soldados alemães que mataram mulheres e crianças no leste da Europa exibiam o adágio Gott Mit Uns – Deus Conosco em suas fivelas. Será que Deus estava mesmo com eles nessas ocasiões?

E que não tentem nos convencer que um Estado que irá legalizar esse tipo de coisa será um exemplo de Democracia para o mundo.

Uma “democracia” ora em estado de preservação e valorização graças à impoluta e patriótica contribuição da justiça nacional.

Porque ele será, neste país escravocrata, que deu a luz ao tronco, à palmatória, ao pau de arara, o sabiá, à jabuticaba e à chibata, e às masmorras medievais repletas de sujeitos que sequer foram julgados, na verdade e na prática – talvez até mesmo devido à ausência de absurdo semelhante em qualquer nação civilizada – o estado de exceção permanente mais violento e arbitrário do planeta.

Em caso de indagações e dúvidas dos leitores sobre o que espera a nação, respostas eventuais com o guarda da esquina ou com o soldado da blitz na hora do rush ou da onça beber água, a partir de meados do próximo ano.