Kakay: “Não ofendi Damares. Talvez ela não saiba o significado da palavra ‘idiota’”

Atualizado em 1 de fevereiro de 2020 às 17:24
Kakay. Foto: CARLOS HUMBERTO/SCO/STF

Publicado originalmente pelo ConJur:

POR ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO (KAKAY)

Arre, estou farto dos semideuses! Onde é que há gente no mundo?” Fernando Pessoa.

Sobre a falsa polêmica criada por uma frase minha em um grupo de WhatsApp, referente a uma esdrúxula proposta de política pública formulada pela ministra Damares, julgo necessário fazer breves considerações. Em um Estado que se pretende democrático, o direito de criticar a postura e os atos de pessoas públicas é a base para o fortalecimento da sociedade.

Quero que fique bastante claro: em nenhum momento, eu ofendi a ministra Damares. Apenas registrei aquilo que realmente considero acerca das proposições políticas por ela expostas. Ao dizer “idiota”, faço referência específica à sua proposta de campanha pública voltada aos adolescentes que prega a abstinência sexual como forma de enfrentar a gravidez precoce e de combater a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis.

Talvez a ministra desconheça o significado da palavra “idiota”, que, segundo diversos dicionários, é algo que não tem bom senso, não tem discernimento, tolo ou não apresenta nexo. Nesse ponto, basta procurar na grande mídia as frases que caracterizam as políticas públicas apresentadas pela ministra. É perceptível que tais veículos retratam tais atos de forma jocosa.

O linguista Gustavo Conde, ao falar sobre o pronunciamento dessa Senhora sobre a vagina de uma menina de 12 anos, disse que a frase era uma monstruosidade: “repulsiva e monstruosa”. E vai além, “a fala de Damares não é uma aberração. É um crime”.

Para mim, subir numa goiabeira para receber um abraço de Jesus, ou dizer, sendo ela uma ministra de Estado, figura pública, que meninos devem vestir azul e meninas, rosa, ou ir contra o Estado laico, ou dizer que os meninos devem ser tratados diferentemente das meninas, ou acusar o movimento LGBT de ter instalado uma “ditadura gay” no Brasil e tantos outros pronunciamentos deixam absolutamente incontestável que as propostas da ministra são desprovidas de bom senso e de discernimento. Talvez por isso ela tenha sido formalmente denunciada na ONU por “intervenção e censura” ao Conselho Nacional de Direitos Humanos.

Uma ministra que tem poderes de ditar regras e estabelecer diretrizes de políticas públicas, na minha visão, não pode ter a abstinência sexual como programa de governo.

Ressalto, aqui, valorosa recomendação da Defensoria Pública da União e da Defensoria Pública de São Paulo, na qual apontam que pregar abstinência como “política pública para prevenção não tem nenhum suporte científico” e que a “medida traz risco de desinformação aos jovens ao não privilegiar a adequada orientação quanto ao uso de métodos reconhecidamente eficazes”.

O Papa Francisco, com sua sabedoria única, defendeu inclusive que as escolas devem, sim, ensinar educação sexual, ressaltando que esse é o melhor caminho para resolver o problema da gravidez precoce.

Por isso, fiz a irônica observação crítica no sentido de que, se tivessem seguido a orientação da ministra sobre a abstinência sexual, nós estaríamos livres de ouvir e de ler tantas sandices. Usei a palavra “trepar”, que talvez choque ouvidos puritanos, mas, na vida real, é assim: as pessoas trepam.

E todo cidadão tem o direito de criticar a postura, as falas, os discursos de uma pessoa pública. O Político tem que saber que, numa democracia, ele será questionado e criticado, com uma natural veemência que deve e pode ocorrer quando são interpeladas políticas públicas que julgamos equivocadas. Nem foi o caso da minha frase sobre a ministra, que não considero em nenhum momento ofensiva ou descontextualizada.

Em recente e brilhante parecer, oportuno e que parece ter sido escrito sobre esta falsa polêmica, os professores Ademar Borges e Daniel Sarmento escrevem acerca da liberdade de expressão e dos crimes contra a honra de pessoas públicas. Preceituam os renomados professores:

A Constituição de 88 é até repetitiva na garantia da liberdade de expressão, consagrando-a nos incisos IV e IX do seu artigo 5º, e ainda no seu artigo 220, caput. A redundância não é gratuita. Ela se deve, acima de tudo, à importância central atribuída pelo poder constituinte originário a tal direito fundamental, na linha do que ocorre em praticamente todos os Estados democráticos contemporâneos.

Essa ênfase deriva de várias razões. Há, em primeiro lugar, a dimensão histórica: a Carta de 88 pretendeu romper com o passado nacional de autoritarismo e instaurar uma nova ordem fundada sobre valores humanistas e democráticos. Com efeito, uma das características mais nefastas do regime militar era precisamente o desprezo à liberdade de expressão. A imprensa, os críticos do governo e os artistas eram frequentemente censurados ou punidos por suas manifestações e ideias. Pessoas eram presas ou exiladas — quando não torturadas e até assassinadas por agentes da repressão — em razão das ideias que ousavam defender. O constituinte, reagindo contra tal histórico vergonhoso, quis assegurar que esses graves erros do passado nunca mais se repetissem.

A liberdade de expressão recebeu proteção reforçada também em razão da relevância capital dos seus fundamentos político-filosóficos. Em primeiro lugar, trata-se de direito profundamente ligado à dignidade humana. Afinal, comunicar-se com o outro é uma das mais importantes atividades dos seres humanos, essencial para a realização existencial das pessoas. E a preocupação com a dignidade não se centra apenas na figura do “manifestante”, alcançando também a pessoa do “ouvinte”. Para que cada pessoa possa se desenvolver livremente e formar a própria identidade, é fundamental o acesso ao mais amplo universo de manifestações, opiniões e informações sobre os mais variados temas.

Nesse contexto, eles apontam que “a liberdade de expressão não salvaguarda apenas manifestações suaves, polidas, gentis. Pelo contrário, o direito abarca a liberdade de criticar, mesmo em tom duro, jocoso, áspero ou até impiedoso, especialmente as autoridades e pessoas públicas”.

A seguinte frase da ministra Rosa Weber é cirúrgica: “O regime democrático, contudo, não tolera a imposição de ônus excessivo a indivíduos ou órgãos de imprensa que se proponham a emitir publicamente opiniões, avaliações ou críticas sobre a atuação de agentes públicos. Os riscos envolvidos no exercício da livre expressão, em tais hipóteses, não podem ser tais que apresentem permanente e elevado potencial de sacrifício pessoal como decorrência da exteriorização de manifestações do pensamento relacionadas a assuntos de interesse público, real ou aparente (…) O ônus social é enorme e o prejuízo à cidadania manifesto.

Ainda sobre o assunto, os mencionados professores trazem à baila importantes decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos que têm apontado a “ilegitimidade de condenações criminais por crimes contra a honra, de pessoas que tenham expressado opiniões fortemente críticas a respeito de assuntos de interesse público ou de autoridades públicas, por violação ao direito à liberdade de expressão”.

Por fim, reafirmando que não ofendi em absoluto a senhora ministra, reitero minha absoluta crença na liberdade de expressão, de crítica e na necessidade de discutirmos de forma direta e aberta os despautérios patrocinados por agentes públicos.