Le Monde: “Bolsonaro transformou em pária internacional país que foi líder contra mudança climática”

Atualizado em 1 de outubro de 2022 às 10:56
Presidencial
Eleições brasileiras são destaque no jornal Le Monde, que aponta desastre bolsonarista.

A eleição presidencial brasileira é o destaque da edição do jornal francês Le Monde deste sábado. A publicação considera o pleito como um momento de importância global. “No Brasil, um voto crucial para o país e o clima”, diz a manchete.

“O impacto dessa eleição é mundial, já que Bolsonaro conduziu uma política deliberadamente antiambiental”, afirma a capa. “Os resultados do presidente de extrema direita são unanimemente considerados como catastróficos pelos defensores da natureza”, resume. “O Brasil, que concentra 15% da biodiversidade mundial, viu a floresta amazônica se reduzir”.

As reportagens e análises do jornal de referência da França traçam um retrato desastroso da presidência de Jair Bolsonaro e sugerem um quadro cuja reversão só pode ser esperada com Lula.

Tensão

A reportagem principal da edição, “No Brasil, uma eleição decisiva sob tensão”, descreve “um pleito tanto histórico quanto perigoso, num país polarizado e eletrizado como nunca”.
“Nessas últimas semanas, Jair Bolsonaro tentou de tudo para superar sua defasagem entre os mais modestos. Aumento de auxílios sociais, cheques para a energia, baixa nos impostos… Quase 8 bilhões de euros foram gastos numa operação de compra de votos nunca antes vista nesse nível”, afirma.
Uma segunda reportagem, “A grande destruição dos anos Bolsonaro”, também assinada pelo correspondente Bruno Meyerfeld, faz um balanço dos impactos do bolsonarismo na cena internacional a partir de sua gestão do meio ambiente. “Em somente quatro anos, Jair Bolsonaro transformou em pária internacional um país que foi líder contra a mudança climática”.
“Quase 40.000 km2 de floresta tropical foram derrubados, o equivalente ao tamanho da Suíça, substituídos (muitas vezes para sempre) por pastos ou campos de soja. A cada dia, 1,5 milhão de árvores são derrubadas no ‘pulmão do planeta’, ou quase 4.000 campos de futebol. Algo nunca visto em duas décadas”, explica.
“Jair Bolsonaro realizou um desmantelamento das agências de proteção, que davam orgulho no Brasil. Polícia ambiental, Instituto Chico Mendes, Instituto espacial… Todos viveram cortes drásticos, indo de um quarto à metade de seu orçamento. Os gastos em projetos de redução e adaptação ao aquecimento global foram destruídos em 93%”, detalha.
“Em todo lugar, Jair Bolsonaro colocou seus homens: policiais e militares, tão incompetentes quanto dóceis. Em Brasília, ladrões de madeira, fazendeiros e mineradores ilegais foram recebidos de braços abertos”.
“Por seus decretos e discursos, o presidente não parou de estimular a mineração ilegal”, aponta.
“As invasões de terras indígenas triplicaram entre 2019 e 2021. Jair Bolsonaro – para quem esses povos são ‘homens pré-históricos’ – cortou o baixo orçamento da Funai. Resultado: um retorno dramático de epidemias e da fome nas aldeias”.
“Jair Bolsonaro modera seu discurso, demite Ricardo Salles e promete dar fim ao desmatamento ilegal a partir de 2028. Mas no fundo, nada mudou. Em 2022, o desmatamento bate recordes”, contrasta.
“Os defensores da natureza colocam todas as esperanças numa vitória de Lula dia 2 de outubro. Ele tomou posição pública em defesa da proteção da natureza e dos povos indígenas”.
“Mas os especialistas são prudentes ou céticos sobre suas chances de sucesso”, pondera.
“No país, um quinto da Amazônia já foi destruído. Esta estaria se aproximando do ponto de ‘não-retorno’, ou seja uma queda nas precipitações e uma seca agravada, que resultaria na transformação da floresta tropical em savana”.
“Para Lula, a tarefa será ainda mais difícil já que a violência gangrena a Amazônia, transformada numa zona sem direito. A região tem 13 das 30 cidades mais violentas do país, e o número de armas de fogo explodiu em 219% em três anos”.
Desastre diplomático
Em coluna opinativa da mesma edição, o professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris Gaspard Estrada afirma que o “retorno do Brasil ao mapa diplomático seria mais do que bem-vindo”. O que significa afirmar que, com Bolsonaro, o Brasil desapareceu.
“Uma eventual vitória da esquerda brasileira poderia modificar profundamente os equilíbrios internacionais, favorecendo as relações com a União Europeia”, diz o pesquisador.
“O chefe de Estado brasileiro Jair Bolsonaro só recebeu sete homólogos, inclusive o presidente português, quando o país festejava o bicentenário da independência. Significa dizer que a passagem por Brasília, ainda que 13a economia mundial, tornou-se tóxica para as chancelarias mundiais. Bolsonaro é um presidente ostracizado por seus pares”, analisa.
“Difícil imaginar que há apenas dez anos o país organizava uma cúpula reunindo os grandes do mundo em torno das questões climáticas, permitindo assim posicionar a centralidade da diplomacia brasileira nesse tema que se tornou essencial nas relações internacionais”, opõe.

“O ex-militar fez da área internacional uma marca de sua política de extrema direita. Num primeiro tempo, tratava-se de extirpar a ‘ideologia marxista e globalista’ do Itamaraty, um dos melhores corpos diplomáticos do mundo”, expõe.

“Mas na cabeça de Bolsonaro, tratava-se de ir mais longe: na linha de seu mentor, Donald Trump, o dirigente de extrema direita queria participar da construção de uma  ‘internacional ultraconservadora’, indo de Salvini a Orban, baseada na crítica virulenta do lugar da China na cena internacional, o apoio irredutível à política israelense, o desprezo pela Europa e as organizações internacionais, a luta contra os regimes venezuelano, cubano e nicaraguense, mas também a vontade de criminalizar os migrantes e refugiados, a firme oposição à regulação do porte de armas e a recusa em descriminalizar as drogas”, avalia.

“Infelizmente, a realidade se impôs ao presidente brasileiro. Além da derrota de Donald Trump em 2020, que o isolou consideravelmente internacionalmente, uma parte de seus apoiadores, principalmente no meio do agronegócio, se revoltou contra suas posições hostis à China, principal parceiro comercial do Brasil”, lembra.

“Quando se trata de proibir a participação da chinesa Huawei na instalação da rede 5G, Brasília se acalma, para a grande decepção de Washington. Enquanto a eleição presidencial se aproxima, o resultado do pleito brasileiro é acompanhado com atenção pelas grandes potências. Pois a hipótese de ver Bolsonaro cumprir as ameaças de desqualificação do resultado se lhe for desfavorável poderia desencadear uma crise política e institucional de grandes proporções com consequências imprevisíveis”, indica.

“Diante das intimidações de Bolsonaro, os Estados Unidos e os principais países europeus manifestaram publicamente sua confiança no sistema eleitoral brasileiro. Por sua vez, a China e a Rússia ficaram silenciosas. Pois é claro que um eventual retorno da esquerda no maior país latino-americano poderia modificar profundamente os equilíbrios regionais e internacionais”, observa.

“No caso de um retorno ao poder de Lula, as relações sino-brasileiras retomariam seu moral. Mas tudo leva a crer que Pequim se beneficiaria mais de uma reeleição (hoje improvável) de Bolsonaro. Diante da hostilidade de Washington e das principais capitais europeias e latino-americanas, esse último não teria outra escolha senão se voltar para o império do Meio”, sustenta.

“Xi Jinping estaria então em posição de força para negociar, em seu proveito, um aprofundamento das trocas econômicas, que já contribuíram para desindustrializar o tecido produtivo brasileiro e a reforçar a proeminência do setor agroexportador, cuja parte se aproveita alegremente das políticas antiambientais de Bolsonaro. Com consequências climáticas catastróficas para o Brasil e o planeta.”

“Pelo contrário, Lula deseja reorientar a diplomacia brasileira nos dois campos. De um lado, selando o acordo estratégico com a União Europeia pela aplicação do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Se ele entrar em vigor, este acordo comercial reduziria a influência econômica chinesa na região, lançando novamente a integração regional sul-americana e poderia contribuir a reequilibrar a matriz econômica do Brasil”.

“Por outro lado, afirmando a centralidade da urgência climática, tanto em termos de política interna quanto externa. Tratar-se-ia de restaurar as prerrogativas das agências ambientais e de proteção das populações indígenas, de combater efetivamente o desmatamento, e de criar as incitações econômicas para dar fim às explorações ilegais da natureza. E no plano internacional, a diplomacia brasileira deveria voltar à cena nas principais negociações climáticas multilaterais”, acredita.

“Isso não quer dizer que Lula se abstenha de querer reativar as iniciativas Sul-Sul. Mas está claro que um retorno do Brasil ao mapa diplomático internacional seria mais do que bem-vindo para a União Europeia, e principalmente a França. Nesse caso, Emmanuel Macron deveria tomar a iniciativa e estender a mão a Brasília comparecendo à posse de seu novo homologo, Lula”, sugere.