Lei Magnitsky projeta ordem jurídica dos EUA em território brasileiro

Atualizado em 31 de outubro de 2025 às 11:27
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o ministro Alexandre de Moraes, do STF. Foto: Reprodução

Por Paulo Mitsuru Shiokawa Neto, publicado no Conjur

O edifício clássico do direito internacional, erigido sobre os alicerces do Tratado de Vestfália de 1648, assentava-se em um dogma central: a soberania estatal. Neste modelo, o Estado-nação era a unidade primordial e exclusiva da produção jurídica, exercendo autoridade suprema e incontrastável dentro de suas fronteiras territoriais.

Este paradigma, contudo, mostra-se cada vez mais inadequado para descrever a realidade jurídica do século 21. A globalização econômica, a revolução digital e a emergência de desafios transfronteiriços erodiram a estrita correspondência entre território e autoridade jurídica. O espaço global é hoje um campo complexo de sobreposições normativas, onde o Estado convive com uma pluralidade de outras ordens: o direito de organizações supranacionais, a lex mercatoria dos contratos internacionais, as normas técnicas de órgãos privados de padronização e, crucialmente para este estudo, as leis nacionais com pretensão de aplicação extraterritorial.

É neste cenário de pluralismo jurídico que se insere a controvérsia gerada pela imposição de sanções, pela Global Magnitsky Act dos Estados Unidos, ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. Este ato unilateral projeta a ordem jurídica norte-americana para dentro do território brasileiro, não por meio da força militar, mas através de um vetor mais sutil e poderoso: o controle sobre as redes do sistema financeiro global.

O epicentro prático desta colisão, contudo, não se localiza nas chancelarias ou nos tribunais internacionais, mas nos departamentos de compliance das instituições financeiras. São estes atores privados que se veem na posição de Antígona, confrontados com duas ordens imperativas e mutuamente exclusivas. De um lado, a determinação norte-americana, cujo descumprimento acarreta a pena de exclusão do sistema financeiro global. De outro, a soberania brasileira, reafirmada em uma medida cautelar monocrática e precária na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.178, cujo descumprimento implica a violação da ordem jurídica interna e sujeição a sanções estatais.

O pluralismo jurídico reconhece a existência de múltiplas fontes de normatividade operando em um mesmo campo social. Na visão de Boaventura de Sousa Santos, vivemos um tempo de “interlegalidade”, um conceito que descreve a interpenetração, a sobreposição e a mistura de diferentes ordens jurídicas num mesmo espaço.

Intersecção de diferentes lógicas normativas

Essa perspectiva nos permite ver o conflito da Magnitsky Act não como um choque entre dois blocos monolíticos (“Direito dos EUA” vs. “Direito do Brasil”), mas como a intersecção de diferentes lógicas normativas — a da política externa norte-americana, a da soberania judicial brasileira, a da regulação prudencial bancária, a dos contratos privados — em um único ponto focal: a conta bancária de um indivíduo.

O sistema financeiro global pode ser visto como um desses regimes autônomos. Embora não tenha um Estado ou uma Constituição formal, ele possui suas próprias normas (ex: regras da Swift, padrões do Comitê da Basileia), suas próprias cortes (câmaras de arbitragem) e, crucialmente, seus próprios mecanismos de sanção (a exclusão da rede). A Magnitsky Act opera de forma tão eficaz porque ela não depende do Estado brasileiro para ser executada; ela se acopla a essa ordem jurídica autônoma do sistema financeiro, utilizando suas regras e seu poder de exclusão para impor a vontade política norte-americana.

O Banco Central dialoga com o Federal Reserve, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) com a Securities and Exchange Commission (SEC) e o Judiciário brasileiro, como na ADPF 1.178, interpela diretamente a ordem executiva norte-americana. O conflito em análise é, portanto, um choque não entre “Brasil” e “EUA”, mas entre o Poder Judiciário brasileiro exercendo sua função de guardião da ordem interna e o Poder Executivo americano exercendo sua função de política externa através de regulação financeira.

A pretensão de uma ordem jurídica de regular condutas, relações ou bens situados fora de seu território é o cerne do fenômeno da extraterritorialidade. Longe de ser uma invenção recente, ela possui raízes históricas, mas foi exponencialmente amplificada pelos Estados Unidos no pós-guerra, tornando-se uma pedra angular de sua política regulatória global.

Projeção dos EUA além da fronteira

A projeção do poder normativo norte-americano para além de suas fronteiras apoia-se em diversas teorias jurídicas, consolidadas por sua jurisprudência. A mais notória é o “effects doctrine” (doutrina dos efeitos), estabelecida no caso United States v. Aluminum Co. of America (Alcoa) em 1945. Segundo esta doutrina, a jurisdição americana é justificada sempre que uma conduta no exterior produza efeitos “substanciais e diretos” dentro do território dos EUA.

No contexto das sanções financeiras, a justificativa é ainda mais direta: qualquer transação realizada em dólares americanos, mesmo que ocorra inteiramente fora dos EUA entre partes não-americanas, necessariamente passa por uma conta de correspondência em um banco em Nova Iorque. Esse “toque” momentâneo no sistema financeiro americano é considerado um nexo de ligação suficiente para atrair a jurisdição do Tesouro e de suas agências, como o Office of Foreign Assets Control (Ofac).

A Global Magnitsky Act é a expressão máxima dessa lógica. Ela não se limita a proibir cidadãos americanos de transacionar com os sancionados. Seu principal mecanismo de poder, como já mencionado, são as sanções secundárias. Elas operam como uma advertência a todo o sistema financeiro global: “Se você mantiver relações comerciais significativas com este indivíduo que designamos, você também será punido”.

Isso transforma cada banco no mundo em um xerife delegado da política externa americana. A instituição financeira é compelida a internalizar a “lista negra” do Ofac em seus sistemas de compliance e a aplicar a sanção, não por concordar com ela, mas por um cálculo de sobrevivência econômica. O poder da lei não advém do consentimento, mas da coerção exercida através do controle sobre um recurso indispensável: o acesso à principal moeda de reserva e transação do mundo.

Soberania nacional

Lei Magnitsky. Foto: Reprodução

Diante dessa projeção de poder, a ordem jurídica brasileira busca afirmar seus próprios fundamentos, notadamente a soberania territorial e a exclusividade de sua jurisdição.

A Constituição estabelece a soberania como um de seus fundamentos (artigo 1º, I) e rege as relações internacionais do país, entre outros, pelo princípio da não-intervenção (artigo 4º, IV). De forma ainda mais concreta, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), em seu artigo 17, atua como uma cláusula de bloqueio, negando eficácia a atos estrangeiros que ofendam a soberania nacional. O Código de Processo Civil, em seu artigo 21, também delimita a competência exclusiva da autoridade judiciária brasileira para certas matérias, reforçando a primazia da jurisdição territorial.

É este arcabouço que provê o fundamento dogmático para a resistência a ordens como a da Magnitsky Act. Argumenta-se que um ato normativo de um Poder Executivo estrangeiro não pode, unilateralmente, produzir efeitos jurídicos de coerção patrimonial dentro do Brasil, pois isso configuraria uma usurpação da função jurisdicional e uma violação da soberania.

A decisão liminar e monocrática proferida pelo ministro Flávio Dino na ADPF 1.178 é a manifestação judicial mais explícita desta doutrina de resistência. Ao afirmar a presunção de ineficácia de atos estrangeiros e ao proibir explicitamente o bloqueio de ativos por determinação unilateral de Estado estrangeiro, o ministro ergue uma barreira jurídica interna.

É crucial, contudo, qualificar a natureza deste ato. Por ser uma decisão cautelar e monocrática, ela não possui ainda o status de jurisprudência consolidada e vinculante que emanaria de um julgamento pelo plenário do STF. Sua força é precária, sujeita a referendo. No entanto, seu impacto imediato é inegável: ela cria um comando jurídico positivo e exigível para as instituições financeiras que atuam no Brasil. O descumprimento desta liminar é, hoje, um ilícito dentro da ordem jurídica brasileira.

Essa precariedade, porém, adiciona uma camada de complexidade ao cálculo de risco dos bancos. O escudo legal oferecido pela decisão do STF é real, mas ainda não é feito de aço temperado. Ele pode ser revogado ou modificado pelo plenário, deixando a instituição que nele confiou em uma posição ainda mais exposta.

Rotina das instituições financeiras

As disputas teóricas sobre soberania e as manobras geopolíticas se materializam de forma brutal na rotina operacional das instituições financeiras. São elas o terreno onde o conflito deixa de ser abstrato e se torna uma decisão de negócios com consequências jurídicas e financeiras imediatas.

Longe de ser uma mera função burocrática, o departamento de compliance de um banco globalizado funciona como uma arena jurídica em miniatura. É nesse espaço que as diferentes ordens normativas são recebidas, interpretadas e, em caso de conflito, sopesadas. O analista de compliance atua como um juiz de primeira instância, não de um Estado, mas da própria instituição, decidindo qual norma seguir.

Seus “códigos” não são apenas a Constituição e as leis brasileiras, mas também os manuais do Ofac, as diretrizes do Gafi (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro), os regulamentos da União Europeia e os próprios termos de contrato com os bancos correspondentes americanos. No caso em tela, o sistema de monitoramento do banco, alimentado com as listas de sanções globais, certamente emitiu um alerta para o nome do ministro.

A situação pode ser descrita como “esquizofrenia regulatória”: a instituição é ordenada por duas autoridades distintas a tomar ações diametralmente opostas.

  • Risco Brasil (Descumprir a ADPF 1.178):
    • Legal/Regulatório: Multas do Banco Central, processos judiciais por descumprimento de ordem judicial, ações de indenização por danos morais e materiais por parte do cliente. Risco de intervenção ou perda de licenças operacionais no país.
    • Reputacional: Desgaste da imagem perante a opinião pública e as autoridades brasileiras por se submeter a uma ordem estrangeira contra um membro do mais alto tribunal do país.
    • Análise: O risco é alto, mas percebido como mais gerenciável e circunscrito ao mercado brasileiro. As penas, embora severas, raramente chegam ao ponto de inviabilizar a existência da instituição.
  • Risco EUA (Descumprir a Magnitsky Act):
    • Financeiro: Multas que, historicamente, atingem cifras bilionárias (como os quase US$ 9 bilhões pagos pelo BNP Paribas em 2014 por violar regimes de sanções). Perda total de ativos que estejam sob jurisdição americana.
    • Operacional: A pena capital para um banco internacional: a perda do acesso ao sistema de compensação em dólares. Isso significa a incapacidade de realizar comércio exterior, investimentos internacionais ou qualquer transação significativa na economia global. É o equivalente a uma sentença de morte operacional.
    • Reputacional: Ser incluído na lista de sancionados (SDN List), tornando o banco um pária financeiro global, com o qual nenhuma outra instituição séria desejará se relacionar.

Ao comparar os dois conjuntos de riscos, emerge uma clara assimetria de poder. Embora a ordem jurídica brasileira seja soberana de jure em seu território, a ordem regulatória americana, por meio de seu controle sobre o sistema financeiro, exerce um poder de coerção de facto muito superior. A ameaça de uma multa bilionária e da exclusão do sistema do dólar é existencial. A ameaça de uma multa no Brasil, por mais elevada que seja, geralmente não é.

É por essa razão que, em muitos casos de conflito de sanções, as instituições financeiras globais, mesmo correndo riscos legais locais, tendem a optar pelo “over-compliance”: cumprem a norma americana por considerá-la a que apresenta o maior risco em caso de violação. A decisão do STF na ADPF 1.178, ao criar um risco jurídico interno claro e presente, tenta reequilibrar essa balança, mas é duvidoso que consiga anular a assimetria fundamental de poder coercitivo. A instituição permanece como Antígona, mas uma Antígona ciente de que Creonte (os EUA) possui uma arma muito mais devastadora do que o Rei de Tebas (o Brasil).

Conclusão

A colisão normativa entre a Global Magnitsky Act e a soberania jurídica brasileira, materializada no dilema das instituições financeiras, é muito mais do que um exótico caso de conflito de leis. É uma fotografia nítida da estrutura de poder no espaço jurídico global contemporâneo. Ela revela um mundo pós-westphaliano, onde a soberania territorial coexiste e compete com novas formas de poder regulatório transnacional, muitas vezes exercidas por um Estado hegemônico através de redes privadas.

As sofisticadas teorias sobre o pluralismo jurídico, o direito global sem Estado e a soberania desagregada encontram neste caso sua tradução prática. Vemos como a ordem autônoma do sistema financeiro é instrumentalizada para fins de política externa, e como os departamentos de compliance dos bancos são convertidos em arenas onde esses conflitos macroscópicos são decididos no nível micro.

A reação brasileira, por meio da cautelar na ADPF 1.178, é um movimento juridicamente relevante e simbolicamente poderoso de reafirmação soberana. Contudo, ela expõe os limites do direito estatal diante de uma arquitetura de poder global assimétrica. Ao proibir a conduta exigida pela norma estrangeira, a decisão não elimina o risco externo, apenas o torna mais agudo, forçando a “Antígona” institucional a uma desobediência consciente, seja de uma ordem, seja de outra.

O impasse, em última análise, revela um profundo déficit de governança global. A tarefa que se impõe aos estudiosos e operadores do direito é pensar para além da mera resistência soberanista ou da submissão pragmática, buscando construir canais de diálogo e harmonização que possam, no futuro, poupar os atores privados de serem os bodes expiatórios das disputas de poder entre os gigantes estatais.