Leia o artigo de Gonet, indicado para PGR, contra as cotas

Atualizado em 13 de dezembro de 2023 às 13:35
Paulo Gonet

Durante a sabatina de Paulo Gonet, indicado pelo presidente Lula (PT) para a Procuradoria-Geral da República, ao lado de Flávio Dino, para ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o senador Fabiano Contarato (PT-ES) questionou o procurador sobre sua opinião em relação à Lei de Cotas.

Para isso, Contarato recuperou um artigo de 2003 em que Gonet argumenta que “o sistema de quotas é capaz de engendrar injustiças inaceitáveis, política e juridicamente”, citando, por exemplo, a possibilidade de “discriminação reversa”, partindo da legislação que aumentou em 205% o ingresso de pobres e negros nas universidades e institutos federais.

Em resposta, Gonet alegou que todo o artigo está “fora de contexto”, e que nunca foi contra a Lei de Cotas. “A descontextualização acabou atribuindo a sustentarem ideias que realmente nunca expedi. Eu nunca disse que era contrário às cotas. Tanto nesse artigo, quanto hoje, eu digo que a cota é um dos instrumentos da ação afirmativa do estado”, afirmou.

Veja a pergunta de Contarato:

 

Leia a íntegra do artigo de Paulo Gonet: 

Ação Afirmativa e Direito Constitucional

(Exposição no V Congresso de Direito Constitucional do IDP – 19.11.2002)

Houve um tema na campanha presidencial passada que atraiu unanimidade – o das quotas para acesso de pessoas de certas etnias às universidades públicas. Os principais candidatos se manifestaram favoravelmente a esse expediente, que logo foi identificado como mecanismo de valorização da população negra e de compensação justa para discriminações antigas e pertinazes.

A expressão ação afirmativa mostrou-se emocionalmente forte e se impôs, motivando promessas e projetos, alguns já em andamento. No plano federal, foi editada medida provisória, já convertida em lei, com normas orientadas a estimular a preparação de negros para o ingresso no ensino superior e se cogita, também, da criação de quotas para essa população em universidades federais.

O Instituto Rio Branco, por seu lado, criou um programa de preparação de integrantes das chamadas minorias étnicas, com vistas a estimulá-los e capacitá-los à disputa por cargos na carreira diplomática.

No Estado do Rio de Janeiro, lei em vigor já assegura 40% das vagas em universidades estaduais aos negros.

Sabe-se que essas medidas buscam responder ao assombro produzido por certos índices estatísticos. O acesso dos negros ao ensino superior de qualidade e a cargos públicos de relevo não tem encontrado correspondência na participação dessa parcela da população no conjunto geral dos brasileiros. Estudos governamentais de 2001 mostram, por exemplo, que apenas 2% dos formandos em nossas universidades são negros.

Para agravar o quadro, as pesquisas apontam que os afro-descendentes somam, proporcionalmente, maior número nos casos mais aflitivos de carência na nossa sociedade.

Em estudo de 1999, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA indicava que do contingente de 53 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, 64% deles eram negros.

Esses dados, que vêm sendo interpretados como a indicar a continuidade no presente de injustiças raciais pretéritas, despertam o ânimo para a adoção de medidas que ergam parcelas da população da condição social desprivilegiada que a condução da História lhes tem reservado.

Se não será especialmente difícil encontrar méritos nessas iniciativas – tanto assim que elas parecem congregar uma boa-vontade generalizada na política destes dias –, parece que ainda nos falta reservar alguns instantes de reflexão sobre as diversas dimensões, inclusive de ordem constitucional, que essas ações abrem no cenário político-jurídico do país. Isso demanda compreender em que consistem essas chamadas ações afirmativas e como conciliá-las – e, especialmente, em que extensão – com as garantias e direitos fundamentais.

ORIGEM, CONCEITO E EFEITOS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

As ações afirmativas têm sua origem e mais saliente desenvolvimento nos Estados Unidos, onde surgiram como meio de superar as graves injustiças institucionalizadas contra a população negra.

Essas injustiças, flagrantes no período de escravidão, assumiram modalidades renovadas em seguida, incrustando-se, por exemplo, nas políticas oficiais de segregação de raças.

Outras parcelas da população, como os americanos de origem hispânica e as mulheres, também objeto de discriminação, passaram, logo mais, a ser beneficiados por políticas análogas.

O que se quer designar, afinal, com a expressão ação afirmativa?

No seu sentido mais amplo, a locução alcança uma gama larga de políticas, públicas e mesmo privadas, que buscam amparar grupos mais fracos na sociedade.

São medidas chamadas positivas, porque pressupõem uma ação, não se bastando com uma mera abstenção de ações contrárias aos interesses dos grupos que se pretende amparar.

Essas medidas podem assumir um leque variado de formas. Por vezes, consistem num plano de conscientização da existência de uma discriminação velada ou inerente a certas estruturas legais indiscutidas. Outras vezes, assumem a forma de medidas de promoção do grupo desfavorecido, por meio de treinamento especial.

No que tange às mulheres, por outro lado, constituem medida de ação afirmativa a elaboração de legislação laboral protetora da condição singular feminina, como no caso das normas sobre licença-maternidade.

Essas formas de promoção de grupos desfavorecidos, se propiciam vantagens não-extensíveis a todos os integrantes da sociedade, não criam dano direto a terceiros, não provocando o alarido que costuma ecoar das medidas chamadas de discriminação inversa (ou reversa).

A discriminação reversa é a modalidade de ação afirmativa que mais atrai atenção, até por ser a mais polêmica.

Na discriminação inversa, o indivíduo por ela não-beneficiado tende a sofrer uma perda mais sensível, não surpreendendo que provoque reação mais acentuada.

A discriminação reversa implica selecionar, previamente, uma categoria de pessoas para receber certos bens, que, de outro modo, seriam disputados por uma coletividade mais ampla.

A discriminação reversa envolve decisão de beneficiar um segmento da população, no momento de distribuir cargos, vagas em universidades, contratos com governos, promoções no serviço público. Esses bens e interesses ficam subtraídos do alcance dos não-beneficiados pela política em causa.

O que caracteriza a discriminação reversa – e o que a torna controvertida – é precisamente a circunstância de que o favorecimento de um grupo implica, necessária e imediatamente, a evidente exclusão de outro. Trata-se de “um jogo de soma zero, no qual a destinação de um bem a uma pessoa significa tirar esse mesmo bem de outra (…). É também um jogo de tudo-ou-nada, porque os bens e as posições alocados não podem ser divididos”.

O estabelecimento de quotas para grupos desfavorecidos manifesta bem essa situação de soma zero, característica da discriminação reversa.

Vejamos o que acontece aqui: há um número reduzido de vagas para estudantes numa universidade, que normalmente é posto à disputa de todos os interessados que preencham certas condições de capacidade mínima.

Quando se adota uma política de quotas para favorecer um segmento da população, um certo número das vagas na universidade não estará mais em disputa pelos estudantes que não pertençam àquela parcela da população. E não estará à disposição do integrante da maioria apenas por isso – por ele não compartilhar as características, no mais das vezes inatas, daqueles egmento beneficiado com a reserva de vagas.

Daí se falar em jogo de soma zero – o que é dado a alguém o é porque é retirado de outrem.

Não é preciso assinalar que a discriminação reversa causa mal-estar, já que contraria, de modo aberto e imediato, interesse dos não-contemplados por essa política. Esse mal-estar engendra uma questão – essas providências se conciliam com o princípio constitucional da igualdade?

IGUALDADE E DISCRIMINAÇÃO REVERSA

É justamente nesse princípio da igualdade que as medidas de discriminação reversa buscam fundamento.

Tem-se, então, que a mais incisiva objeção jurídica às discriminações reversas situa-se no plano do princípio da igualdade e a defesa dessas mesmas providências se assenta no mesmo princípio. A solução para essa aparente contradição exige sensibilidade política, conscientização histórica e um compromisso mais profundo com as exigências de respeito à dignidade da pessoa humana. Desfaz-se a aporia, discernindo-se no princípio da igualdade duas vertentes – a da igualdade formal (igualdade perante a lei e igualdade na lei) e a da igualdade material (ou real ou, ainda, igualdade de fato). A essa última serve a discriminação reversa, ainda que às custas, em parte, daquela.

IGUALDADE FORMAL E IGUALDADE MATERIAL

O princípio da igualdade formal atribui a todas as pessoas o mesmo valor perante a lei, independentemente do seu status constitucional. É o valor primário da pessoa, independentemente de seus rasgos peculiares ou da sua condição social, que embasa a afirmação de que todos são criados iguais e merecem o mesmo tratamento. Essa vertente do princípio isonômico se liga originalmente aos desafios de abolição de privilégios injustificados pelo Estado liberal e continua a ter fundamental importância no Estado democrático de direito.

O princípio da igualdade, visto sob o ponto de vista formal, atua como barreira à arbitrariedade. Essa, entendida como diferenciação de tratamento injusta, absorve no seu conceito a noção de discriminação. A discriminação possui, geralmente, natureza odiosa, e se orienta a negar direitos e posições a alguém, pelo simples fato de pertencer a um conjunto de indivíduos portadores de uma determinada característica inata, que os estigmatiza socialmente.

Ao princípio da igualdade, sob o aspecto formal, repugna o tratamento arbitrário e, evidentemente, o tratamento discriminatório. Sob a sua vertente formal, o princípio da igualdade serve à repressão de atos impróprios, mas não chega a inspirar ações a serem tomadas para aplacar disparidades sociais.

Nesse sentido é que se diz que se trata de um princípio negativo. Ele desqualifica o tratamento desigual pela lei, mas não propugna pela adoção de um determinado comportamento concreto, material, útil para a reversão de situações de desnível no gozo efetivo de bens e direitos. A crítica que recebe tem raiz justamente nisso. Na medida em que não se presta para mitigar as desigualdades de fato enquistadas na sociedade, contribui para perenizá-las.

A visão unidimensional do princípio da isonomia, que o resume ao seu ângulo formal, já era censurada por ANATOLE FRANCE, ao observar, com ironia, que “a majestosa igualdade perante a lei proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes”.

O Estado social vai assumir uma postura de ação – por isso denominada positiva – contra essas desigualdades. Os poderes públicos deverão, agora, atestar os seus esforços para esse alvo imprescindível à manutenção da coesão social – a superação dos desequilíbrios reais existentes. O ideal da igualdade substantiva passa a reger a ação dos poderes públicos.

O Estado vê-se autorizado, agora, a se desviar, ao menos em parte, dos postulados da igualdade formal. O Estado poderá gerir interesses, sobrepondo o ideal da igualdade de fato às exigências da igualdade na lei. O princípio da igualdade, numa democracia social, vai estabelecer a noção de que o Direito não deve ser alheio à necessidade de se estabelecer uma sociedade equânime na fruição dos seus bens.

PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

As duas dimensões do princípio da igualdade são acolhidas pelo constituinte brasileiro. A dimensão formal está contida na proclamação de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput, da CF). Convive com o mandato aos poderes da República de construir uma sociedade justa e solidária, com a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação, típico da igualdade material (art. 3º, I, III e IV, do Texto Magno).

As ações afirmativas e a chamada discriminação reversa se filiam a esse contexto de busca de uma igualdade social no país – objetivo mais do que aceito, fomentado pelo nosso sistema constitucional. Disso resulta que, prima facie, as ações afirmativas sob a forma das discriminações reversas, não são incompatíveis com o princípio da igualdade.

CONDIÇÕES DE VALIDADE DA DISCRIMINAÇÃO REVERSA

Não se pode perder de vista, porém, que continua em vigor a proibição do tratamento diferenciado sem justo e racional motivo, exigência do princípio da igualdade formal. Isso suscita a questão de definir em que medida se admite o desvio do princípio da igualdade formal, para se atender a propósitos de igualdade de fato. Essa questão é nuclear para a compreensão conseqüente das nuances das ações afirmativas. E é aqui, também, que as dificuldades da prática da ação afirmativa se tornam mais evidentes.

É justamente em torno dos limites às restrições ao princípio da igualdade formal, franqueadas por fins de justiça social, que se formam as opiniões contrárias ou favoráveis às diversas medidas de ação afirmativa.

O TEMA SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO COMPARADO

O direito comparado registra enfoques diferentes para o problema da extensão admissível às restrições ao princípio da isonomia. Enquanto entre nós se fala, com despreocupada desenvoltura, em quotas para negros nas universidades públicas, e se apontam os Estados Unidos como modelo de ação afirmativa, nesse mesmo país paradigma, no caso Bakke, a Suprema Corte afirmou, em 1978, a inconstitucionalidade do sistema de quotas como instrumento de favorecimento da entrada de negros nas universidades, por causa do seu simplismo e excessiva rigidez.

Desde o julgamento do caso Crosson de 1989 e, em 1995, do caso Adarand, a jurisprudência americana passou a impor a programas de ação afirmativa o preenchimento de exigentes requisitos de validade. Nesse mesmo sentido normativo, os arts. 7º, XXX e 39, § 3º, da Constituição. Regents of the University of California v. Bakke, 438, U.S. 265 (1978). City of Richmond v. Crosson, 488 US 469 (1989). Adarand Constructors v. Peña, 115 S. Ct. 2097 (1995).

DIREITO PÚBLICO Nº 1 – Jul-Ago-Set/2003 – ESTUDOS, CONFERÊNCIAS E NOTAS

Para que se legitime o programa de discriminação inversa, passou a ser necessário, nos EUA, demonstrar que o programa responde à necessidade de se compensar uma efetiva e concreta discriminação anterior, praticada pela instituição que adota o programa. A mera existência de uma discriminação social no passado não é mais suficiente para justificar a ação afirmativa. Será, da mesma forma, necessário provar que a classificação com base na raça é o único meio de se remediarem os efeitos danosos ainda existentes da discriminação havida.

Da mesma forma, não mais se considera como suficiente para embasar a política de discriminação reversa a utilidade de se contar com uma diversidade maior de sexo e de raças nos vários setores da sociedade. Exige-se, ainda, dos programas que sejam, além de temporários, flexíveis. A instituição de quotas para minorias raciais, portanto, passa a ser analisada com redobrado empenho crítico.

Na Europa, há também reação contra a instituição, pelo Estado, de quotas. O problema, ali, se refere sobretudo a quotas que favorecem as mulheres, como meio de se assegurar mais extensa representação feminina na política.

Na França, um diploma normativo que proibia que uma lista eleitoral tivesse mais do que 75% de candidatos do mesmo sexo foi declarado inconstitucional pelo Conselho Constitucional, em 1982. Na Itália, em 1995, a Corte Constitucional declarou a inconstitucionalidade de lei que estipulava que em cidades com menos de 15 mil habitantes não se admitiria que, nas eleições municipais, algum sexo estivesse representado com mais de dois terços dos candidatos.

Para a Corte Constitucional italiana, há aí um conflito entre a igualdade formal e igualdade material, que não está bem resolvido pela adoção do mecanismo rígido de quotas – inapto para remover obstáculos a que as mulheres alcancem os seus fins, estando ordenado, antes, para estabelecer uma igualdade nos resultados, o que não é tido como cabível.

No âmbito da Justiça da União Européia, tem-se, da mesma sorte, afirmado que o sistema de quotas não pode ser inflexível, devendo ser combinado com considerações de mérito. No caso Marschall, de 1997, o Tribunal de Justiça assentou que seriam aceitáveis políticas de promoção de pessoal no serviço público que favorecessem as mulheres, sub-representadas, contanto que essas medidas não impedissem exceções em circunstâncias individuais específicas, como na hipótese de o candidato masculino apresentar credenciais superiores ao do feminino.

DIREITO PÚBLICO Nº 1 – Jul-Ago-Set/2003 – ESTUDOS, CONFERÊNCIAS E NOTAS

Como se vê, a adoção do sistema de quotas não é tão simples como a abordagem mais superficial do tema pode sugerir.

O TEMA SOB A PERSPECTIVA BRASILEIRA

Entre nós, a opinião pública começa a sentir as sutilezas do assunto, desprezadas nos debates eleitorais. Em editorial de 11 de novembro de 2002, a Folha de São Paulo, dedicando atenção ao que intitulou de “as cotas do PT”, posicionou-se dizendo:

“Mesmo reconhecendo que é legítimo, necessário e urgente criar condições para que negros e brancos, pobres e ricos disputem vagas nas universidades públicas em condições de igualdade, esta Folha é contrária à política de cotas. Para além dos problemas operacionais que cria, ela tem como pressuposto a noção equivocada de que se combate uma injustiça criando outra.”

Na verdade, não é mesmo correto dizer que toda e qualquer medida de ação afirmativa é constitucional, embora tampouco seja exata a assertiva de que toda medida de discriminação reversa atrai o repúdio do sistema constitucional. O que parece ser imprescindível é uma avaliação caso-a-caso dessas medidas, com vistas, segundo um critério de proporcionalidade e razoabilidade, a aferir-se a sua legitimidade jurídica.

O tratamento diferenciado por conta do fator sexual ou racial não é proibido de modo absoluto. Ele pode acontecer, mas está sujeito a um escrutínio rigoroso no que tange à finalidade por ele buscada, à necessidade da medida, à sua adequação ao fim a que se destina e à proporcionalidade dos meios a esse fim.

Como salientou a Folha de São Paulo, o sistema de quotas é capaz de engendrar injustiças inaceitáveis, política e juridicamente. Por isso, o privilégio concedido a determinada etnia, que importe em perda para os grupos não-beneficiados, deve-se conformar com o princípio da proporcionalidade para ser aceito.

O programa deve ter uma finalidade justa, do ponto de vista dos valores constitucionais. Deve ter o sentido de resposta a uma agressão sofrida por um grupo – agressão que estigmatiza pessoas e as torna objeto de preconceito, capaz de se opor ao pleno desenvolvimento das suas capacidades. É preciso que, pelo menos, os efeitos dessa discriminação ainda sejam atuais, admitindo-se a prova disso a partir de dados estatísticos.

Não seria consentâneo com os princípios liberais democráticos que se instituísse um programa de discriminação reversa, sempre de consequências profundas, apenas para favorecer uma igualdade entre pessoas de diversos níveis sociais, cujas respectivas situações econômicas, entretanto, não se prendem diretamente a uma discriminação sofrida pelo grupo desvalido. Para resolver esse tipo de situação, o Estado dispõe de outros meios de ação afirmativa menos agressivos.

A discriminação reversa deve-se revestir de uma índole compensatória e não meramente garantir uma repartição de bens, sem levar em conta o uso da liberdade das pessoas e o esforço e mérito de cada um.

Avaliadas sob o teste do princípio da proporcionalidade, as medidas de discriminação reversa devem ser adequadas para superar os obstáculos que o preconceito gerou para o grupo. Para isso devem-se dirigir a propiciar condições de acesso a bens e serviços que a discriminação vedou. Devem ter em mira o restabelecimento de uma igualdade de oportunidades tão efetiva quanto possível.

A medida há de ser necessária, assim entendida aquela intervenção sobre direitos fundamentais de outros indivíduos que se limita ao indispensável à sua finalidade.

Neste ponto, é de se ressaltar a comum observação colhida do direito comparado de que o programa de discriminação reversa deve ter duração limitada no tempo. O plano deve existir para ajudar na superação de obstáculos injustos ao desenvolvimento de pessoas pertencentes a grupos discriminados. Terá a sua validade vencida, improrrogavelmente, depois de alcançadas certas metas.

Por isso, o programa deve prever a sua própria revisão periódica, com avaliação da persistência das circunstâncias sociais discriminatórias. Torna-se inconstitucional quando essas perdem relevo.

O programa deve, afinal, sobreviver à comparação dos efeitos positivos que renderá com os efeitos danosos que causará aos grupos não-beneficiados. O programa de discriminação reversa deverá passar pela prova do princípio da proporcionalidade em sentido estrito.

Procede-se ao confronto dos benefícios aguardados com os sacrifícios impostos a outros valores constitucionais, como o princípio do mérito para acesso ao ensino superior e aos cargos públicos e o direito de todos de disputar, obter e manter posições socialmente relevantes.

Neste ponto, o programa de discriminação reversa deve ser flexível, não se fechando totalmente ao princípio do esforço e do mérito. Não deve provocar o alijamento peremptório do indivíduo melhor qualificado, apenas porque o preferido para um cargo ou vaga em instituição pública pertence a grupo discriminado.

As quotas, da mesma forma, devem guardar equilíbrio com o universo das pessoas que podem delas se beneficiar, não onerando excessivamente as maiorias com reservas percentualmente exageradas.

Por fim, deve-se estar seguro de que não há outras formas de atingir os mesmos resultados com menos ônus para os afetados.

O direito americano fornece um exemplo eloquente desse requisito. No caso Wygant, a Suprema Corte invalidou um programa de discriminação reversa em que, para se atingir um certo percentual de negros no corpo docente de escolas públicas, cogitava-se de demissões preferenciais de professores brancos.

A Corte entendeu que haveria “meios menos agressivos de atingir propósitos análogos, como a adoção de metas de admissão [de um maior número de professores negros]”. A Corte considerou que o impacto da medida sobre o indivíduo sujeito não a justificava, mencionando que, “enquanto as metas de admissão [de negros] impõem um ônus difuso, muitas vezes obstando apenas uma entre várias oportunidades existentes para o indivíduo, as demissões impõem todo o ônus de se atingir a igualdade de raça sobre indivíduos concretamente considerados, frequentemente resultando em sérios transtornos nas suas vidas”.

Essas são algumas considerações dentre tantas que o assunto da discriminação reversa e das quotas sugere. Parecem ser elementares para que possamos firmar posições, com alguma consistência e responsabilidade. O tema é sério e de importantes consequências. Não merece ser tratado com ligeireza ou sob a fácil, mas deturpadora, lente dos slogans e do entusiasmo irrefletido.