Leia o poema citado por Carmen Lúcia no julgamento de Bolsonaro

Atualizado em 11 de setembro de 2025 às 14:53

No início de seu voto decisivo no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus, a ministra Cármen Lúcia recitou versos do poema “Que país é este?”, do mineiro Affonso Romano de Sant’Anna (1980), escrito durante o período de transição da ditadura militar para a democracia, criticando contradições e injustiças históricas do país.

Ei-lo:

Uma coisa é um país,
outra, um ajuntamento.

Uma coisa é um país,
outra, um regimento.

Uma coisa é um país,
outra, o confinamento.

Mas já soube datas, guerras, estátuas,
usei caderno “Avante”
— e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
— discursando rios e pretensão.

Uma coisa é um país,
outra, um fingimento.

Uma coisa é um país,
outra, um monumento.

Uma coisa é um país,
outra, o aviltamento.

Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca da especiosa raiz? Ou deveria
parar de ler jornais
e ler anais
como anal
animal
hiena patética
na merda nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo,
comendo o que as traças descomem,
procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso
que nos impeliu a errar aqui?

Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
nacionais, como qualquer santo barroco,
a rebuscar
no mofo dos papiros, no bolor
das pias batismais, no bodum das vestes reais,
a ver o que se salvou com o tempo
e, ao mesmo tempo,
– nos trai.

Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode, sacode.

Affonso Romano de Sant’Anna

Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama,
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.

Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.

Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,

semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,

sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,

vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,

senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,

bebemos cachaça e Brahma,
Joaquim Silvério e derrama,

a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,

cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,

pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.

Este é um país de síndicos em geral,
este é um país de cínicos em geral,
este é um país de civis e generais.

Este é o país do descontínuo,
onde nada congemina,

e somos índios perdidos
na eletrônica oficina.

Nada, nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina,

o salário que nos come
e nossa sede canina,

e a esperança que emparedam
a nossa fé em ruína.

Nada, nada congemina:
a placidez desses santos
e a nossa dor peregrina,

e, nesse mundo às avessas,
– a cor da noite é obsclara
e a claridez, vespertina.

Kiko Nogueira
Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.